Apesar da falta de evidências científicas, dispositivos de tabaco aquecido são vendidos como menos prejudiciais. Para convencer a população, profissionais de saúde são alvo de intensa campanha
“Mais médicos fumam Camel do que qualquer outro cigarro”. “20,679 médicos dizem ‘Luckies é menos irritante, pois é tostado’”. “Viceroys filtram a fumaça. Como dentista, eu recomendo”. Não é de hoje que a indústria do tabaco tenta usar a voz de autoridade de profissionais da saúde para legitimar produtos. Parece surreal, mas as frases acima foram realmente utilizadas em propagandas publicadas em jornais e revistas durante os anos 1940, 50 e 60, quando os malefícios do fumo, como maior risco de doenças cardíacas ou câncer de pulmão, começavam a levantar suspeitas.
Não surpreende, então, o fato de que essas velhas táticas renascem agora, em pleno século 21. “A história se repete, infelizmente”, lamenta a médica Tânia Cavalcante, secretária-executiva da Comissão Nacional para a Implementação da Convenção Quadro para o Controle do Tabaco no Brasil.
As estratégias ficaram mais refinadas: saem de cena os anúncios publicitários descarados e entram as campanhas disfarçadas em mídias sociais ou, ainda, o contato próximo e personalizado com grupos-chave para o sucesso do negócio — é o que ocorre, por exemplo, com os médicos.
O produto também não é mais o mesmo: como a ciência e a sabedoria popular já estão cansadas de saber, o cigarro comum é muito nocivo à saúde. A indústria, então, investe em novas tecnologias para manter o negócio de pé: os dispositivos de tabaco aquecido e vapers são a grande aposta para arrebanhar novos usuários e converter o maior número possível de clientes fiéis.
Só que, ao contrário do que muita gente pensa, esses produtos modernos, cuja venda é proibida no Brasil, não são inofensivos à saúde. As empresas dessa indústria poderosa aprenderam que uma justificativa para viabilizar os novos lançamentos é o caminho da redução de danos, de que os fumantes necessitam ter uma alternativa entre a cessação do tabagismo e a morte — por isso, sugerem o “caminho do meio”, da “entrega de uma nicotina” com supostamente menos prejuízos.
“Para mim, não há como sequer discutir esses produtos, principalmente porque eles usam os pulmões como uma via de introdução de drogas no organismo”, adianta Tânia Cavalcante.
Em outras palavras, num mundo em que o cigarro comum é um vilão amplamente conhecido, o tabaco aquecido chegaria para ser o mocinho — ao menos do ponto de vista dos fabricantes. O racional é de uma simplicidade assustadora: ora, se esses dispositivos têm supostamente menos substâncias tóxicas, ele seria, em tese, menos nocivo à saúde (apesar da falta de estudos independentes que confirmem isso, diga-se).
Portanto, poderia ser utilizado como uma etapa intermediária nas tentativas de parar de fumar. E quem seria o melhor público para indicá-los como uma espécie de tratamento de abandono do vício? Acertou quem pensou na classe médica, que já é alvo de ações para lá de ostensivas.
O plano ardiloso em ação
A cardiologista Jaqueline Scholz Issa, do Instituto do Coração (InCor), em São Paulo, possui uma das melhores taxas de sucesso na cessação do tabagismo no mundo. Integrando diferentes terapias e um acompanhamento próximo ao paciente, ela e a sua equipe conseguem que até 70% dos fumantes larguem o cigarro.
Por ser referência na área, Jaqueline é frequentemente convidada para eventos de discussão e promoção do tabaco aquecido. Ela conta que já foi muito assediada e algumas dessas empresas queriam até visitá-la no local de trabalho, no InCor.
“Não acho interessante receber essas pessoas, pois, muitas vezes isso é divulgado de maneira que dá a sensação de estarmos endossando aquele produto”, relata a especialista.
Sem dúvida que o trabalho da indústria tabagista não prioriza apenas a doutora Jaqueline: em 2017 e 2019, a PMI Science, divisão de pesquisa e desenvolvimento da Philip Morris sediada em Neuchâtel, na Suíça, que conta com uma equipe de mais de quatrocentos cientistas, técnicos e engenheiros, foi uma das patrocinadoras do Congresso Brasileiro de Cardiologia, a maior conferência dessa especialidade médica no nosso país.
Linhas gerais, esse tipo de evento é realizado em centros de convenções e traz duas estruturas principais: primeiro, as salas onde ocorrem as aulas e as palestras sobre os últimos avanços científicos da área e, segundo, os estandes, que reúnem empresas interessadas no público participante.
As farmacêuticas e fabricantes de equipamentos médicos montam espaços vistosos e cheios de atrativos para receber os médicos e promover os produtos. Há ainda uma intersecção entre esses dois universos: os simpósios satélites são patrocinados pela indústria e abordam temas de interesse delas (como os benefícios de um novo remédio, por exemplo).
No caso dos congressos de cardiologia citados acima, a PMI Science estava presente em todas essas áreas: a empresa tinha um estande de relacionamento e promoveu os tais simpósios satélites. Na edição de 2019, realizada na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, foram duas palestras, uma no dia 20 de setembro, uma sexta-feira, e outra, no dia 21, sábado.
O tema era o mesmo: “Novo cenário: efeitos cardiovasculares do sistema de aquecimento de tabaco em comparação a continuar fumando cigarros”. O porta-voz em ambas foi o médico Reuven Zimlichman, do Instituto de Qualidade em Medicina, de Israel.
A dobradinha de aulas causou estranhamento e foi alvo de muitas críticas durante e após o evento.
“É algo vexatório. Eles [a PMI Science] não são laboratório farmacêutico, muito menos empresa de equipamentos. O médico não pode ser parceiro da indústria do tabaco ou de bebidas. Se fizer isso, ele está rasgando o discurso hipocrático, que define nossa profissão, para assumir um discurso hipócrita”, afirma o pneumologista e sanitarista Alberto José de Araújo, presidente da Comissão de Combate ao Tabagismo da Associação Médica Brasileira (AMB).
O cardiologista Márcio Gonçalves de Sousa, chefe da Seção de Hipertensão Arterial e Tabagismo do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em São Paulo, concorda:
“Em congressos médicos, não existe essa coisa de apresentar a mesma palestra por dois dias, mesmo que o trabalho seja muito bom.”
Ao longo da apuração, a reportagem tentou diversos contatos com a assessoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Cardiologia, a entidade responsável pelo congresso. Porém, não houve resposta ou um posicionamento.
Os médicos que entrevistamos acreditam que o patrocínio da PMI Science tenha sido aprovado pelo departamento de marketing da instituição, sem receber o crivo de uma comissão científica. Porém, sem uma posição oficial, essa versão é apenas uma especulação do que ocorreu.
Também tentamos contato com a Phillip Morris no Brasil, por meio da assessoria de comunicação, mas não obtivemos sucesso.
Para ampliar o território conquistado
O exemplo do Congresso Brasileiro de Cardiologia salta aos olhos pela dimensão e relevância. No entanto não é o único: existem diversos relatos de outras atividades, simpósios e reuniões que discutiram o tabaco aquecido como um braço no tratamento médico da dependência ao cigarro.
Em 17 de maio de 2019, a Faculdade São Leopoldo Mandic, em Campinas, no interior de São Paulo, foi sede do Seminário Internacional de Políticas de Redução de Danos. O evento, que reuniu cerca de 200 estudantes e profissionais de saúde, discutiu as regulamentações sobre as drogas no Brasil de forma mais ampla, mas, também, tocou na questão do tabaco aquecido.
Após solicitação da reportagem, a Faculdade São Leopoldo Mandic enviou a carta de posicionamento abaixo:
O evento foi realizado há cerca de um ano na Faculdade São Leopoldo Mandic, pelo IPADS – Instituto de Pesquisa e Apoio ao Desenvolvimento Social. A faculdade cedeu o local e deu apoio científico na escolha dos palestrantes. O evento foi gratuito e aberto ao público. Os questionamentos em relação a patrocínio devem ser direcionados ao Instituto.
A Faculdade São Leopoldo Mandic tem o compromisso de abordar temas relacionados à saúde e destaca a discussão do assunto de redução de danos tanto do ponto de vista histórico quanto das políticas públicas atuais dentro das disciplinas de sistemas de saúde, atenção primária à saúde e psiquiatria na graduação e no mestrado em saúde coletiva da pós-graduação.
Em 22 de agosto de 2017, a mesma Faculdade São Leopoldo Mandic recebeu uma visita de Nveed Chaudhary, o coordenador de comunicação científica da Philip Morris, que foi conhecer, com direito a um banner de “bem-vindo”, os laboratórios, de pesquisa e o projeto pedagógico, como revela nota publicada no próprio site da instituição. Na comitiva, estavam também representantes do Instituto de Pesquisa e Apoio ao Desenvolvimento Social (Ipads), os mesmos que promoveram o debate sobre redução de danos dois anos depois, em 2019.
Porém os médicos não são os únicos a sofrerem abordagens desse tipo. Outros profissionais de saúde e cientistas no geral passaram pela mesma situação.
“Vemos exemplos não apenas com sociedades médicas, mas com associações multiprofissionais, que incluem químicos, farmacêuticos, toxicologistas…”, observa Alberto José de Araújo.
Isso, aliás, ocorreu antes do Congresso Brasileiro de Toxicologia no ano passado: no dia 28 de outubro de 2019, a Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox) promoveu o I Simpósio Internacional sobre Formas Alternativas de Exposição ao Tabaco. Entre os palestrantes, se destacavam convidados internacionais, que contaram experiências com esses produtos na Inglaterra e no Japão, onde venda é liberada.
Entramos em contato com os responsáveis pelo simpósio e com a própria SBTox, mas não obtivemos retorno.
Palavra de quem entende
Repare: todos os eventos citados acima trazem uma aura acadêmica. Afinal, são feitos em universidades, congressos, simpósios… Alguns, inclusive, trazem pesquisas científicas que tentam justificar a prescrição do tabaco aquecido na clínica médica. O problema, de acordo com os entrevistados para esta reportagem, é que a maioria dos estudos apresenta graves falhas metodológicas.
“Somos defensores da cessação e da não iniciação. Esses dispositivos interrompem as terapias viáveis, vão na contramão da evidência científica”, diz Jaqueline Issa. Portanto, não há dados robustos de que eles trazem a desejada redução de danos.
A principal crítica aos trabalhos divulgados pela indústria é o fato de eles compararem apenas indivíduos que abandonaram o cigarro comum para usar o tabaco aquecido com aqueles que ainda fumam normalmente. O ideal seria que as pesquisas fossem mais amplas. Em outras palavras, elas deveriam comparar fumantes convencionais, usuários dos dispositivos eletrônicos e pessoas que abandonaram a dependência por meio de outros métodos com eficácia comprovada, como os remédios e os adesivos de nicotina (falaremos deles mais adiante).
A especialista em dependência química Stella Regina Martins reforça que a verdadeira taxa de sucesso num tratamento de cessação do tabagismo é abandonar de vez o cigarro — e não a migração para outro dispositivo.
“Muitas vezes, quando você lê as publicações, parece que o produto teve um resultado fantástico, maravilhoso. Daí, vai ler o artigo mais a fundo e percebe que ninguém parou de fumar de verdade”, completa.
Logo, a ideia de que o tabaco aquecido seria menos danoso e, portanto, um estágio intermediário, merece todas as ressalvas.
“Você não tem que fazer troca alguma. Isso é o mesmo que dizer para um sujeito pular do quinto andar em vez do vigésimo, porque isso vai trazer um resultado diferente”, afirma Alberto José de Araújo.
O Instituto Cochrane, um dos mais conhecidos centros de evidência científica no mundo, traz muitas dúvidas sobre o uso de dispositivos eletrônicos como tratamento médico. Num artigo de 2016, os autores escrevem:
“Nossa revisão atualizada não encontrou nenhum estudo randomizado novo com resultados de longo prazo a respeito da efetividade dos cigarros eletrônicos no auxílio da cessação do tabagismo. Entretanto, essa é uma área de pesquisas bastante ativa, com um grande número de estudos em andamento que contribuirão para acrescentar novas evidências nos próximos anos.”
Esse trecho do artigo revela um ponto fundamental de toda essa questão: antes de sugerir o tratamento A ou B, é necessário que se construa uma base sólida de conhecimento a respeito deles, feita por cientistas sem conflitos de interesse. Só assim, será possível indicar o melhor caminho para largar o cigarro sem cair em efeitos colaterais desconhecidos.
Mais perigos à vista
A discussão ganha tons ainda mais dramáticos no atual cenário, em que uma pandemia arrasa o globo. Falamos da covid-19, doença provocada por um tipo de coronavírus, que já afetou mais de dezessete milhões de pessoas no planeta e provocou mais de 670 mil mortes (no Brasil. são mais de 2,6 milhões infectados e mais de 91 mil pessoas mortas). Como já se sabe, essa nova infecção é particularmente perigosa em alguns grupos, como idosos, portadores de diabetes e pessoas com doenças cardíacas ou pulmonares.
E é justamente aí que nossa história se conecta: cigarros, sejam eles de qualquer tipo, estão relacionados a uma série de encrencas ao pulmão e ao coração, como câncer, enfisema, Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC) e infarto. De forma indireta, é possível afirmar que indivíduos fumantes estão sob maior risco de complicações por esse novo vírus.
Mas não só eles que preocupam: precisamos pensar, também, nos mais jovens e num mundo antes e depois da pandemia. Foi o que fez, aliás, o Surgeon General, o cargo de liderança máxima do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos. Quem assume esse posto fica responsável por ditar as políticas governamentais a respeito de temas de saúde que afetam a população dos Estados Unidos. No ano passado, o anestesista Jerome Adam, que é o atual ocupante desse cargo, escreveu:
“O recente aumento no uso de cigarros eletrônicos entre jovens, que foi incentivado pelo aparecimento de novos tipos de dispositivos recém-lançados no mercado, é causa de grande preocupação. Precisamos agir agora para proteger a saúde dos jovens de nossa nação.”
Essa fala foi motivada por uma verdadeira epidemia de mortes por problemas respiratórios em jovens estadunidenses que utilizavam aparelhos desse tipo. Até fevereiro de 2020, antes da explosão da pandemia, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos já calculava 2 807 casos de hospitalizações por lesões pulmonares provocadas pelo uso de cigarros eletrônicos e vaporizadores. Desses casos, 68 mortes foram confirmadas.
Isso mostra a outra face de toda essa história: mais do que apenas uma transição para tabagistas que querem parar de fumar, esses aparelhos se tornam atrativos para adolescentes e adultos jovens, que acabam iniciando o vício por meio deles.
Num mercado sem padronização e com venda livre em alguns países, pouca gente sabe diferenciar os tipos de produto e, no meio da confusão, compram gato por lebre e misturam substâncias tóxicas.
O que funciona de verdade?
Por fim, vale reforçar que, diferentemente dos Estados Unidos e da Inglaterra, esses produtos são proibidos no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. Por mais que tenham ocorrido diversas reuniões e uma constante pressão da indústria para a mudança das regras atuais, tudo permanece igual por aqui. Portanto, não tem como falar de tabaco aquecido como uma terapia médica num país em que isso não está sequer regularizado pelos órgãos competentes.
A boa notícia é que há outras expectativas, com bases científicas, para quem quer parar de fumar. O primeiro passo é procurar um médico dessa área, que vai fazer uma consulta completa e entender as motivações, e histórico de saúde do paciente. Na sequência, o médico inicia um tratamento integrado, que pode envolver medicações, adesivos de nicotina e terapia com psicólogos.
“Precisamos trabalhar a dependência química e emocional para diminuir a sensação de abstinência e sofrimento”, ressalta Jaqueline Issa.
A indústria do cigarro é forte e faz campanhas poderosas, capazes até de convencer um médico ou outro (atenção em cada caso). Porém o antídoto para esse veneno é que a ciência de interesse público prevaleça sobre os interesses econômicos privados.