Anvisa: cerca de 90% das reuniões da diretoria são com empresas

Na disputa pela agenda dos dirigentes da agência, o setor privado é prioridade, enquanto sociedade civil reclama da falta de escuta

Levantamento feito pelo Joio mostra que cerca de 90% dos compromissos dos dirigentes da Anvisa em 2019 foram com empresas e associações do setor privado. Em primeiro lugar vem a indústria farmacêutica, seguida por fabricantes de alimentos, de equipamentos médicos e hospitalares, de agrotóxicos e de cigarros. Organizações de fachada também entram, com frequência, nos compromissos dos cinco diretores da agência.

Nossa contabilidade se baseia nas agendas disponíveis na página da entidade e abrange todo o ano passado. Além dos diretores, analisamos os compromissos da Gerência-Geral de Alimentos, subordinada à Segunda Diretoria. Dividimos os compromissos em quatro partes: reuniões com a indústria; reuniões com a sociedade; reuniões com representantes de outros órgãos públicos; e, por fim, reuniões com grupos de fachada. Computamos apenas os encontros com agentes externos, ou seja, reuniões entre pessoas da própria agência foram descartadas.

Parte dos compromissos dos dirigentes com o setor privado corresponde, sem dúvida, ao caráter regulatório da agência, criada em 1999 com a finalidade institucional de “promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e consumo de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária”. 

Mas, para além desse caráter institucional, a proximidade da Anvisa com o setor é cada vez mais explícita no discurso e nas decisões. Nas mãos da agência estão decisões importantes sobre registros de medicamentos, de alimentos e de dispositivos eletrônicos de tabaco. Todos os temas atraem um intenso lobby.

Harmonização

A proporção assimétrica de encontros entre a agência e a indústria versus sociedade civil já seria suficiente para deixar uma pulga atrás da orelha. Mas, publicamente e a portas fechadas, registramos uma visão recorrente de que a Anvisa serve para “harmonizar tensões” entre saúde pública e o setor regulado. Diretores externam com frequência a ideia de que é possível conciliar as duas questões.

Foi essa, também, a posição externada ao Joio por um assessor de imprensa da gestão de Jarbas Barbosa (2015-18). Em 2017, durante uma conversa presencial na sede da agência, no Distrito Federal, ele relatou que a missão institucional e o principal desafio cotidiano é o “amortecimento” das disputas entre sociedade e empresas. 

Única integrante da diretoria de 2019 ainda na Anvisa, Alessandra Soares disse para o Joio que a agência trabalha “com o setor regulado e para o cidadão”. A quantidade de reuniões com a indústria representa, para ela, uma forma de compreender todos os processos e demandas do setor para conseguir regular os produtos e serviços que ele oferece.

“Alguém vai ficar insatisfeito. As demandas às vezes são conflitantes e a agência ter que ter uma definição do papel dela”, afirmou Alessandra em entrevista pouco antes do período de isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19. A conversa foi durante o Anufood Brazil 2020, realizado pela Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) e pelo Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital).

“Quando as pessoas pedem reunião lá na segunda diretoria, eu costumo dizer que eu não atendo tão rapidamente porque é uma agenda pesada. Mas, se eu atendo um deputado, eu tenho que atender uma mãe”, disse a diretora. “Nós somos pouquíssimo demandados pela sociedade”, concluiu.

Alessandra Soares palestrou sobre “O papel da Anvisa na indústria de alimentos e bebidas”, ao lado de João Dornellas, presidente da Abia, de Igor Castro, diretor Técnico-regulatório da Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes e Bebidas Não Adoçadas (Abir), além de Márcia Terra, nutricionista e membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Nutrição e Alimentação – se não lembra dela, vale conferir nossa reportagem.

O Joio tenta desde 2017 uma entrevista com o diretor-presidente e com a gerente-geral de Alimentos, Thalita Antony de Souza Lima. Nesse período, a agência teve três presidentes diferentes e nenhum quis falar sobre os debates relativos à rotulagem de alimentos.

Tanto William Dib, presidente durante parte do mandato de Michel Temer, como Thalita alegaram que o tema ainda estava em discussão e, portanto, não seria apropriado conceder uma entrevista. Ambos, porém, participaram de alguns eventos organizados pela indústria para discutir exatamente esse assunto. Dib foi mais longe: esteve em uma reunião entre a Abia e Temer na qual a organização empresarial pediu uma intervenção do Palácio do Planalto nessa frente. Na época, o presidente da República teceu ameaças públicas contra a possibilidade de adoção de alertas na parte frontal das embalagens.

“Quando existe qualquer tipo de conflito entre os interesses do setor regulado e os interesses da sociedade, o governo tem que arbitrar em interesse da sociedade, e não atuar em conjunto só com o setor regulado. Acho que aí é um erro de postura”, diz José Agenor Álvares, ex-ministro da Saúde e diretor da Anvisa entre 2007 e 2013.

Sem comentar questões específicas, ele conversou conosco, por telefone, alegando ter sido sempre uma “voz destoante” da ideia de que órgãos regulatórios e as empresas precisavam agir em parceria. “A gente tinha muito esse cuidado, de não deixar que a regulação fosse apenas para facilitar a vida do setor regulado no que diz respeito ao comércio e acúmulo de benefício a determinado segmento”, conclui. Mas pondera: “É bobagem a gente achar que uma agência de regulação é independente e autônoma. Ela não é nem independente, nem autônoma porque tem que seguir as políticas públicas.”


Em 2019, o campeão de encontros com o setor regulado foi o dentista Fernando Garcia, responsável pela coordenação da quarta diretoria da Anvisa, que tem a atribuição de Análise e Julgamento das Infrações Sanitárias, Autorização de Funcionamento de Empresas, Gerência de Laboratórios de Saúde Pública e de Inspeção e Fiscalização Sanitária.

No meio do caminho

Essa tentativa de “harmonização” encontra resultados práticos. A Anvisa debate desde 2014 a adoção de um sistema de rotulagem instalado na parte frontal das embalagens de alimentos para informar sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras. Trata-se de uma medida de desestímulo ao consumo de produtos ultraprocessados, cada vez mais associados à epidemia de doenças crônicas (diabetes, enfermidades cardiovasculares, câncer). 

“Nessa reunião eu estava presente e fiquei conversando com o presidente da Abia [Associação Brasileira da Indústria de Alimentos] na entrada. Ele estava muito satisfeito. Saíram para almoçar com alguns servidores da Anvisa”, conta Paula Johns, diretora executiva da organização não governamental ACT Promoção da Saúde, sobre a última reunião aberta do processo de revisão da rotulagem nutricional, em 27 de agosto de 2019. Nota: a ACT é uma das financiadoras de O Joio e O Trigo, com fundos para investigações livres e irrestritas. 

Em 2018, um primeiro relatório técnico da agência reconheceu o melhor funcionamento dos sistemas de alertas criados no Chile. No ano seguinte, porém, a agência se inclinou pela adoção de lupas, um modelo nascido no Canadá e ainda sem testagem na prática. Como revelamos, o órgão público distorceu evidências científicas na tentativa de fundamentar a decisão. 

“Ficou claro para todos participantes que as conversas com maior profundidade e as decisões estão acontecendo a portas fechadas, em especial com representantes do setor regulado, que saiu muito tranquilo e satisfeito com os encaminhamentos da reunião”, registrou um relatório da equipe da ACT.

“Já ouvi muitas vezes que precisamos ir [na Anvisa] com mais frequência, pois normalmente quem vai é o setor regulado. Por outro lado, a sensação é de que não há escuta de fato. É como se fosse uma reunião proforma, que precisam cumprir como rito na parte do processo regulatório”, conta Johns. 

De acordo com a socióloga, a agência poderia ter “diálogos mais propositivos baseados nas melhores evidências sem conflito de interesses” com as universidades e a sociedade civil. Com o setor regulado, deveriam “negociar prazos e escutar”. 

Ivo Bucaresky, que foi diretor entre 2013 e 2016, entende que a porcentagem de reuniões da atual diretoria com a sociedade é baixa, mas avalia que existe uma co-responsabilidade. “Eu nunca fiquei analisando sobre esse aspecto: a agenda pela porcentagem. Acho 10% pouco. Com certeza na minha agenda a sociedade civil passava mais que 10%… A sociedade não demanda, mas passa por falha da Anvisa também de mostrar que é mais aberta”, comenta, esclarecendo que não acompanha em detalhes a agenda dos atuais dirigentes.


Para Igor Britto, diretor de Relações Institucionais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), há uma busca da Anvisa para estabilizar as relações entre os setores envolvidos no processo regulatório, sempre priorizando diminuir a resistência criada pela indústria. 

“Temos uma nítida visão de que a agência se submete, se mostra vulnerável à pressão da indústria. Em outros momentos nós vimos a Anvisa não ter qualquer receio de adotar decisões que desagradassem interesses econômicos, mostrando a autonomia da agência regulatória. A agência deveria simplesmente adotar as decisões que são as mais técnicas, mais corretas, adequadas para o interesse da sociedade. Mas a gente visualiza que a preocupação com gastos, impactos econômicos, vendas, acabam tendo um peso dentro das decisões”, relata.

No final da década passada, a agência chegou a propor uma regulação completa para a área de alimentos, prevendo sistemas de rotulagem que ajudassem a promover escolhas e restrições à publicidade de produtos com excesso de sal, açúcar e gorduras. O caso foi judicializado pelo setor privado e, desde então, é usado como ameaça em documentos e negociações. Foi o que se deu na discussão sobre rotulagem, quando a Abia avisou que a Anvisa estava extrapolando suas atribuições. 

A baixa demanda da sociedade civil na agenda de diretores da agência, segundo Britto, pode ser um reflexo da falta de estrutura dessas organizações em Brasília, mas não pode ser vista como justificativa para a falta de equilíbrio nas decisões tomadas. “A Anvisa deve compensar isso buscando ouvir outras entidades e setores afetados. Caso contrário, ela vai ficar enviesada”, pondera.

O que pensam os ex-diretores da Anvisa

“Na minha gestão, todos os segmentos que me procuravam, eu recebia. Inclusive do tabaco, que eu era radicalmente contra”, conta Agenor Álvares. O ex-diretor defende que uma boa agência reguladora, que cumpre seu papel, precisa dialogar com todos os campos da sociedade e principalmente com o que ele chama de “três eixos”: sociedade, setor regulado e o governo. 

Dentro da Anvisa, seus principais embates foram no campo da toxicologia, mais especificamente na análise de agrotóxicos e, particularmente, na regulação de produtos derivados do tabaco. “A toxicologia e o tabaco são áreas de grande pressão política e lobbies muito fortes, alguns mundiais e com interesses muito grandes”, conta.

Ivo Bucaresky declara-se contrário à visão de parceria entre o órgão público e as empresas. “A Anvisa tem que ser transparente. Tudo tem que ser muito bem debatido. As consultas públicas tem que ser amplas e concretas. A sociedade tem que entender o que está acontecendo”, diz, fazendo a ressalva de que não acompanha de perto a agenda dos atuais dirigentes.

A falta de continuidade

A Assessoria de Relações e Articulação Institucional (Asrel) era um canal direto de comunicação entre a sociedade civil e a Anvisa, criado durante o mandato de Dirceu Barbano (2008-14) e extinto pelo sucessor Jarbas Barbosa. “Eu acho que é um erro, acho que isso também já cria uma dificuldade”, relatou Buscaresky.

Agenor Álvares declarou surpresa em saber que a Assessoria foi extinta. “Isso funcionou bem. Principalmente em relação aos movimentos que tinham mais organicidade porque passou a escutar aquele segmento de forma mais organizada”, conta. “A gente tem que ter um canal de escuta, mas não pode ter um formalismo ‘só entro pela Asrel’, a minha fala só pode ser escutada por esse ou aquele segmento.”

Hoje a comunicação entre a Anvisa e a sociedade civil é feita através do Parlatório. Os grupos interessados devem fazer uma solicitação de reunião para as áreas técnicas da Anvisa por meio da internet, no Sistema de Agendamento Eletrônico de Audiências e esperar até receberem um email com a confirmação.

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