De um lado, setores do agronegócio querem liberar a venda de imóveis rurais no mercado internacional; de outro, ruralistas rechaçam PL que facilita compra de terras por estrangeiros
O presidente Jair Bolsonaro não gostou de saber que novas regras, mais flexíveis para a venda de terras a estrangeiros, avançam no Congresso Nacional. “Se aprovar, tem o veto meu. Não podemos permitir que o Brasil seja comprado”, declarou, em live presidencial via Facebook, em 24 de dezembro de 2020.
A declaração foi feita logo após um projeto de autoria do senador Irajá Abreu (PSD/TO), que flexibiliza a estrangeirização de imóveis rurais no país, ser rapidamente aprovado com amplo apoio no Senado e despachado à Câmara, onde empacou à espera da criação de uma comissão especial após a fala do presidente.
Se promulgada, a proposta de Abreu permitirá que qualquer pessoa jurídica brasileira, mesmo as controladas por fundos de investimento, empresas transnacionais e bancos estrangeiros comprem terras sem limitações, bastando ter ou abrir um CNPJ no Brasil. O projeto, no entanto, impõe restrições a compras por organizações não governamentais, fundações privadas e fundos controlados por Estados estrangeiros, e à aquisição de territórios no bioma amazônico, que devem ter autorização do Conselho de Defesa Nacional.
Regulada pela mesma lei desde 1971, hoje a compra e o arrendamento de terras por estrangeiros no Brasil é limitada a um quarto da área de um município – e, dentro desse pedaço, cada nacionalidade pode deter um máximo de 10% desse território.
A negativa de Bolsonaro à lei ressoou em sua base ruralista, que retomou alegações de que o país poderia ser “vendido à China” e criou alertas de que a especulação aumentaria os custos de produção e preço das terras para os pequenos e médios agricultores. Parte das entidades ligadas ao agronegócio como a Aprosoja (Associação Brasileira dos Produtores de Soja), a Andaterra (Associação Nacional de Defesa dos Agricultores, Pecuaristas e Produtores da Terra), a Sincal (Associação dos Cafeicultores do Brasil) e vários outros sindicatos rurais que participaram do movimento “O agro e o povo pela democracia”, que aglomerou centenas de ruralistas pró-Bolsonaro em Brasília em meados de maio, declarou ser contrária à lei proposta por Abreu. Uma pesquisa da Aprosoja com mais de 6 mil associados atingiu 96% de rejeição ao projeto.
“Se o preço da soja sobe, o produtor vai querer expandir em terra, mas com fundos internacionais para comprar e concorrer, os custos aumentam. O interesse deles é mais abrir fazendas baratas e especular mais com a soja do que com a terra”, analisa o geógrafo Fábio Pitta, professor da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador da financeirização do agronegócio.
Mas a opinião do setor sobre o projeto não é unânime. Entidades tradicionais como a Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA), a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG) e a Sociedade Rural Brasileira o apoiam, bem como advogados e economistas ligados ao mercado de ativos agrícolas. Já a Frente Parlamentar da Agropecuária, que reúne 39 senadores, quase metade da Casa, votou a favor do projeto no Senado.
Antes de ser criticado pelo presidente, o projeto havia sido aprovado com o aval de membros do Executivo ligados ao mercado financeiro, como Paulo Guedes, ministro da Economia, e Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, além da ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento Tereza Cristina.
A lei proposta por Irajá Abreu interessa a bancos que buscam abrir novas frentes de crédito para agroexportadores investirem em tecnologia – ou seja, máquinas, agrotóxicos e químicos. Mais investimentos geram mais dívidas, que exigem uma produtividade muito acima da capacidade dos agricultores para serem pagas. Com isso, a solução é mecanizar ainda mais a colheita e também expandir em áreas de plantio, o que cria novas rodadas de expansão de fronteiras, endividamentos e investimentos, explica Pitta.
Esse endividamento crescente para se investir em mais produtividade em áreas cada vez maiores é um dos fatores que associam a produção de alimentos à especulação. “Isso pode levar ao estouro de bolhas financeiras”, alerta o geógrafo. Em 2020, 95% da dívida bilionária do setor no Brasil se concentrava no agronegócio, enquanto apenas 5% na agricultura familiar.
Bancos e fundos à margem da lei
A pressão do mercado financeiro por uma lei como a proposta por Irajá existe ao menos desde 2010, quando uma brecha que permitia a venda de terras para estrangeiros foi barrada pelo governo federal. Na época, um parecer da Advocacia Geral da União considerou que empresas domiciliadas no Brasil, mas controladas por sócios, acionistas ou empresas localizadas no exterior, devem ser consideradas estrangeiras e submetidas às restrições da lei de 1971. Para o atual presidente do Senado e entusiasta da nova proposta, Rodrigo Pacheco (DEM/GO), a norma vigente traz “muita insegurança jurídica para o setor produtivo, afugentando o investimento estrangeiro e a implantação de importantes projetos.”
Hoje, investidores da China, EUA e Europa aguardam ansiosamente pela aprovação da iniciativa, que removeria tais limitações. No entanto, investimentos do tipo já operam no país. A proibição, apesar de existir, não impediu bancos e fundos de investimento de atuarem à margem da lei em parceria com bilionários e bancos brasileiros. Fundos de pensão norte-americanos e ruralistas argentinos em parceria com o magnata Elie Horn, do grupo Cyrella, e bancos como XP e BTG Pactual, atualmente detêm mais de 300 mil hectares em terras irregulares no Cerrado por meio de consórcio com a Brasilagro, empresa especializada na prática irregular, investigada pelo Incra desde 2016 e suspeita de desmatar mais de 21 mil hectares em mata nativa no país, com multas de até R$ 5 milhões acumuladas no Ibama.
Em outro caso emblemático, os fundos de pensão TIAA, com mais de US$ 1 trilhão em ativos geridos para a previdência de educadores e pesquisadores norte-americanos, e da Universidade de Harvard adquiriram mais de 400 mil hectares em terras no Matopiba, mesmo após o parecer da Advocacia Geral da União (AGU). Parte do negócio foi intermediado pela Radar, empresa do bilionário Rubens Ometto, magnata açucareiro da Cosan, que adquiriu ao menos 22,8 mil hectares de Euclides de Carli, suposto mega-grileiro acusado de roubo de terras e assassinatos.
“Há uma pressão do capital internacional porque eles querem investir aqui para produção agrícola e economia de água. Você pode produzir soja em outros lugares, mas não tem água. Aqui tem. O mesmo para o gado”, afirma o pesquisador e professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC Olympio Barbanti. Esse tipo de investimento também seria um modo de outros países tercerizarem seu consumo de recursos e emissão de carbono para o Brasil, deixando seus próprios países ilesos de eventuais danos ambientais.
A contrariedade a essa pressão por parte do bolsonarismo, no entanto, não é virtuosa. “Eles [o setor contrário à internacionalização] pensam que, se é para conceder novas terras e abrir novas fronteiras, para mais cerrado e outros biomas serem desmatados, que abram para eles, e não para os estrangeiros. É um nacionalismo voltado ao próprio umbigo, em que cada um quer proteger o seu, ou ampliar o seu e sua terra”, critica a nutricionista Islandia Bezerra, presidenta da Associação Brasileira de Agroecologia.
Após a insegurança financeira da crise de 2008, causada pelo mercado imobiliário dos Estados Unidos, bancos e fundos buscaram refúgio em ativos agrícolas, tidos como mais seguros por serem cotados nas bolsas de valores e estarem, na época, valorizados pelo boom das commodities. Olympio Barbanti relata que esse mercado vem sendo financeirizado desde o final do século 19 por dois fatores principais: a necessidade de altos investimentos e a demora para um retorno desses valores.
Como previsões da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) apontam que o Brasil se tornará o principal produtor global de soja e açúcar até 2025, os imóveis rurais do país tornam-se atrativos. De fato, a expectativa é grande. Até 2060, a população global deve crescer em quase 2,5 bilhões de pessoas, acompanhada por uma alta na demanda por terras e alimentos.
Menos empregos, mais ultraprocessados
Com o contraditório slogan “Terra para + Empregos + Alimentos”, criado pelo próprio Irajá Abreu, o projeto de lei promete o exato oposto daquilo que deve entregar. A agricultura intensiva voltada para a produção de commodities, foco do investimento estrangeiro, é revertida quase totalmente à exportação. Esses alimentos, como a soja e o milho, apenas chegam às casas brasileiras na forma de ultraprocessados.
“Produtos industrializados estão sendo cada vez mais aceitos em diversos países, duram mais nas prateleiras, e a população está crescendo, então isso atrai o interesse do grande capital financeiro”, afirma Barbanti. E como uma imensa parte da monocultura é mecanizada, pouquíssimos empregos são gerados – a prática, inclusive, aumenta o desemprego no campo.
“Essa capacidade de produzir grãos que o mundo inteiro poderia comprar agravou ainda mais a visão de que quanto mais terra, melhor e maior a geração de riqueza, mas para quem? É quando temos uma explosão da grilagem, de se forjar titularidades e expulsar pessoas daqueles territórios”, explica Bezerra. A nutricionista considera que a grilagem move tanto os latifundiários e agroexportadores interessados no capital estrangeiro quanto os pequenos e médios produtores que preferem evitar mais concorrência por áreas.
Esse processo de tomada de terras, que envolve a desapropriação de localidades e o desmatamento, é incitado pela expectativa de interesses imobiliários. “O capital financeiro é sempre uma visada para o futuro, então [se] o grileiro percebe que vai vir uma demanda por área, ele grila antes da demanda chegar. Isso é especulação. Não no sentido moral, mas de uma previsão de algo que pode acontecer no futuro. O capitalismo é assim”, esclarece Fábio Pitta.
Na visão dos pesquisadores, nem a internacionalização das terras brasileiras ou o modelo atual de expansão agrícola para produtores nacionais priorizam o meio ambiente e a soberania alimentar, isto é, o direito humano a uma alimentação adequada, que pressupõe o acesso da população a uma variedade de alimentos que não sejam industrializados e, especialmente, ultraprocessados.