Os impactos da carcinicultura nos territórios e na vida das comunidades costeiras do Estado vão de problemas de saúde em trabalhadores a contaminação das águas e peixes e desmatamento
Camuflada pela poeira da estrada de barro que liga o ponto do transporte interestadual até o povoado em que mora no município de Brejo Grande, litoral norte de Sergipe, Maria* carrega sua pasta de documentos com o cuidado de quem leva um filho: debaixo do braço. “Sem esses papeis, eu não consigo me aposentar. Já perdi as contas de quantas vezes eu volto sem resposta pra casa, pensando como é que eu vou dar de comer a meus filhos se eu não posso trabalhar”. Maria é marisqueira, ofício que aprendeu com sua mãe ainda criança, quando era levada para a maré.
A sua frustração se deve a mais um retorno do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) sem a certeza de sua aposentadoria. Com visíveis alterações cutâneas distribuídas ao longo das pernas, dores nas articulações e constantes infecções ginecológicas, Maria recebeu orientações médicas para abandonar a coleta de mariscos, pois os problemas de saúde se intensificam nos dias de trabalho pelo manguezal. Principalmente devido ao contato com substâncias utilizadas na realização da carcinicultura, atividade econômica de forte impacto socioambiental nas áreas litorâneas. O preço da criação de camarão no litoral de Sergipe é alto: problemas de saúde nos trabalhadores, contaminação das águas, desmatamento do manguezal e prejuízos à pesca artesanal.
“Tem uns produtos químicos que eles colocam nos viveiros e quando soltam as águas, vai tudo para o mangue. Mata os caranguejos, os peixes, não fica um bicho vivo. E quando a gente pisa lá, volta assim, cheia de problema. É um pó que usam pra matar o camarão”, destaca Maria.
O pó a que ela se refere é o metabissulfito de sódio, um agente oxidante que, em contato com a água, sofre uma reação química e libera o gás dióxido de enxofre. Quando atinge a concentração de 4ppm (parte por milhão), é considerado de insalubridade máxima pela Norma Regulamentadora NR 15 do Ministério do Trabalho e Emprego do Governo Federal. O oxidante é utilizado para evitar a formação da melanose, manchas negras que tornam o camarão menos propício à venda e compra. “É quando o camarão trinca, fica com a cabeça cinza. E aí ninguém compra”, explica Maria. A substância é aplicada no camarão ainda vivo pelos criadores, geralmente na etapa da despesca.
De acordo com o biólogo Gabriel Barros Gonçalves de Souza, pesquisador e professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano (PPDRU) da Universidade Salvador, da Bahia, o uso da substância é recorrente na criação de camarão, mesmo que produtores neguem. “Muitos usam de forma inadequada, sem respeitar as devidas proporções de aplicação. Os resíduos do uso dessa substância causam mortalidade de seres vivos nos estuários e manguezais. Há estudos que indicam que o uso do metabissulfito deixa uma residual de dióxido de enxofre no camarão em valores acima do legislado, podendo causar problemas à saúde de quem consome”, explica.
Da lama ao cal
A faixa litorânea do Estado de Sergipe é composta por 27 praias em uma área de 163 quilômetros e abrange 23 municípios, classificados como litorâneos, costeiros e estuarinos e subdivididos em Litoral Norte, Centro e Sul.
De acordo com o Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2017, Sergipe contabiliza 380 unidades de produção, distribuídas em 20 municípios. Nossa Senhora do Socorro, Brejo Grande, São Cristóvão e Pacatuba são os maiores produtores em quantidade de empreendimentos, com 133, 98, 33 e 25 unidades, respectivamente.
Em todo o litoral, é comum ouvir relatos de pescadores, marisqueiras e agricultores familiares sobre os prejuízos causados pelas substâncias químicas utilizadas na carcinicultura. “O material que se usa nos viveiros deve ser algo tóxico, porque já vimos casos de pessoas que ficaram até cegas ou com doença de pele, e tudo isso depois desse trabalho. Não tem nada que proteja a pele, e eles falam que não usam nada além do cal, mas se é só cal, então o cal faz muito mal. E quem trabalha é por diária, não tem direitos (trabalhistas), e nem mesmo tem médico para dizer o motivo da doença, porque os donos desses viveiros são pessoas de poder, políticos, gente grande, quem é que vai mexer? Não tem diálogo”, relatou Jean*, que trabalha em um empreendimento de carcinicultura no litoral sergipano e conversou com a reportagem de O Joio e o Trigo sob condição de anonimato.
Pedro*, outro trabalhador que presta serviços para a criação de camarão, contou que, por causa da falta de equipamentos de proteção, há suspeitas de doenças graves ocasionadas pela atividade. “Nenhum dos produtores fornece EPI- equipamento de proteção individual- para os trabalhadores e já ouvimos casos de câncer de pele e de pulmão que podem ter a ver com a exposição ao calcário e a essas substâncias misteriosas que eles colocam.” Para ele, esses carcinicultores deveriam ser fiscalizados para que os trabalhadores pudessem fazer uso dos EPIs diariamente. “O município não oferece um atendimento de saúde à população. Não temos também uma regra que dita que o trabalhador possa cobrar do patrão os seus direitos trabalhistas. É muito difícil, quem trabalha com carteira assinada é um ou dois, o resto é tudo mão de obra clandestina, recebem por diária e pagam muito pouco”, afirma.
As denúncias de Jean, Pedro e de outros trabalhadores da indústria carcinicultora sobre os impactos à saúde ocasionados na criação de camarão se confirmam em pesquisas e estudos de caso acompanhados pelo Núcleo de Pesquisas em Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (TRAMAS), da Universidade Federal do Ceará (UFC).
As longas jornadas a que são submetidos, em condições de intenso esforço físico e desconforto térmico, exposição à radiação infravermelha e ultravioleta e a inalação de substâncias químicas como o metabissulfito de sódio e os gases resultantes de sua diluição em água, são apontadas como a principal causa de acidentes, lesões de pele e danos às vias aéreas. Situações mais crônicas de exposição e inalação podem levar a óbito, como apontam artigos e pesquisas realizadas pelo Núcleo TRAMAS no litoral cearense.
“Em exposição subaguda e crônica, há registros de bronquite crônica, enfisema pulmonar e infecções respiratórias frequentes. Podem ocorrer alterações dos dentes (amarelamento do esmalte e erosões dentárias) e distúrbios das gengivas. Distúrbios metabólicos como desordens no metabolismo das proteínas, carboidratos, deficiências de vitaminas B e C têm sido encontrados”, aponta o artigo assinado por pesquisadoras do TRAMAS.
Jornadas noturnas e exaustivas
Também há denúncias de que trabalhadores aplicam calcário sem equipamentos de proteção individual em meio à exposição à forte luz solar, uma combinação explosiva para a pele, os olhos e as vias aéreas. Além disso, “para minimizar os efeitos da despesca sobre a saúde do camarão que será comercializado, a atividade deve ser realizada à noite, o que demanda que esses trabalhadores cumpram uma jornada noturna e exaustiva até o dia seguinte e que muitas vezes totalizam 24 horas ininterruptas”, explica a médica e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), Raquel Rigotto, que coordena o Núcleo TRAMAS e integra a Rede Brasileira de Justiça Ambiental.
De acordo com ela, a manipulação de produtos como o metabissulfito de sódio e o calcário, embora de alta periculosidade, é apenas um componente, e ao mesmo tempo, reflexo, do modus operandi da carcinicultura nas zonas costeiras. Ela afirma que o próprio processo de desmatamento do mangue, um ecossistema de função estratégica para a segurança e soberania alimentar das comunidades costeiras, representa a primeira etapa de uma cadeia desastrosa para os ciclos da vida marinha.
Como a criação atende à lógica da produtividade, há carcinicultores que, em três meses, chegam a produzir 5 toneladas de camarão. O resultado da produção é a destruição do manguezal e dos modos de vida que dele dependem. Para combater doenças infectocontagiosas geradas por essa superpopulação em confinamento, Rigotto explica que os criadores aplicam antibióticos, ingeridos por meio das rações e também ficam no fundo dos tanques. “No momento da despesca, esses antibióticos são jogados na maré junto com o metabissulfito, causando a mortandade de caranguejos, sururus e outros mariscos, além de afetar diretamente a saúde das marisqueiras que dependem do mangue para viver”, explica a médica.
Impactos socioambientais
A criação de camarões em viveiros também leva a danos ambientais e socioeconômicos, como aponta estudo realizado junto ao Departamento de Ecologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS) em 2018. Somente entre os anos de 2002 e 2018, foram perdidos cerca de 129 hectares de mangue no município de Pacatuba, litoral norte de Sergipe onde se localiza a Reserva Biológica de Santa Isabel. Ao passo que, no mesmo período, os viveiros aumentaram sua ocupação em cerca de 125 hectares, de acordo com a pesquisa “Impactos Socioambientais da Carcinicultura nos Povoados Ponta dos Mangues e Boca da Barra, Pacatuba/SE”, realizada junto ao Departamento de Ecologia da UFS.
Uma análise físico-química da água realizada pelo mesmo estudo no Cana Parapuca, região estuarina que sofre a influência dos viveiros, apontou valores fora dos limites aceitáveis para estuários, determinados pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA, 2005), quanto ao oxigênio dissolvido (OD), à turbidez, e ao Potencial Hidrogeniônico (pH), fatores ambientais que indicam a saúde (ou não) dos sistemas aquáticos. A turbidez da água, de acordo com o estudo, indica a presença de matéria orgânica em decomposição, como fezes, restos de animais mortos e alimentos fornecidos e não consumidos pelos camarões.
Para a instalação dos tanques de carcinicultura, é realizada uma grande alteração na paisagem da região, como explica o biólogo e pesquisador Gabriel Barros. O manguezal é destruído, desmatado e aterrado e parte da água do estuário, que é uma região de transição entre rio e mar, é desviada para abastecer esses mesmos tanques. “Isso, por si, já implica em enormes prejuízos a este ambiente.
O pesquisador destaca ainda os impactos da disseminação de espécies exóticas para o equilíbrio ambiental. O camarão mais cultivado na carcinicultura é o camarão-branco (Litopenaeus vannamei). Essa espécie não é nativa da região, e sim originária do Pacífico, e acabou sendo introduzida em diversas áreas do Brasil em função de escapes dos tanques de carcinicultura. “Espécies exóticas ou invasoras, ou seja, não nativas, representam riscos ao equilíbrio ambiental dos locais onde elas são introduzidas. Isso pode acarretar também em prejuízos sociais e econômicos, afetando a dinâmica pesqueira e de outras atividades. Há inúmeros exemplos de espécies exóticas que vêm causando estrago em diferentes localidades ao redor do mundo, como por exemplo o peixe-leão, coral-sol e mexilhão dourado, entre outros”, explica.
Cárceres aquáticos e o veneno no prato
O processo produtivo da carcinicultura segue quatro etapas: a preparação do viveiro, o povoamento, o manejo e a despesca. A preparação do viveiro se inicia a partir do momento em que o produtor obtém a Licença de Operação junto ao órgão estadual de fiscalização ambiental. Essa fase de implementação dos tanques é seguida pelo povoamento, através da produção de pós-larvas. Adquiridas nos laboratórios em sacolas plásticas com oxigênio, as larvas passam cerca de 20 dias sendo alimentadas em uma espécie de tanque-berçário, até atingirem a chamada fase juvenil (pós-larvas), quando são colocadas nos viveiros maiores. Para cumprir o esperado “engorda” em um curto espaço de tempo, os camarões juvenis (machos e fêmeas) são confinados sem luz natural – estresse que faz com que acasalem de forma ininterrupta – e precisam de muita proteína, que compõe as rações na rotina de manejo.
O tipo de camarão depende da água e da localidade. Na região Nordeste do Brasil, que concentra 96% da atividade, há predominância da espécie marinha nativa da costa sul-americana do Pacífico, conhecida como camarão branco – popularmente chamada de camarão cinza (Litopenaeus vannamei). Já no Sudeste, em menor escala cultivam-se os camarões de água doce, originários da Malásia (Macrobrachium rosenbergii)
Quando os camarões atingem o tamanho ideal para a comercialização, é realizada a despesca, movimento de abertura das comportas (portas d´água) que faz com que os animais sejam arrastados pela força da água e posteriormente capturados por meio de uma rede em formato cilíndrico. Uma vez capturados, são levados para o abate em tanques com gelo e metabissulfito de sódio.“A lógica da produtividade exige que a máxima quantidade possível de camarões esteja apta para a comercialização, ou seja, com o peso ideal e sem manchas. É esse oxidante perigoso que faz o camarão que era cinza ficar avermelhado, pois a substância é altamente irritante para os animais. Por isso, eles pulam tanto na rede”, explica a médica e pesquisadora Raquel Rigotto.
Após o abate, essa mesma água é despejada nas gamboas, nos apicuns, no manguezal, “e acaba destruindo outras formas de vida que estão ali, além de atingir as pessoas que entram em contato com essa água para tirar o seu sustento. Por sua vez, no fundo do tanque onde os camarões estavam antes da despesca, ficam resíduos de fezes, outros camarões que acabaram morrendo no meio do processo e já se encontram em putrefação, além de restos de ração com antibióticos.”
A reportagem entrevistou sete produtores e todos eles negaram o uso do metabissulfito de sódio na realização da atividade. “Sei que tem produtores que usam, mas eu não uso, não acho necessário. Uso apenas o gelo para matar e conservar o camarão. Aqui utilizamos apenas o calcário para corrigir a acidez do solo, e sempre na dosagem indicada, e os probióticos que garantem a limpeza dos tanques após a despesca”, afirma o produtor Erinaldo Souza de Vasconcelos, que mora e realiza a atividade de criação de camarão no município sergipano da Barra dos Coqueiros.
A mão invisível do Estado
A carcinicultura teve início no Brasil na década de 1970, no estado do Rio Grande do Norte, mas foi na década de 1990 que se intensificou. Em 2003, o Brasil chegou a ocupar o sexto lugar na produção mundial de camarão cultivado, ficando atrás de países como a China, a Tailândia, o Vietnã, a Indonésia e a Índia, segundo dados da Associação Brasileira de Criadores de Camarão (ABCC).
A região Nordeste do Brasil é a que detém atualmente a maior concentração de produção, respondendo por 99,6% da produção nacional, de acordo com dados da Pesquisa da Pecuária Municipal (PPM) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2019. Rio Grande do Norte e Ceará são os maiores produtores do país, em primeiro e segundo lugar, respectivamente, seguidos de Pernambuco e Sergipe.
O crescimento da produção no Brasil foi bastante beneficiado pela política econômica favorável no mercado mundial, que se expandiu vertiginosamente a partir da década de 1990, mas não somente por isso. A mão do Estado brasileiro teve e tem sua cota de generosidade na expansão da atividade, em detrimento da pesca artesanal. Somente no ano passado, o governo brasileiro ampliou de R$ 18 para R$ 500 milhões os recursos disponíveis para produtores de camarões da Região Nordeste, por meio da linha de crédito FNE-Aquipesca, do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE), administrado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) e concedido pelo Banco do Nordeste (BNB).
Os investimentos à expansão da ideologia aquícola empresarial não se reduzem apenas a financiamentos diretos, mas também a estratégias de longo prazo, como a qualificação da mão de obra diretamente envolvida na atividade e a construção de narrativas voltadas à exaltação de uma ideologia aquícola de base empresarial, que destacam a aquicultura como o suposto caminho “natural” de evolução da própria pesca.
Minha pesca, minha vida
“Ostra! Ostra! | Saíram na briga no fundo do mar | Então, o camarão se mandou | O camarão ó: já era! | Assassinaram o camarão | Assim começou a tragédia | No fundo do mar”. Na década de 1970, o grupo musical Originais do Samba já cantava sobre o assassinato do camarão na música ‘Tragédia no fundo do mar’.
Os efeitos irreversíveis da prática da carcinicultura como uma suposta evolução da pesca nos territórios de vida das comunidades costeiras são sentidos há longos anos. São pessoas que lutam pelo descanso digno da aposentadoria e ao mesmo tempo resistem tentando transmitir para as próximas gerações a riqueza das sabedorias sobre as marés.
“A pesca está totalmente prejudicada com essa atividade, ela impede que os pescadores transitem. Agora mesmo no povoado fizeram um grande estrago no estuário e destruíram muitos manguezais. Se você quiser conferir, não precisa nem descer do carro, na rodovia já dá para ver. Eles construíram nas margens das marés e tiraram os acessos. Os produtos químicos utilizados para limpar os viveiros matam os crustáceos”, afirma Ana*, uma das pescadoras que moram em Brejo Grande.
Segundo o presidente do Movimento Quilombola em Sergipe, Wellington Fontes Nascimento, a carcinicultura afeta diretamente a vida dos pescadores e da comunidade, visto que praticamente toda família da região costeira do estado, onde os viveiros são construídos, vive da pesca artesanal. “Está cada vez mais difícil pescar próximo à comunidade. Nós achamos que esta atividade não deve existir na comunidade ou próximo. Os pescadores reclamam dos produtos que são colocados na água. Dizem que os espaços que são usados prejudicam a qualidade e a quantidade do pescado e desta forma atrapalha o trabalho dos pescadores artesanais. Além disso, não há diálogo com os donos, pois às vezes nem sabemos direito quem são”, ressalta a liderança
Além disso, a desastrosa política ambiental do governo federal e acontecimentos recentes, como o derramamento de óleo no litoral brasileiro e a pandemia da Covid-19, se encarregam de agravar ainda mais o contexto de influxo da pesca artesanal. “. Então, estamos pedindo o que é nosso por direito, com um olhar mais digno para esse povo que trabalha, que sustenta suas famílias. A pesca é a minha vida”, lamenta Iara*, uma das pescadoras entrevistadas.
Irregularidades em viveiros
O licenciamento ambiental dos empreendimentos de carcinicultura em zona costeira é regulamentado pela Resolução nº 312/2002, do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) que, entre outras determinações, proíbe a realização da atividade em manguezal. Além disso, destaca: “A instalação e a operação de empreendimentos de carcinicultura não prejudicarão as atividades tradicionais de sobrevivência das comunidades locais”.
Apesar da prescrição legal, fiscalizações realizadas entre os anos de 2016 e 2017 pelo Ministério Público Federal (MPF) identificaram uma série de irregularidades em muitos viveiros de camarão distribuídos pelo litoral sergipano, a exemplo dos desmatamentos, uso irregular da água, despejo de resíduos no manguezal, além das condições insalubres de trabalho. No mesmo período, o Estado ocupava a posição de 3º maior produtor de camarão do Brasil e do Nordeste, com uma produção de 2,785 toneladas.
A saída para alavancar a produtividade, inserir Sergipe no topo do ranking e driblar as constantes fiscalizações que haviam se tornado um entrave ao crescimento da atividade foi uma grande articulação entre a Associação de Criadores de Camarão do Estado de Sergipe (Aces), parlamentares sergipanos e o governo do Estado, o que resultou na aprovação da Lei Estadual 8.327/2017, a Política Estadual da Carcinicultura.
Batizada de “Itamar Rocha”, a lei reconhece a carcinicultura como uma “atividade agrossilvopastoril, de relevante interesse social e econômico, produtora de um alimento de alto valor nutricional, que gera emprego e renda”. O homenageado, à época, era ninguém menos que o presidente da Associação Brasileira de Criadores de Camarão (ABCC), que se encontrou com criadores e parlamentares sergipanos para colaborar com a elaboração do projeto de lei, de autoria do então deputado estadual Luciano Bispo.
Itamar foi o convidado especial da solenidade de sanção da lei, realizada no dia 27 de janeiro de 2018 em Brejo Grande, município margeado pelo Rio São Francisco, onde as comunidades quilombolas sentem diretamente os impactos da atividade. Na ocasião, o então presidente da ABCC homenageou o então governador do Estado, Jackson Barreto, e o então deputado estadual Luciano Bispo, com o título de sócios beneméritos da Associação Norte-Sergipana de Aquicultura (ANSA), “em reconhecimento pelo esforço em prol do desenvolvimento da carcinicultura”.
Mas a troca de afagos entre os criadores e representantes políticos não foi suficiente para minimizar as fiscalizações ambientais. No ano seguinte, outra mobilização dos criadores resultou na aprovação da Lei nº 8.607, que “corrige e moderniza o licenciamento ambiental de Sergipe”, ao apresentar dispositivos de flexibilização à Lei nº 8.497/2018, que por sua vez trata do Licenciamento Ambiental no Estado. Entre outros termos, propõe uma alteração ao caput do Artigo 41, que amplia a discriminação das licenças exigíveis para a localização, instalação, modificação, ampliação, operação e regularização de empreendimentos de carcinicultura.
“É preciso que as autoridades que estão vinculadas à questão do meio ambiente olhem para essa atividade sem preconceito, pois não há nenhuma agressão ao meio ambiente. Tudo é feito dentro das leis ambientais e nós não queremos desrespeitar as normas, mas temos que dar uma saída para essa região. E a saída hoje é a carnicicultura”, declarou o ex-governador de Sergipe, Jackson Barreto.
Flávio Matias é procurador da República do Ministério Público Federal em Sergipe (MPF) e atua desde 2017 na fiscalização ambiental em municípios que compõem a região do Baixo São Francisco, principalmente nas cidades de Propriá, Porto da Folha e Brejo Grande.
De acordo com ele, “a carcinicultura, quando realizada conforme a lei, é uma atividade produtiva que merece ser valorizada, gera empregos, movimenta a economia.” Porém, o que acontece, explica, é que muitas vezes produtores de camarão são flagrados exercendo a atividade ilegalmente e só então vão atrás de regularizar a atividade, que muitas vezes nasceu de maneira ilegal.” Para ele, “essa prática atualmente comum de iniciar a atividade de qualquer jeito, sem licença ambiental, e depois conseguir a regularização no órgão competente gera uma cultura de impunidade e sinaliza que não vale a pena cumprir a lei e buscar a licença ambiental previamente ao início da atividade”.
A reportagem procurou a Administração Estadual do Meio Ambiente (ADEMA), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), a Prefeitura de Brejo Grande e o Governo do Estado de Sergipe, mas não houve retorno até o fechamento da reportagem.
* Todos os pescadores artesanais e todas as marisqueiras tiveram sua identidade preservada, por questões de segurança. Os nomes utilizados são fictícios.
** Esta reportagem é uma das vencedoras do edital microbolsas sobre agronegócio e meio ambiente em tempos de Covid, iniciativa de O Joio e O Trigo com apoio do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).