Como espaços públicos têm se tornado laboratório para corporações de alimentos fazerem publicidade
Na onda do privatismo que avança sobre importantes patrimônios do Brasil, corporações de alimentos e bebidas vêm nadando de braçada nas duas maiores cidades do país. Em meio a uma crise política, sanitária e econômica sem precedentes, Coca-Cola, iFood e Ambev aproveitam o cenário oportuno para fazer de equipamentos públicos com alta circulação de pessoas uma vitrine para seus produtos e serviços.
Em São Paulo, esse movimento já é visível para os frequentadores do mais icônico cartão postal da cidade. O Parque do Ibirapuera passou a ter como principais patrocinadores o iFood e a Ambev, após um controverso processo de concessão que entregou a gestão do parque para a iniciativa privada, sem qualquer mecanismo de participação social.
A instalação de uma grande estrutura metálica e vermelha pelo iFood, simulando uma espécie de praça de alimentação a céu aberto é, por ora, o retrato mais evidente da transformação do parque em um “laboratório” para marcas, expressão utilizada pelos concessionários. Há mesas, toldos, cadeiras, quiosques de seis restaurantes, totens para pedidos via app, distribuição de brindes e até uma roda gigante de 20 metros de altura, onde se anunciam sorteios de brindes entre uma e outra música no alto-falante.
A Ambev, por sua vez, adquiriu o direito de exclusividade na venda de bebidas dentro do parque, o que inclui a futura instalação de novos quiosques e a exposição do nome da marca nos uniformes, carrinhos de vendedores ambulantes e em itens de mobiliário, como cadeiras e barracas. Há planos para que o nome da cervejaria apareça em destaque também nas quadras e nos espaços esportivos.
Parcerias comerciais e venda de cotas de patrocínio estão previstas no modelo de privatização da gestão do parque, concluído após dois anos de disputas judiciais, denúncias de irregularidades e falta de transparência, além do esvaziamento e posterior exclusão do Conselho Gestor, formado pela sociedade civil e que, até então, fiscalizava e participava das decisões sobre os rumos do Ibirapuera.
A Urbia, empresa da construtora Construcap criada para esta finalidade, é a responsável pela gestão do Ibirapuera pelos próximos 35 anos. Promete R$ 180 milhões em investimentos ao longo deste período, em troca do direito de explorar o local comercialmente.
O Ibirapuera é uma das mais importantes áreas verdes de São Paulo e sede de um rico circuito cultural formado pela Fundação Bienal, os museus de Arte Moderna, de Arte Contemporânea e Afro-Brasileiro, o Pavilhão das Culturas Brasileiras, a Oca, o Auditório Ibirapuera, o Planetário e a Escola de Astronomia. Em 2019, ano anterior à pandemia, 18 milhões de pessoas estiveram no parque, o mais visitado da América Latina.
“Existe um conselho gestor criado para ser a representação do cidadão. O Ibirapuera tem um, mas foi colocado totalmente à parte desse processo, nem sequer foi ouvido. É isso o que está sendo implementado, e essa agenda está avançando”, observa Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP). “Sabemos que o Estado não é um excelente gestor, e isso necessita ser transformado. Precisamos de gestões mais eficientes, mas também é preciso incorporar uma participação maior dos cidadãos. O que falta nessa história é o controle social.” pontua.
Laboratório para marcas
O parque é considerado o motor financeiro de um pacote de concessão que inclui, ainda, outros cinco parques menores em bairros periféricos da capital paulista (Tenente Brigadeiro Faria Lima, Lajeado, Eucaliptos, Jardim Felicidade e Jacintho Alberto). O modelo de gestão privada e os primeiros movimentos de exploração comercial no Ibirapuera acendem um alerta importante, já que a intenção é licitar a gestão de todos os parques de São Paulo. Mais do que isso, o projeto privatista que elegeu João Doria prefeito da capital e depois governador também encontrou respaldo no governo federal.
A intenção da concessionária Urbia é tornar seus parques um “laboratório” para marcas, como afirmou o diretor Samuel Lloyd, em entrevista ao portal UOL. “Nosso objetivo é facilitar a vida da população, resolver as dores desse consumidor que usa o parque e gostaria de passar o dia todo nele. Estamos trabalhando com o conceito de transformar o Ibirapuera num ‘smart place’”, explicou Samuel.
Smart place, jornada do visitante, dores do consumidor, experiência do usuário, real live marketing e mais uma porção de jargões extraídos do mundo dos negócios passam a ser aplicados pelos novos gestores de equipamentos públicos, como se a cidade fosse uma empresa que precisa dar rentabilidade aos seus investidores e cidadãos, meros consumidores.
Próximo ao Espaço iFood, a marquise projetada por Oscar Niemeyer – atração popular no Ibirapuera entre skatistas, patinadores e ciclistas – segue interditada por riscos estruturais. Perto dali, a Oca também carece de restauro. Duas obras caras e complexas que ficaram de fora da privatização e deverão ser pagas pela prefeitura de São Paulo, ou seja, pelos contribuintes.
Como salienta o economista e sociólogo Carlos Vainer, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o setor público normalmente arca com os custos e o setor privado fica com os benefícios. “É um festival de estupidez. Sob o pretexto da escassez de recursos, se vende a cidade, sua alma, sua cultura, se destrói o espaço e corrói a esfera pública. A lógica passa a ser o ganho máximo do interesse privado, a mercantilização do espaço público”, critica.
No Rio, no apagar das luzes de 2020, um movimento feito pela Coca-Cola pegou muita gente de surpresa. Com a diminuição no fluxo de passageiros em meio à pandemia, pouca gente percebeu, mas desde os primeiros dias de janeiro deste ano o nome da estação terminal da Linha 2 do Metrô passou a ser Botafogo Coca-Cola. A gigante de refrigerantes agora aparece em todas as placas e letreiros no interior da estação e em alguns acessos, mas também no visor dos trens e anúncios sonoros de toda a rede metroviária.
A venda dos chamados naming rights foi justificada pela perda de receitas tarifárias durante a pandemia. O argumento de Guilherme Ramalho, presidente da MetrôRio, é que os recursos vão ajudar a reduzir o déficit causado pela redução no número de passageiros. “Estamos buscando alternativas para diminuir o custo cobrado do cidadão. E a concessionária, uma empresa que tem atuação completamente regulada e delimitada pelo contrato de concessão, tem o direito de fazer exploração comercial das estações”, defendeu Ramalho durante uma live em que foi questionado sobre o tema. Ele afirma que a parceria é de curto prazo e prevê benefícios “não só de modicidade tarifária, mas de ajustes de financiamento do sistema e melhorias que são feitas na própria estação”.
Se irá ajudar financeiramente ou não, não se sabe. Os termos dessa parceria são desconhecidos. Sob o argumento de que se trata de um negócio feito entre duas empresas privadas, todos os pedidos de esclarecimento feitos via Lei de Acesso à Informação foram negados. A MetrôRio é uma empresa privada que opera o sistema metroviário e integra a Invepar, responsável por outras oito concessões de equipamentos voltados à mobilidade urbana. No Rio, atuam nos trens, no sistema de VLTs, na Linha Amarela e na Transolímpica. São acionistas majoritários na concessão do Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, e de rodovias em cinco estados.
“O sentido que queremos dar ao bairro histórico de Botafogo não é de uma bebida de efeitos danosos à saúde coletiva”, afirma o professor Carlos Vainer. “A concessão de um serviço de transporte de passageiros a uma empresa privada já constitui em si uma ameaça para o caráter público da cidade. Há um vício de origem nesse processo que se expande e evidencia sua perversidade quando uma empresa privada vende o nome de um espaço que é público para outra empresa privada.”
Veto à campanha
Em outubro de 2020, o metrô se negou a vender espaço publicitário para a campanha Tributo Saudável da ACT Promoção da Saúde, que defende aumentar os impostos de bebidas açucaradas – a ACT é uma das financiadoras de O Joio e O Trigo. A medida é comprovadamente eficaz para reduzir o consumo e diminuir a incidência de doenças relacionadas a essas bebidas, além de aumentar a arrecadação fiscal dessas empresas. Três meses depois, o motivo do veto ficou evidente.
Nas plataformas da estação, todos os painéis fixos nas plataformas exibem a campanha da versão sem açúcar do refrigerante: “A Coca-Cola mais deliciosa de todas.”
Raquel Rolnik considera que essa parceria é a negação do interesse público. “O nome das coisas é um patrimônio dos moradores, não é propriedade privada, nem do governo. Isso é uma usurpação de algo que é do cidadão. Caberia, no mínimo, um processo de discussão pública, e isso não aconteceu”, avalia. “A questão é o que dá renda? Um equipamento público pode promover uma bebida açucarada que mata, que provoca diabetes, câncer e obesidade, porque isso vai rentabilizar aquela estação?”
Consultados, nem a empresa MetrôRio, nem o governo do estado, nem a Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro (Agetransp) informaram o valor da transação, tampouco se a parceria comercial vai implicar redução ou adiar um eventual reajuste do valor da tarifa. Também não foram informadas quais melhorias serão implementadas na estação Botafogo.
“Ninguém questiona que haja publicidade no metrô: temos as lojas, temos as máquinas que vendem livros e outros produtos. Mesmo que provem a questão da modicidade tarifária, é ilimitada essa busca por mais receitas? Pode chegar ao ponto de mudar o nome da estação? A sociedade quer? Houve consulta prévia? São muitas as questões envolvidas”, critica Adriana Carvalho, diretora jurídica da ACT Promoção da Saúde. Para a organização, a mudança ainda fere o Código de Defesa do Consumidor por promover publicidade disfarçada e abusiva: “Nesse caso o nome da empresa se confunde com o nome da própria estação, reproduzido em vários espaços do metrô.”
Desde 2013 a Coca-Cola tentava estampar o nome de sua marca na estação mais próxima de seu escritório. Na época, o então governador Sérgio Cabral vetou a transação. A pandemia, o contexto agravado por crise política e administrativa no estado do Rio de Janeiro e o avanço da onda privatista sobre o Brasil nos últimos anos criaram o cenário perfeito para viabilizar o negócio, sem que houvesse consulta prévia à população ou mesmo à Agetransp, comunicada quando o nome da empresa de refrigerantes já aparecia nas estações e a mudança já era noticiada pela imprensa.
Em nota, a Agetransp informou que foi aberto um processo regulatório “para apurar os aspectos legais e técnicos a respeito da parceria firmada pela concessionária MetrôRio para a venda dos chamados ’naming rights’ nas estações. O processo está na fase de instrução, com relator já escolhido e apuração sendo realizada pelas câmaras técnicas da Agência Reguladora”. O caso está em análise pelo Ministério Público do Estado. Trinta organizações e entidades da sociedade civil assinaram um manifesto contrário à venda do nome da estação Botafogo para a Coca-Cola.
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A venda dos naming rights no metrô do Rio inspirou o governo do estado de São Paulo a também fazer isso, sob o mesmo argumento: houve queda de receitas durante a pandemia. Em fevereiro deste ano, foi lançado o primeiro lote de licitações para conceder a exploração publicitária dos nomes das estações do metrô Saúde, Brigadeiro, Consolação, Anhangabaú, Penha e Vila Carrão. Apenas as duas últimas já foram negociadas. A Digital Sports Multimedia (DSM) foi a única empresa que participou das licitações e deverá comercializar o espaço para outras marcas por até 20 anos, período máximo previsto em contrato.
Como o metrô paulista tem gestão estadual, as licitações são públicas. Para fazer passar o projeto à frente, houve, ainda, parecer favorável da Comissão de Proteção à Paisagem Urbana (CPPU) da prefeitura.
A venda dos nomes das estações passou a fazer parte de um amplo pacote de concessões idealizado pelo atual governador, João Doria, quando ainda era prefeito da capital, e que seguiu adiante, com facilidade, na gestão de Bruno Covas e de Ricardo Nunes. Apenas no âmbito municipal, a gestão de cemitérios, terminais de transporte, limpeza urbana, áreas sob viadutos, mercados e até de iluminação fazem parte do plano de privatizações paulista.
“A concessão e a privatização desses equipamentos vai contrariar a jugular dessa questão mais central e conceitual da natureza do que é público. Para ser rentável, vão extrair renda de acordo com um modelo de negócios, e não de acordo com as vontades e a necessidade da população”, observa a professora Raquel Rolnik.
O caso de São Paulo pode ser considerado uma espécie de projeto-piloto que serviu de inspiração para a licitação de parques federais e áreas de proteção ambiental pelo Brasil, com o incentivo do BNDES. Serviços de alimentação, hospedagem, eventos e venda de cotas de patrocínio são uma parte importante do modelo de negócios nesses contratos, licitados pela maior oferta de outorga e sem exigência de atuação prévia na área ambiental.
A Construcap, mesma gestora do Ibirapuera, venceu a concorrência para gerenciar, por 30 anos, dois parques nacionais: Aparados da Serra e da Serra Geral, entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. O primeiro movimento foi a cobrança de ingresso, inclusive para moradores da região, medida, por ora, adiada diante da repercussão negativa. No último dia 14, a empresa venceu a concorrência do segundo lote de concessões de parques paulistas (Cantareira e Horto Florestal, ambos na capital). Apenas no estado de São Paulo, uma mesma empresa acumula até agora a gestão de oito parques públicos.
Na carteira atual de concessões de unidades de conservação do BNDES, existem 34 projetos na esfera estadual, além do projeto de concessão no Parque Nacional de Foz do Iguaçu, que se encontra em estágio mais avançado.