O assentamento Jacaré, no Pará, teve mais de 15% do seu território desmatado. foto: Anderson Coelho

Assentamento da reforma agrária vira pasto com uso de ‘laranjas’ no Pará

Políticos e até a locatária da residência oficial do ex-prefeito de Jacareacanga foram beneficiados com áreas da União desmatadas para criar gado

Entre 2014 e 2015, Marta ganhou a vida com um trailer de lanche do lado da Ourominas, no centro de Jacareacanga, interior do Pará, em um imóvel alugado “pertinho da prefeitura”. Poucos dias atrás, soube, por meio da nossa reportagem, que foi beneficiada em um assentamento da reforma agrária no município. O projeto do assentamento PA Jacaré, criado em 1997, tem capacidade para abrigar 280 famílias. A área de 27 mil hectares teve mais de 15% do território desmatado, desde 2008. E como em outros assentamentos do Pará, as suspeitas são de que grileiros e fazendeiros estão se beneficiando com esse desmatamento.

A reportagem do Joio encontrou gado sobre áreas recém desmatadas em dois assentamentos paraenses. A lista dos beneficiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, (INCRA) nessas áreas inclui políticos e possíveis laranjas. 

Marta Gloria Fernandes, 61, vive no Piauí, bem longe de Jacareacanga, e disse nunca ter se inscrito no programa da reforma agrária. Na verdade, a mulher que ainda hoje mora de aluguel e conta os dias para se aposentar, pode ter sido usada como “laranja” por grileiros que darão outro destino para aquelas terras da União. 

Como mostramos em reportagem publicada na semana passada no Joio, até 2030 a produção de carne bovina pode aumentar 17% para atender a demanda. Boa parte desse gado abatido e processado no Brasil (cerca de 30%) será vendido no exterior. À floresta, essa conta poderá custar um milhão de hectares desmatados por ano até o fim da década para abertura de novos pastos.

Nos últimos anos, mais de 8 mil hectares foram desmatados nos assentamentos Jacaré e Laranjal, em Jacareacanga, segundo dados do órgão ambiental do estado.

Área tomada por grileiros

Quem também é beneficiário em uma dessas áreas é Edivaldo da Conceição, o Edivaldo Rola, vereador de Jacareacanga eleito pelo PSC em 2020. Edvaldo, que também é servidor público municipal, tem Cadastro Ambiental ativo no assentamento sustentável Laranjal. A área é contígua ao PA Jacaré. 

Na Justiça Eleitoral, o vereador declarou um imóvel, no valor de R$ 100 mil, sem especificar a localização. À reportagem, Edivaldo confirmou ter sido beneficiado com terras da reforma agrária no PDS Laranjal, mas diz que abriu mão da posse desde que assumiu como servidor público municipal. O parlamentar criticou a gestão do INCRA no assentamento e diz que a área está tomada por grileiros: “Eles criaram o PDS, mas nunca demarcaram as áreas, nunca implantaram efetivamente o programa. As pessoas que hoje estão lá não são aquelas que foram beneficiadas. Eu me criei lá naquela região, meus pais viviam lá, e hoje vejo que existe um avanço muito grande da agropecuária”, declarou.

Apesar de afirmar não ocupar a área, Edivaldo segue com o nome ativo no Cadastro Ambiental. No entanto, o vereador foi bloqueado na lista de beneficiários do INCRA em 2016, após o TCU apontar indícios de irregularidades. O INCRA informou que não é proibido a participação de assentados em cargos eletivos, “desde que consiga comprovar a compatibilidade da exploração da parcela com o mandato”.

Até a proprietária da casa que a prefeitura de Jacareacanga alugou para ser residência oficial do ex-prefeito Raimundo Batista Santiago, o Raimundinho, recebeu terras da reforma agrária, que, aos poucos, são consumidas por fogo e desmatamento. No contrato de locação, Elza Rodrigues Silva de Souza informa que mora na cidade, mas também consta como beneficiária no assentamento PA Jacaré. 

Ex-prefeito tem fazenda em área de preservação que foi desmatada

Curiosamente, o ex-prefeito Raimundinho tem um imóvel de mil metros quadrados na mesma rua onde o município alugou a residência oficial para ele. Elza também declarou nos contratos que mora nessa mesma rua.

Raimundinho é dono de um sítio —Fazenda Santiago— que tem uma parte da área sobreposta ao assentamento Jacaré. Na propriedade de 140 hectares, o ex-prefeito declarou uso para criação de gado e agricultura. Segundo a lista de bens apresentada à Justiça Eleitoral, ele recebeu o sítio como doação do antigo proprietário, pai do ex-prefeito. 

Os dados do CAR ( Cadastro Ambiental Rural) da Fazenda Santiago mostram que a área de preservação do sítio foi desmatada e a reserva legal está abaixo do proposto pelo órgão ambiental.


Sítio do ex-prefeito de Jacareacanga está colado no Projeto de Assentamento Jacaré. Fonte:CAR/PA

Em 2019, o Ministério Público do Pará abriu investigação para apurar ilegalidades no contrato de aluguel da residência oficial do então prefeito Raimundinho. Segundo informou a promotoria de Jacareacanga, o processo ainda aguarda análise do Núcleo de Combate à Improbidade e Corrupção. 

Conversamos com o advogado Félix Conceição, que representa o ex-prefeito Raimundinho, mas ele não quis se manifestar sobre os pontos dessa reportagem.

Não conseguimos contato com Elza para questionar sobre o uso e destino da área no assentamento Jacaré. 

Ao O Joio e O Trigo, o INCRA informou que “a Superintendência Regional do Incra no Oeste do Pará não foi comunicada de irregularidades ambientais no assentamento Jacaré”. 

Na eleição de 2020, um levantamento do site De Olho Nos Ruralistas, publicado pelo EL País, mostrou que mais de 800 imóveis em assentamentos da reforma agrária foram declarados por candidatos a prefeito, vice e vereador. Vários deles com patrimônios milionários e donos de gado.

Assentamento ecológico vira quintal da pecuária

O Pará é líder absoluto em desmatamento na Amazônia. Só o estado destruiu algo em torno de meio milhão de hectares por ano nas duas últimas décadas. Mais da metade da área de 50.139 hectares desmatada entre agosto de 2019 e julho de 2020 para extração de madeira não tinha autorização dos órgãos competentes para derrubar a floresta. 

Um mapeamento da Rede Simex, integrada pelas organizações Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e do Instituto Centro de Vida (ICV), mostra que a maior parte da área explorada sem autorização ocorreu em imóveis rurais cadastrados, com 17.726 hectares (64,2%) derrubados ilegalmente nessas áreas. Nos assentamentos rurais, os pesquisadores identificaram 5.434 hectares da floresta derrubados sem autorização no intervalo de um ano.

Por se tratar de um PDS, Plano de Desenvolvimento Social, o assentamento Laranjal, em Jacareacanga, deveria ser constituído de “projeto ambientalmente diferenciado de interesse social e ecológico”, como determina a Instrução Normativa 99 do INCRA.

A instituição da categoria PDS flexibilizou a criação de assentamentos em áreas de Floresta, na época, sob discurso de que favoreceria comunidades tradicionais com uso sustentável da terra. Na verdade, os PDS se tornaram alvo de madeireiros e especuladores de terras para o agronegócio. 

Reforma agrária fantasma

No artigo “Os assentamentos fantasmas e a metafísica da reforma agrária”, de 2016, o geógrafo Maurício Torres, professor na pós-graduação da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), traça um histórico das irregularidades nos assentamentos naquela região do estado. 

Torres analisou dados dos assentamentos criados a partir do Plano Nacional de Reforma Agrária (II PNRA), que assentou 381.419 pessoas, 49,22% na Amazônia. No entanto, tal reforma priorizou terras da união com floresta intocada ao invés das invasões onde se formaram grandes latifúndios.

“Partindo de Santarém, por exemplo, é possível viajar centenas de quilômetros atravessando áreas desmatadas por gado, arroz e soja. Nesses locais, não foram criados assentamentos”, diz trecho do estudo. Já na Floresta, assentamentos fantasmas abasteceram os estoques das madereiras, que precisavam de documentação fundiária da área de extração.

Torres cita o caso de uma madeireira holandesa que chegou a indicar o local para criação PDS  Liberdade I,  com  450  mil  hectares, “mas nenhuma família em seu interior, apenas a serralheria em plena atividade”. Ao analisar a sobreposição da  base cartográfica do Incra, Torres identificou a criação de assentamentos contornando o pasto com preciso cuidado; os assentamentos, muitas vezes, ficaram “limitados à área coberta por florestas onde o grileiro não desmatou”.

Irregularidades em assentamentos do INCRA

Em 2007, a Justiça Federal determinou a interdição de 107 assentamentos no Pará, incluindo o Projeto de Desenvolvimento Social Laranjal. Em 2008, o INCRA firmou um termo de ajuste de conduta (TAC) com o Ministério Público para sanar irregularidades nos assentamentos.

As áreas acabaram liberadas aos poucos, à medida em que o INCRA teria demonstrado que os problemas foram sanados.

Pouca coisa parece ter mudado sobre as invasões em terras da reforma agrária. No último mês de setembro, o Ministério Público Federal (MPF) do Pará voltou a alertar irregularidades em assentamentos do INCRA. 

Em nota pública, o procurador Gabriel Dalla Favera de Oliveira, apontou que pessoas que não se enquadram como beneficiárias do programa federal de reforma agrária estariam envolvidas em irregularidades como invasão e grilagem no assentamento extrativista Montanha e Mangabal, em Itaituba.

No começo de outubro, os procuradores também orientaram o INCRA a concluir outro projeto de reforma agrária, em Nova Ipixuna, no Sul do Pará. O local que deveria abrigar o projeto de assentamento São Vinícius, atualmente é ocupado ilegalmente por uma fazenda, cujo posseiro já é beneficiado com terras da união em outras áreas. Segundo denúncias feitas ao MPF, além de ocupar terra pública, o fazendeiro ainda vendeu, ilegalmente, 810 hectares da área.

O procurador destacou que “apesar de ter publicado portaria de criação do assentamento, o INCRA não tomou nenhuma medida prática para implementar o projeto, e, em 2014, famílias sem-terra acamparam nas proximidades”. Com uma liminar, o fazendeiro chegou a conseguir o despejo na Justiça. Atualmente, cerca de 80 famílias sem-terra voltaram a ocupar e a produzir na área à espera de providências do INCRA.

Logo em seguida, o fazendeiro pediu à Justiça Estadual do Pará o despejo das trabalhadoras e dos trabalhadores acampados. Houve decisão liminar (urgente e provisória) favorável aos Tinelli e as famílias sem-terra foram despejadas.

Consultado, o INCRA informou que  o Tribunal de Contas realizou “cruzamento de informações com outras bases de dados” e não constatou nenhum bloqueio para Elza, a locatária da residência oficial do prefeito de Jacareacanga. 

O órgão também informou que ainda não foram expedidos títulos de domínio para os beneficiários nos dois assentamentos citados na reportagem. 

O INCRA ainda manifestou que “a regional do instituto vem solicitando à SEMAS [Secretaria do Meio Ambiente] o cancelamento de Cadastros Ambientais Rurais (CAR) de terceiros sobrepostos a assentamentos”.

O cruzamento de informações do Tribunal de Contas da União, realizado em 2016, encontrou 479.695 irregularidades em assentamentos no país que envolveram 62 mil beneficiários da reforma agrária. Entre as pessoas que promoveram essas irregularidades, a maior parte é empresário ou servidor público. 

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