Passeio pelo supermercado mostra que os mesmos conglomerados investem em marcas de pobre e de rico
Maionese Heinz a R$ 9,40 ou Maionese Quero a R$ 2,85? A primeira exibe um rótulo em papel metalizado, nas cores azul e dourado, e diz ter sido feita com ovos de galinha caipira, enquanto a segunda vem com rótulo de papel simples, nas cores branca e amarela, e traz a foto de um sanduíche de presunto e queijo.
O que une essas duas marcas? O grupo 3G Capital, do bilionário Jorge Paulo Lemann, que também controla Ambev e Burger King. Em 2011, a Heinz adquiriu a Quero, pelo valor de R$ 1 bilhão. Logo depois, em 2013, a 3G Capital e a Berkshire Hathaway, de Warren Buffet, adquiriram a Heinz. Em agosto de 2021 o Grupo Heinz comprou a catarinense Hemmer, que também fabrica maionese, ketchup e molho de mostarda.
O caso é emblemático porque mostra o apetite dos grandes conglomerados da indústria alimentícia pelo domínio de diferentes fatias de mercado. Da classe E à classe A, tem produto pra todo mundo. E um passeio ao supermercado pode mostrar bem isso.
Na ala de congelados de uma unidade da rede Assaí, visitada pela reportagem, o consumidor encontrará lado a lado as pizzas Seara Calabrese, por R$ 22, e Seara Calabresa, ao valor de R$ 12,50. Também poderá escolher entre o Tekitos de R$ 7,70 e o Incrível Empanado de R$ 14,90, feito com “carne” vegetal. Em todos os casos, a fabricante é a mesma, JBS.
No setor de salgadinhos, a escolha fica entre as marcas Fofura, Torcida, Ruffles, Elma Chips e Lay’s, todas controladas pela Pepsico. A diferença está no preço: o Fofura de cebola com 90g custa R$ 1,75, enquanto a batata Lay’s sabor Sour Cream, de 80g, custa R$ 5,00.
O movimento acompanha a curva da desigualdade no Brasil, que cresceu nos últimos anos. Aqui, a parcela mais rica da população concentra 49% de toda a riqueza nacional – pior indicador dos últimos vinte anos – enquanto 27 de milhões de pessoas sobrevivem com até R$ 400 por mês – pior situação desde o início da série histórica, em 2012.
Questão de marketing
José Mauro Hernandez, livre-docente do Curso de Marketing da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), explica que essa estratégia tem a ver com a vinculação de cada marca com seu público-alvo. “Se você tem uma marca cara, associada a produtos de alta qualidade, então não pode lançar um produto barato sob aquele mesmo rótulo”, argumenta o professor. “As pessoas vão comprar achando que é igual e depois abandonar a marca ao ver que isso não se confirma.”
“Daí o que a fabricante faz?” indaga Hernandez, fazendo alusão ao grupo Kraft Heinz: “Compra a Quero, que é uma marca popular, e então a Hemmer, voltada ao público intermediário.”
Com isso, explica o docente, uma mesma empresa consegue vender para consumidores de diferentes faixas de renda sem multiplicar na mesma proporção os gastos com capital humano, administração e logística – gerando economia de recursos.
Preços diferentes, qualidade diferente?
Convidamos a nutricionista Alessandra Silva Dias de Oliveira, que é professora adjunta do Instituto de Nutrição da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), para analisar um levantamento feito pelo Joio em dois supermercados do Grupo Pão de Açúcar no interior de São Paulo.
A tabela, que pode ser conferida aqui, compara ingredientes e composição nutricional de salgadinhos, molhos de tomate, empanados, margarinas, hambúrgueres, maioneses e pizzas congeladas produzidas e vendidas pelos mesmos conglomerados da indústria.
Analisando os produtos compilados, Alessandra ressalta que a diferença se concentra principalmente na qualidade dos ingredientes. “As linhas voltadas para o público de pior situação econômica contêm mais espessantes, aromatizantes, realçadores de sabor e aditivos em geral”, explica ela. “Esses ingredientes estão lá porque permitem baixar o custo dos produtos.”
A pesquisadora lembra, no entanto, que os produtos mais caros não são necessariamente mais saudáveis: “De forma geral, a composição é ruim”, diz ela. “O que me sinto confortável para dizer é que os produtos das linhas inferiores conseguem ser ainda piores.”
Tão ruim quanto
Um método interessante para comparar os produtos, pelos menos em termos de qualidade nutricional, é o aplicativo Desrotulando, desenvolvido em 2016 por iniciativa do empresário Gustavo Haertel Grehs e da nutricionista Carolina Grehs.
Por meio de um algoritmo que leva em consideração concentrações de sal, açúcar, gordura e presença de aditivos, o app determina uma nota de 0 a 100 para cada produto em sua base de dados. Quanto mais próximo do 0, menos saudável. E vice-versa.
Ao usar o aplicativo na comparação de alguns produtos, vemos que a diferença de qualidade nutricional entre o premium e o standard é irrisória. Um exemplo são as margarinas Qualy e Claybom, ambas da BRF, que ganharam nota 1 no app, apesar da Qualy custar quase o dobro do preço.
Para as duas, o Desrotulando exibe os avisos vermelhos de “alto em gorduras totais”, “alto em sódio” e “[não] clean label” – o que indica um rótulo difícil de entender, com grande quantidade de aditivos e substâncias alimentares.
Questão de Status
O professor Hernandez, da EACH-USP, explica que a qualidade responde por apenas uma parte da diferença de preço. O resto fica por conta do valor subjetivo da marca.
“A marca tem uma tremenda importância”, argumenta o docente. “Eu compro Qualy porque não quero parecer pobre. Então no fim de semana, quando tem visita, vou ter Coca-Cola, margarina Qualy e presunto. E durante a semana vai ter refrigerante Dolly, margarina mais barata e assim por diante.”
“Isso ocorre porque a marca não traduz apenas qualidade, mas também status”, conclui ele.