Como o soro de leite passou de um descarte altamente poluente para uma matéria-prima onipresente em produtos caros, como compostos lácteos e whey protein
Imagine um pacote de leite em pó. Normalmente, existem informações em linha reta, na horizontal, abaixo do logo do produto. Há marcas que destacam, dessa mesma forma, se contém vitaminas ou se está adoçado. Agora, o que ele é de fato, onde está escrito se é leite em pó ou outro produto não acompanha essa mesma formatação.
Muitos compostos lácteos colocam o que são, a sua denominação obrigatória, na lateral ou na parte de baixo do rótulo – você teria de virar a embalagem para visualizar adequadamente. E, no meio das compras, você costuma virar as embalagens para ler tudo o que está escrito? Melhor: você costuma parar e ler todas as informações dos produtos que vai levar?
Outro teste, aproveitando que estamos falando de leite em pó. Sabe o Leite Ninho, aquela linha de produtos da Nestlé dedicada às crianças? Você sabia que há produtos dessa marca que são leite em pó e outros que não são? E se essa situação já é confusa por si só, ela piora quando envolve a alimentação infantil. A publicidade também não faz qualquer diferenciação entre os produtos e apresenta todos como completos do ponto de vista nutricional.
No Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de Dois Anos, o Ministério da Saúde avalia que os compostos lácteos são ultraprocessados e, portanto, não devem ser consumidos por bebês. O documento oficial orienta a ter atenção pelo fato de as latas dos compostos serem parecidas com as das fórmulas. No caso da Nestlé, por exemplo, a linha de compostos Neslac e a linha de fórmulas Nanlac têm nomes, latas e identidades visuais muito similares.
A comercialização das fórmulas têm uma legislação: a Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (Nbcal). O país adotou a norma ainda nos anos 1980, mas na forma de uma resolução do Conselho Nacional de Saúde. Foi apenas em 2006 que essa norma foi transformada em lei e, entre suas definições, passou a punir empresas que façam promoção comercial das fórmulas infantis.
No ano seguinte, entraram em cena os compostos lácteos, que, em tese, não têm as mesmas restrições impostas às fórmulas – podem, por exemplo, entrar nas “ofertas do dia” e oferecer brindes. “Mas com os compostos lácteos, a confusão está sendo induzida pelo rótulo e pela embalagem muito parecida. Isso se chama promoção cruzada, que é quando um produto que as pessoas já conhecem acaba fazendo a propaganda de outro”, alerta a representante do Idec.
Promoção, dois anúncios por um
Nesse caso da venda casada, o benefício acaba vindo para os dois produtos. O composto lácteo se aproveita de uma imagem familiar ao consumidor para se vender e, como não tem lei que impeça isso, tecnicamente o fabricante pode ilustrar cartazes de descontos ou melhores posições em gôndolas, chamando a atenção de quem compra.
Foram essas atitudes que chamaram a atenção de Dryelle Oliveira, mestre em nutrição pela Universidade de Brasília e integrante do Núcleo de Estudos Epidemiológicos em Saúde e Nutrição da instituição. Ao ver de perto que as pessoas estavam, sim, levando gato por lebre, ou melhor, composto lácteo por fórmula infantil, ela resolveu dedicar sua pesquisa a mostrar as semelhanças nas rotulagens desses produtos. E um estudo que começou com 13 compostos listados conta, hoje, com 18 – porque ela sabe que a cada semana surge algo novo.
“O nosso plano enquanto grupo de pesquisa é justamente solicitar a inclusão dos compostos lácteos na Nbcal. A gente sugere essa inclusão para conseguirmos controlar a comercialização deles no escopo da lei, assim como todos os outros produtos que têm esse direcionamento infantil. Já que ele é vendido como substituto ou suplemento [para crianças], então a gente tem que regulamentá-lo também dentro da legislação”, afirma Dryelle.
Durante a elaboração desta reportagem, algumas atitudes um tanto quanto óbvias foram feitas, como jogar na barra de buscas do navegador “o que é leite em pó?”, por exemplo. E na internet a regra é clara: tudo o que você pesquisa volta, mas como anúncio. Foi assim que um dia desses, enquanto mexia no Instagram, fui impactado por uma série de stories de um produto com várias vitaminas, todas coloridas, a lata amarela da cor do Sol e aquele nome que parece no diminutivo, para ligar às crianças, sabe? Sim, mais uma vez o Leite Ninho. O meu imaginário pensou em leite em pó ou fórmula infantil, mas não era, até porque a publicidade é proibida: era composto lácteo, mesmo.
O Idec e a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Ibfan) realizam anualmente um monitoramento de violações às normas da Nbcal. Como explicam as entidades, é proibida a promoção comercial de produtos destinados às crianças, seja ela por exposições especiais e descontos de preço, seja por cupons de descontos, prêmios, brindes, vendas vinculadas ou apresentações especiais.
Em 2020, por conta da pandemia de Covid-19, o monitoramento foi adaptado, com foco nas lojas físicas e ambientes digitais. A pesquisa identificou 389 infrações, de 101 empresas. Na internet, os compostos lácteos representaram 18,2% do total de produtos com violações comerciais, mas nas lojas físicas essa porcentagem saltou para 35,7%, fazendo com que esses compostos ocupassem a liderança dos produtos com infrações no último ano.
“É uma questão da gente disseminar melhor essa política da fiscalização para empoderarmos as pessoas”, pontua a mestre em Nutrição Dryelle Oliveira. Afinal, para que os compostos lácteos sejam incluídos na Nbcal, é necessário um projeto de lei.
O projeto já existe, é o de nº 3.828, de 2019, de autoria do senador Confúcio Moura (MDB/RO). Desde o começo de setembro, o PL está disponível para votação na CDH, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, aguardando apenas os senadores.
“Quanto mais gente souber disso e fizer barulho, mais coisas a gente consegue. Nós precisamos pressionar o poder público para efetivamente melhorar a política pública. Porque a política pública é mutável, ela tem que ser atualizada sempre, conforme a nossa realidade”, conclui Dryelle.
Mas esses novos produtos são bons?
Se pelo lado de rotulagem e comercial há questões envolvendo os compostos lácteos, o que dizer deles como produtos? São bons ou ruins? Para responder a essas questões, a reportagem procurou três engenheiros de alimentos. Dois do Ital, o Instituto de Tecnologia de Alimentos do Governo do Estado de São Paulo, e um da Unicamp, a Universidade Estadual de Campinas. Eles foram categóricos: não dá para dizer que todos esses produtos são ruins. Pelo contrário.
“A indústria não transformou o leite em pó em composto lácteo, o composto lácteo existe e é regulamentado. Na verdade, os produtos lácteos são bastante normatizados na legislação brasileira”, salienta Patrícia Blumer, pesquisadora de novos produtos no setor de lácteos do Ital. “Por exemplo, eu posso pegar um leite em pó desnatado, misturar ele com um prebiótico, que tem benefícios para a microbiota, e aí não vou poder mais chamar ele de leite em pó. É só leite em pó misturado com uma fibra, mas eu não posso mais chamar ele de leite em pó. Por quê? Porque a legislação de leite em pó é muito rigorosa, leite em pó é só o puro. Então, eu vou ter que chamar ele de composto lácteo.”
Isso significa que o conceito de composto lácteo engloba muita coisa e, sim, produtos com teor maior ou menor de proteínas. “Tem o composto lácteo bem baratinho, que mistura açúcar, amido, gordura vegetal em pó com soro em pó? Tem. E, no fim, ele atende, sim, infelizmente, uma parcela da população de baixa renda que não pode consumir um produto melhor.”
Guilherme Tavares, professor da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp, concorda que as normas regulatórias do Ministério da Agricultura definem muito bem o que são os produtos lácteos e, principalmente, o que as indústrias podem adicionar neles.
“Eu não acho que seria justo, pensando nas inovações que esses tipos de produtos trazem, de colocar como se fosse uma tentativa de enganar alguém. A gente está falando de produtos diferentes, com funcionalidades diferentes, nichos de mercado diferentes, e isso aparece nas embalagens. A questão das fibras, por exemplo, se torna um atrativo de venda, para falar ‘olha, esse produto é diferente por causa disso’. Há uma grande variedade de produtos no mercado e precisamos ter o cuidado de olhar as informações disponíveis para tentarmos entender o que a gente está comprando”, avalia.
Para Tavares, a rotulagem similar entre os produtos tem uma justificativa. “Como são produtos que têm um perfil de consumo parecido, a gente está falando de produtos em pó que vão ser consumidos em uma forma reidratada, então eles vão ser apresentados nos supermercados de forma próxima, um produto próximo do outro. Mas as informações estão lá.”
E quanto à questão da gestão de proteínas, Patrícia Blumer chama a atenção para outros itens em comercialização. “Há outros produtos de origem vegetal que entram no mercado tentando se parecer com produtos lácteos e que não têm normas estabelecidas. As pessoas falam que o teor de proteína de um composto lácteo é baixo, mas ele tem que ter entre 9% ou 13%. Sabe qual é o teor do leite de coco em pó? 3%. E não tem normatização”, informa.
Soro de leite, um delicioso poluente
E o que fez surgir tantos produtos lácteos com nomes diferenciados no mercado? A resposta é uma só: soro de leite, um subproduto da indústria de laticínios, gerado na fabricação de queijo. Em média, para fazer 1 quilo de queijo são necessários 10 litros de leite, e o que sobra no processo são 9 litros de soro de leite. O queijo é comercializado, o soro não. Num passado recente, cerca de 25 a 30 anos atrás, era comum que esse soro de leite fosse dado a animais ou, para piorar, descartado no meio ambiente. E, se ele tem proteínas para o nosso corpo, no descarte indevido vira um belo de um poluente.
“Estimativas apontam que, aqui no Brasil, são produzidas cerca de 5 milhões e 400 mil toneladas de soro de leite por ano, oriundas de queijo feito com inspeção federal. Olha o montante disso. Antes, você jogava isso fora, mas por ser rico em compostos orgânicos, consequentemente o soro de leite polui muito. Agora, não, você não pode descartar indiscriminadamente, você tem que tratar o soro, e o tratamento é caro. Então, começou-se a realizar pesquisas sobre ele”, explica Leila Spadoti, especialista do Ital.
Basicamente, as pesquisas sobre soro de leite identificaram dois pontos principais: o primeiro é que ele é rico em proteínas; o segundo, que era possível utilizá-lo, de diferentes formas, em novos produtos. Resumindo, foi assim que o soro de leite trouxe novos produtos ao mercado.
“Do total de soro produzido no mundo inteiro, a gente está conseguindo usar de 50% a 60%, o resto não tem aplicação ainda. Os cientistas costumam sugerir aplicações nas indústrias alimentícia e na farmacêutica pela quantidade de nutrientes que ele possui”, complementa Leila.
Uma pesquisa realizada pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro em 2018 avaliou cem laticínios espalhados pelo país. Desse total, apenas 60% aproveitavam totalmente o soro de leite. E 27% não só não aproveitavam o soro em outros produtos, como descartavam em sistemas de tratamento de efluentes ou doavam para alimentação animal.
Outro estudo da mesma entidade, publicado em abril de 2021, trouxe um panorama da questão ambiental envolvendo o soro de leite. Apesar das múltiplas formas de reutilização do soro, muitos produtores ainda consideram a substância como um rejeito, por conta da sua facilidade em proliferar bactérias e fungos.
Há, ainda, uma prática problemática, que é o uso do soro de leite in natura para a irrigação do solo. O soro consegue estimular o crescimento de plantas e melhorar a estrutura do solo, aumentando a eficiência na retenção de água. Entretanto, resíduos de antibióticos aplicados em animais são encontrados no soro e, mesmo em baixas concentrações, podem ocasionar contaminação de bactérias nos alimentos cultivados.
O estudo traz uma terceira questão alarmante, dessa vez envolvendo o descarte do soro. Os tratamentos de efluentes contendo soro de leite, apesar de eficazes, causam outros problemas, como a produção de lodo contaminado com produtos químicos, além do alto consumo de energia.
Para especialistas, a destinação indevida do soro de leite produzido nos laticínios ainda tem graves impactos ao meio ambiente nos dias de hoje, e são necessários mais investimentos em tecnologia e pesquisa para resolver essa questão.
E se de um lado há muito o que ser feito, do outro já existem diagnósticos – a inclusão do soro em novos produtos pode ser um caminho mais econômico e sustentável. No Ital, as pesquisas com soro de leite seguem algumas linhas, como o desenvolvimento de bebidas gaseificadas, tipo refrigerantes, além do uso em sorvetes e bebidas lácteas, visando principalmente à utilização do soro oriundo de pequenos laticínios.
Há, ainda, públicos específicos que pagam fortunas para terem suas proteínas concentradas. Você já deve ter ouvido falar, inclusive. Com muito marketing e apelo nos universos de esportes e fitness, o soro de leite ganha outro nome, whey protein.
É o que explica Patrícia Blumer: “Vamos pegar o leite, o leite tem 3% e pouco de proteína, o soro tem entre 0,6% e 1%. Então, ele tem menos proteína e tem mais água. Mas junto com ele, você tem os minerais, as vitaminas do complexo B presentes, entre outros. Esse soro também pode ser ultrafiltrado, é um tratamento específico em que você concentra as proteínas dele, já que ele tem pouca proteína como líquido. Concentra as proteínas do soro e dá aquele nome chique de whey protein, que, na verdade, é o termo em inglês para proteína do soro”.
Para Guilherme Tavares, o avanço tecnológico ao redor do mundo e o aumento da demanda por parte dos consumidores em produtos específicos incentivam o surgimento de novos produtos lácteos, algo que deve seguir pelos próximos anos. Ele destaca a expansão de concentrados proteicos, como o whey, além de outros produtos voltados para facilitar a digestão. “O soro de leite é um bom exemplo de como o conhecimento ajuda a reinventar uma cadeia produtiva. A academia estuda o leite há muitos anos e continuamos estudando, porque estamos longe de exaurir tudo o que pode ser feito com ele”, conclui.