Demanda maior por gordura do leite faz preço da manteiga disparar e consumo crescer entre os mais ricos
Se você é o responsável pelas compras de casa, já deve ter notado que a manteiga tem andado bem mais cara. E não é de hoje. Mas diferentemente do que ocorre com o queijo, o iogurte e o próprio leite, cujos preços oscilam para baixo e para cima, o da manteiga tem se mantido estável para o consumidor final. E nas alturas.
Porém, o que explica a manteiga ter se tornado tão cara no Brasil, um dos maiores produtores de leite do mundo e detentor do segundo maior rebanho de vacas do planeta?
Para buscar essa resposta, é preciso dar alguns passos para trás e olhar o quadro como um todo. E o cenário que se revela não é muito animador: ao que tudo indica, a manteiga não apenas vai continuar cara, como deve se valorizar ainda mais. E essa é uma tendência mundial, mas que assume contornos particulares no Brasil.
Antiga vilã da alimentação saudável, a manteiga passou por uma reviravolta e, em apenas 20 anos, tornou-se um dos itens mais procurados e rentáveis da cadeia de produtos lácteos. Tudo começou quando o reinado da margarina caiu por terra, a partir dos anos 1990, quando diversas pesquisas mostraram que o processo de hidrogenação dos óleos usados na fabricação de margarina leva à formação de gordura trans. O consumo dessa substância aumenta – e muito – os riscos de doenças cardiovasculares e outras enfermidades. Sem contar os aditivos usados para conferir sabor, aroma, cor e textura à margarina, que também são nocivos à saúde.
Até ser desmascarada, a margarina reinava absoluta nos lares do Brasil e no mundo como uma fonte de gordura supostamente saudável. “Nos Estados Unidos, desde 1950 até 2005, a margarina era a mais consumida. E isso foi caindo à medida que a ciência mostrou que a gordura da margarina era ruim. Ou seja, houve uma mudança de paradigma no consumo. A manteiga passou a ser mais demandada, mas não tinha quantidade suficiente no mercado”, explica Kennya Beatriz Siqueira, pesquisadora da Embrapa Gado de Leite.
Consumidores mais antenados e em busca de uma alimentação saudável fizeram o consumo de manteiga crescer progressivamente e num ritmo maior que o aumento na produção. “Além disso, a gordura da manteiga também confere sabor. E começou a ser muito usada por chefs na culinária também, com mais força nos Estados Unidos e Europa, que é onde geralmente começam essas tendências que o Brasil segue muito”, acrescenta Kennya.
Patinho feio dos lácteos, a manteiga tornou-se em todo o mundo a estrela principal da festa, a mais desejada, a mais valiosa e, por vezes, indisponível. E aí surge um problema: o desequilíbrio na demanda por gordura e proteína. “É raro ver isso, mas no caso da manteiga é assim. A proteína ficou sendo por muito tempo o nutriente mais desejado e, agora, é a gordura”, pontua a pesquisadora da Embrapa.
Um concorrente desleal
A manteiga é resultado da separação do creme do leite de vaca – a nata – do leitelho, que é o líquido que se desprende com o processo de batedura. Sua composição é regulamentada pelo Ministério da Agricultura e só pode ser chamado de manteiga o alimento produzido com gordura proveniente exclusivamente do leite, em uma porcentagem mínima de 80%.
Para produzir um quilo de manteiga, são necessários cerca de dez litros de leite. O que sobra vira leite em pó desnatado. Essa mesma gordura também é usada para fazer creme de leite e alguns queijos. A manteiga, portanto, concorre com outros produtos na demanda por gordura.
Embora sejam produtos absolutamente distintos, a margarina e a manteiga disputam o mesmo mercado. E em condições bastante desiguais.
A margarina tem como matéria-prima principal óleos vegetais hidrogenados e saborizados artificialmente. Como não são obrigados a informar que tipo de óleo utilizam, as indústrias podem lançar mão de uma combinação de gorduras baratas e com menor oscilação de preços. Enquanto a fabricação de manteiga no Brasil é bastante pulverizada, dois conglomerados – BRF e JBS – concentram mais de 80% do mercado de margarinas, com maior poder de barganha na compra de matérias-primas e maior capacidade de investimento.
Marcelo Henrique Thomé, gerente comercial da Laticínio Alto Alegre (Verê-PR), destaca que a manteiga precisa seguir uma legislação específica. “Tem requisitos, tem classificação se é manteiga comum, se é manteiga extra, se vai fazer só com creme de leite ou creme e soro. Lógico que a gente sabe que algumas marcas dão um jeitinho, mas é bem rígido para produzir sem alterações. Bem diferente da margarina, que você não sabe nem o que tem”, destaca.
Há oito anos na empresa, ele afirma que a manteiga passou de patinho feio a um dos produtos mais rentáveis de toda a cadeia. “Houve uma mudança no perfil do consumidor, acostumado até então com a gordura vegetal da margarina. Além disso, indústrias grandes também alavancam o consumo e isso acaba inflacionando, já que a oferta é praticamente a mesma. A manteiga antes era um problema, era a vilã. Hoje é reconhecida como um produto de qualidade”, explica Marcelo Henrique.
2015, o ano da tempestade perfeita
Embora esteja entre os maiores produtores do mundo, o Brasil não é um grande exportador de leite e derivados. Por esse motivo, o setor não goza dos mesmos incentivos financeiros e políticas governamentais destinados aos alimentos que se tornaram commodities e têm sua produção voltada à exportação, como grãos, cana-de-açúcar e carnes. “O setor lácteo brasileiro depende muito do andamento da economia brasileira. Em geral, a gente acaba importando alguma coisa. O que a gente produz é mais para consumo interno. Quando a economia cresce, o consumo cresce e o setor cresce. Quando a economia encolhe, o setor não vai tão bem”, explica Glauco Carvalho, pesquisador da Embrapa Gado de Leite.
Uma espécie de tempestade perfeita formou-se em 2015, ano em que o preço da manteiga disparou bruscamente. A combinação de encolhimento da economia, com PIB negativo (-3,5%), inflação de dois dígitos (10,67%) e desvalorização do real em relação ao dólar atingiu em cheio a produção de leite no Brasil.
Foi também a partir desse mesmo período que teve início uma mudança no perfil e na geografia da produção de leite no Brasil. A partir de 2015, o número de animais destinados à produção leiteira começou a reduzir expressivamente: o rebanho perdeu 6,6 milhões de vacas ordenhadas entre 2014 e 2018. “Quando tivemos a queda do PIB em 2015 e 2016, começou a ter uma diminuição mais acelerada do número de vacas – 2015 foi o ano em que a produção caiu pela primeira vez em uma série do IBGE, que começa nos anos 1970”, destaca Glauco Carvalho.
O desempenho ruim da economia e a dificuldade em aumentar vendas e repassar o aumento dos custos aos preços levou a uma seleção entre os produtores de leite. “Isso acontece por eficiência. Os produtores vão ficando mais tecnificados, ficam os produtores maiores. Existe uma bonificação por volume, então quem produz mais leite recebe um preço maior pelo leite. Quem produz menos recebe um preço menor”, acrescenta o pesquisador da Embrapa Gado de Leite.
Soma-se a isso a pressão pelo uso da terra. Quem produz soja, milho e cana tem uma rentabilidade maior. Exportar torna-se mais vantajoso do que produzir para o mercado interno. Isso faz com que os produtores de leite sejam obrigados a investir em sistemas de produção mais intensivos, mais confinados e com maior produtividade.
“A gente está perdendo os médios produtores. Ou eles se tornam grandes ou saem da atividade. O pequeno geralmente não comercializa ou produz de forma artesanal. O médio muitas vezes não consegue se manter”, explica Kennya, pesquisadora da Embrapa Gado de Leite. “A gente acompanha esse movimento tanto pelo número de produtores quanto pelo aumento na produção média de litros. Muitos dos que ficam na atividade têm investimento alto em genética, nos sistemas e na qualidade como um todo da produção. Temos menos animais e muitos produtores deixando a atividade”, completa Marcelo Henrique Thomé, da Laticínio Alto Alegre.
Mais ricos consomem oito vezes mais manteiga que os mais pobres
Mas o aumento no preço da manteiga foi atípico, como aponta o economista e professor da Fundação Getúlio Vargas Valter Palmieri Jr.: “Uma coisa é entender a inflação geral. Por exemplo, quando sobe a gasolina, o custo fica mais caro e você tem uma reação em cadeia. O aumento de um setor acarreta aumentos nos outros. Outra coisa é entender o aumento de preço de algo específico. Tanto a manteiga quanto o creme de leite aumentaram de preço e não desceram mais. Foi bem atípico”, explica.
Mesmo com os preços em disparada, o consumo segue em alta. A despesa média de cada família com manteiga aumentou 73% entre 2007 e 2018, segundo dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF, 2018) do IBGE. Nesse mesmo período, os gastos com margarina diminuíram 36%.
Mas um olhar mais atento sobre os números revela a desigualdade no consumo desses alimentos. As famílias mais ricas, com rendimento total superior a R$ 14 mil, consumiram oito vezes mais manteiga do que as mais pobres, que estão no estrato inferior com renda total de R$ 1.900. Os dados são também da POF de 2018.
Valter Palmieri Jr. aponta para um aspecto que os economistas chamam de “elasticidade na renda”, ou seja, a capacidade de manter o consumo de um determinado produto mesmo quando seu preço sobe. “O mercado consumidor de manteiga é formado por um grupo de pessoas que continuou comprando mesmo com o aumento, não reduziu”, observa o economista.
Pandemia, auxílio emergencial e desafios aumentados
Com a pandemia, o cenário tornou-se ainda mais preocupante. O consumo de lácteos aumentou sob o efeito do auxílio emergencial, gasto majoritariamente com comida e mais refeições sendo feitas em casa. Novamente, a demanda maior que a oferta inflacionou os preços dos derivados de leite. Mas não foi só isso. A desvalorização da moeda brasileira também pesou nessa equação, puxando para cima os custos de produção: grãos para ração, fertilizantes, melhoramento genético e modernização da produção.
Por enquanto, o aumento nos custos não foi totalmente repassado ao consumidor. “No ano passado, entre abril e outubro, houve um aumento muito acelerado nos preços do setor de laticínios, e nesses últimos meses de 2021 também. Mas não foi repassado a maior parte ao consumidor, já que a demanda fraca não permite que produtores repassem esse custo”, explica o professor Valter.
Na casa da biomédica Larissa Janaina Lima Batista, a manteiga passou de alimento básico para item de luxo. Por conta do preço, a família se viu obrigada a voltar a consumir margarina, um hábito que havia ficado para trás desde quando ela era criança. “A gente começou a usar manteiga justamente porque, além de mais gostosa, é mais saudável. Antes era manteiga pra tudo: fritar ovo, passar no pão, fazer bolo. E a gente se acostumou”, conta Larissa, que vive com a mãe e a filha em Belém (PA).
“Mas de uns seis meses pra cá, paramos de usar porque não conseguimos mais comprar. Passamos a ter outras prioridades, pois está tudo muito caro. A gente voltou pra margarina porque não conseguimos mais fazer da manteiga uma prioridade nas compras.” Porém, Larissa informa que uma exceção foi aberta para um momento festivo: o bolo de aniversário foi feito com manteiga: “realmente fica mais gostoso”.
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Faça parteUm novo jogador entra em cena e muda o tabuleiro
Sem fazer muito alarde, um novo jogador entrou em cena, ganhou protagonismo e mudou o tabuleiro. Desde a chegada de sua marca Président ao Brasil em 2015, a francesa Lactalis vem adotando uma estratégia discreta, porém agressiva, para ampliar seu portfólio e comprar a produção em bacias estratégicas, em alguns casos com contratos de até dez anos de duração.
Com aprovação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a fabricante dos produtos Président também comprou a Cooperativa Cativa, no Paraná, com todo o ativo de fábricas, distribuição e também o leite de 4 mil cooperados por um prazo de dez anos, renováveis por mais dez. A Lactalis é hoje dona das marcas Itambé, Poços de Caldas, Batavo, Elegê, Parmalat, Cotochés, Boa Nata, Santa Rosa, Galbani, Do Bon, Balkis e Societé.
Em apenas seis anos, tornou-se líder em lácteos no Brasil, sua quinta maior operação.
Entramos em contato com a Lactalis, mas não tivemos retorno. Os dados são os divulgados pela própria empresa.
Quem determina o preço do leite é a indústria, e não o produtor. Mesmo com aumento na produtividade, tanto a produção de leite como o mercado de fabricantes de manteiga ainda são muito pulverizados no Brasil. A concentração desse mercado em grandes indústrias desequilibra o jogo, com poucos compradores e muitos produtores.
Além disso, a desigualdade na capacidade de investimento em produtividade vai dificultando cada vez mais a vida do pequeno produtor, como explica Valter Palmieri Jr.: “Isso acontece por causa dessa dinâmica do poder de oligopsônio ´[privilégio de compra exercido por poucos]. Tem muito produtor de leite que produz menos, a agricultura familiar produz muito. E fica refém dos grandes. Quanto maior o grau de oligopsônio, maior esse poder”.
Manteiga Aviação
Na contramão desse processo, a Manteiga Aviação completou 101 anos sob as mãos da mesma família, mantendo a manteiga como carro-chefe e resistindo ao assédio de grandes fabricantes de lácteos. “Antes da pandemia, uma vez por semana tinha um fundo ou player grande querendo conversar. Mas o nosso negócio está indo muito bem e, se a gente vender, vai ter que fazer outra coisa. Não vamos viver de renda, somos empreendedores. Vamos continuar até quando der”, conta Roberto Rezende Pimenta Filho, bisneto do fundador da empresa.
O administrador admite que a entrada de grandes indústrias afeta o negócio, mas vê esse movimento com cautela, citando como exemplo a derrocada da gigante Parmalat, nos anos 2000. “Tinha um poderio grande, fundos que entraram e saíram, e deu no que deu”, lembra.
Ele diz que a empresa tem enfrentado o cenário de crise e aumento nos custos nos últimos dois anos com uma margem de lucro menor, mantida graças à administração conservadora de quem já enfrentou muitas turbulências ao longo de cem anos. “Não é só o nosso laticínio, o setor inteiro está com margem baixa”, destaca Roberto.
No caso da manteiga, um fator secundário foi o aumento de preços também nas embalagens, com a disparada no valor do aço usado para as latinhas e do polipropileno para os potinhos de plástico. Matérias-primas que sobem com o dólar em setores monopolizados por duas empresas – a Companhia Siderúrgica Nacional e a petroquímica Braskem.
Roberto Rezende explica que o preço pago pelo leite UHT ao produtor é de cerca de R$ 2,50, enquanto a embalagem custa por volta de R$ 0,90. Sem contar tributos e transporte. “Não fecha a conta. O preço do litro de leite e de uma Coca-Cola é quase o mesmo. É caro o leite ou é cara a Coca-Cola? Que se cobre mais caro o imposto do refrigerante e zere o do leite. São inversões, são coisas que precisam mudar.”