Vestígios de isolados encontrados pela expedição realizada por servidores da FPE da Funai. Fotos: Relatório expedição FPE Purus

Há cinco meses, Funai ignora pedido de proteção a povo indígena isolado recém-localizado no sul do Amazonas

Frente de Proteção do órgão confirmou a existência de grupo nomeado como ‘isolados do Mamoriá Grande’; enviou relatórios à sede em Brasília e não teve retorno. “Receber informações como essas e não fazer nada é quase um genocídio”, afirma ex-presidente da Funai

Em setembro do ano passado, a coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira Purus da Funai informou à direção da Fundação em Brasília a confirmação de um novo grupo de indígenas isolados vivendo nas proximidades do rio Purus, no interior da Reserva Extrativista do Médio Purus, município de Lábrea, no sul do Amazonas. Solicitou, no relatório onde narra a expedição, a instalação de bases de proteção e a restrição de uso do território – medidas que seriam simples e imediatas diante da localização do 29º grupo de isolados, um fato raro e histórico. Não houve retorno da Funai e da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC), que também recebeu o documento, ao qual a reportagem teve acesso.

Em outubro, a coordenação enviou um segundo relatório à Funai sobre outra expedição de monitoramento aos indígenas da região. No documento, redigido por Daniel Cangussu, servidor que coordenou a expedição, ele reafirma: “Em caráter emergencial, é preciso que se articule junto ao DSEI Médio Purus a criação de barreira sanitária.” E pede, também “em caráter emergencial”, a imediata instalação de uma base de proteção. Novamente, não houve retorno da Funai.

Então, no final do mês de dezembro, a coordenação do Amazonas enviou a Brasília um terceiro documento, ao qual a reportagem também teve acesso. É uma informação técnica comunicando a identificação do novo grupo indígena isolado no interflúvio do médio Juruá/Purus, “aos quais passamos a nos referir preliminarmente como Isolados do Mamoriá Grande, e, ainda, informar acerca do planejamento de expedições de monitoramento do território, a necessidade de implantação de PCAs (Postos de Controle de Acesso), expondo as justificativas e objetivos que culminam no seu fim último a proteção das comunidades tradicionais residentes na Resex Médio Purus e a demarcação da Terra Indígena Alto Hahabiri para uso exclusivo dos povos indígenas isolados e de recente contato da referida região”. Até o momento, a Funai não deu retorno.

A reportagem não conseguiu contato com o coordenador da FPE, Izac da Silva Albuquerque, e com o servidor Daniel Cangussu, responsável pela expedição. 

Trechos do relatório expedição FPE Purus. Imagens: Reprodução/Funai


Risco de genocídio

A confirmação do grupo foi motivo de comemoração entre indigenistas, já que, conforme explica a coordenação da FPE, “os ‘Isolados do Mamoriá Grande’ devem ser compreendidos como um novo registro de povos isolados”. No entanto, a inércia da Funai e da CGIIRC preocupa e indigna organizações indigenistas e ex-presidentes da Funai ouvidos pela reportagem. 

“Receber uma informação como essa e a Funai não fazer nada é quase um genocídio. É virar as costas a uma situação que se sabe que vai ser terrível se não fizer nada”, afirma o indigenista e ex-presidente da Funai entre 1991 e 1993, Sydney Possuelo, responsável pela criação do Departamento de Índios Isolados, em 1987. “Se acontece alguma coisa com esses índios isso pode significar uma intenção clara e verdadeira de não fazer nada. Ou seja, deixar que as coisas fluam do jeito que está é matar os índios”, complementa.

“Essa equipe [do Amazonas] deu todas as informações necessárias técnicas para definir um local que deve ser interditado. A interdição é uma figura simples: interdita-se uma área por prazo determinado para fins de estudos. O que causa espécie é esse comportamento da Funai. Mas nem sei se causa espécie porque ele tem sido constantemente, desde que Bolsonaro entrou no governo, ele simplesmente não reconhece nada”, pontua Possuelo. 

No Brasil, há registros de 114 indígenas isolados, dos quais apenas 28 são confirmados pela Funai. A confirmação do 28º grupo de isolados ocorreu em 2015. Em expedições realizadas pela FPE Purus em 2016, os técnicos da Funai interpretaram que os vestígios encontrados na ocasião eram dos Hi-Merimã, povo isolado da região. Porém, os vestígios registrados nos relatórios das expedições realizadas em 2021 apontam que se trata de um novo grupo. “Alguns destes vestígios observados recentemente distam cerca de 150 a 200 quilômetros de acampamentos observados no interior da T.I Hi-Merimã”, diz a Informação Técnica assinada por Daniel Cangussu. “Sendo assim, e considerando a diversidade e pluralidade dos diversos povos das terras firmes do médio Juruá/Purus, os ‘Isolados do Mamoriá Grande’ devem ser compreendidos como um novo registro de povos isolados, e não um subgrupo proveniente da T.I. Hi-Merima”.

Vestígios de indígenas isolados encontrados em expedição realizada em 2021. Foto: Relatório expedição FPE Purus.


“Simplesmente chocante”

O cacique Zé Bajaga, da etnia Apurinã e coordenador executivo da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus, afirma que já tinha ouvido “relatos de pegadas, de panelas que foram achadas, de lugar de dormir, mas até então a gente achava que poderia ser dos Hi-Merimã. Mas não é. É uma mina de ouro saber disso, mas precisamos de muito apoio da Funai de Brasília para fortalecer a FPE para que ela dê proteção ao povo. Nesse momento de pandemia, se tiverem contato com a gente, vai ter extermínio daquele grupo”. 

Na avaliação de Maria Augusta Assirati, ex-presidente da Funai entre 2013 e 2014, é “simplesmente chocante saber que a Funai não está tomando nenhuma medida para fazer proteção da vida desses grupos, chocante saber que tem tido essa ação absolutamente descompromissada e que tenha simplesmente deixando de cumprir suas atribuições legais e venha fazendo com que o Estado deixe de proteger povos em situação de isolamento voluntário no Brasil”. Para ela, a CGIIRC tampouco tem agido de modo a cumprir suas obrigações legais. “Ela tem corroborado para que a gente esteja vivendo retrocesso nessa política de povos isolados no Brasil, que é política de referência e de respeito a autodeterminação desses povos.” 

Atualmente, a coordenação é exercida por Geovânio Pantoja Katukina. Antes dele, entre dezembro de 2020 novembro de 2021, estava sob o comando de Marcelo Batista Torres, servidor de carreira. Leonardo Lenin Santos, ex-coordenador de proteção e localização de índios isolados da Funai e assessor indigenista do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi), acredita que a postura dos servidores “evidencia um total alinhamento dos atuais coordenadores a essa agenda anti-indigena.”

Para Lenin Santos, “é muito absurdo que coordenadores da CGIIRC, que são pessoas que minimamente deveriam ter seu código de ética, tomam conhecimento da informação e nada fazem, não tomam nenhum procedimento solicitando a proteção territorial da área. Não há nenhuma articulação no sentido. Estamos numa pandemia, existe uma ADPF que trata de barreiras sanitárias para índios isolados e nada foi feito nada nesse sentido, para proteger epidemiologicamente esses índios”, conclui.  No dia 31 de janeiro, A OPI protocolou uma denúncia no Ministério Público do Amazonas baseada em informações sobre a omissão da CGIIRC em relação aos procedimentos para proteção dos povos indígenas isolados da região.

Angela Amanakwa Kaxuyana, da coordenação da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), reafirma a gravidade da omissão da Funai no caso dos indígenas recém-localizados. “Mas a atitude só corrobora com o que a gente tem visto, que é essa gestão da ‘Nova Funai’, que tem ignorado as demandas, a proteção dos territórios em detrimento da propriedade privada. Também temos visto isso em outros territórios de isolados”, diz, referindo-se ao caso da Terra Indígena Ituna Itatá, no Pará, onde a Funai resistiu a cumprir decisão judicial que determina a renovação da restrição de uso. Após pressão do movimento indígena, a portaria foi renovada hoje, 01-02.

Documentos informando a confirmação dos isolados foram enviados à Funai de Brasília em setembro, outubro e dezembro de 2021 Imagens: Reprodução/Funai.


Riscos epidemiológicos

Na Informação Técnica da FPE, os servidores informam que a cobertura vacinal contra Covid-19 entre os moradores das comunidades ribeirinhas desta região é de menos de 30% e que a região de Lábrea-AM já sofre com os efeitos da nova epidemia da gripe H3N2.

“O fato de ser uma localização nova é super importante porque prova que povos que a gente considerava que pudessem ter sido extintos certamente resistem. Mas essa alegria é meio ambígua, porque, se moradores da região conseguem descrever uma série de informações sobre a atitude e o modo de vida é porque estão muito próximos e isso acende um alerta sobre a urgência de que se assuma responsabilidade pelas políticas adequadas neste caso. E isso fica pior quando se pensa no cenário da pandemia e no contexto da baixa cobertura vacinal do entorno”, afirma a antropóloga Karen Shiratori, pesquisadora do Centro de Estudos Ameríndios da USP e pós-doutoranda do departamento de Antropologia da USP.

“É assustador que nesse momento os órgãos responsáveis não assumam a responsabilidade de fazer barreiras sanitárias, bases de vigilância. É urgente que a Funai saia da inércia e assuma sua responsabilidade. Eles estão fazendo vistas grossas para um possível genocídio, esse é um conflito anunciado.”

Procurado, o servidor e ex-coordenador da CGIIRC Marcelo Torres não quis se posicionar.

A Funai se posicionou por meio de nota:

“A Fundação Nacional do Índio (Funai) esclarece que, por meio da Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), tem analisado os relatos sobre a possível existência de um grupo de indígenas isolados na área Himerimã, porém somente com a continuidade dos estudos e das ações de monitoramento será possível esclarecer questões voltadas à ocupação da área.

A Fundação informa, ainda, que tem promovido articulação interinstitucional para a construção de um plano de convivência que inclua os ribeirinhos da Reserva Extrativista (RESEX), visando minimizar as tensões na região até que as equipes técnicas do órgão concluam os levantamentos necessários.

Por fim, a Funai esclarece que jamais se esquivou de apoiar as Frentes de Proteção Etnoambientais, inclusive a Frente de Proteção Etnoambiental do Purus. A Fundação promove ações ininterruptas de vigilância e fiscalização por meio de suas 11 Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE), descentralizadas em 29 Bases de Proteção Etnoambiental (Bape), localizadas estrategicamente em Terras Indígenas da Amazônia Legal. Dessas 25 Bapes, cinco foram inauguradas e quatro reativadas pela atual gestão da Funai.”

Por Tatiana Merlino

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