Grilagem de terras, violência contra quilombolas e indígenas, trabalho infantil e danos ambientais estão entre as acusações que envolvem o plantio de dendê no alto rio Acará, no Pará
No último domingo, dia 6 de fevereiro, Raimundo Serrão e mais um grupo de cerca de 60 quilombolas decidiram não se deter diante das ameaças que impediam sua circulação, e cruzaram o rio Acará, no Município de Acará, no nordeste do Estado do Pará, para retomar parte do território que reivindicam. Os quilombolas dizem ter sido dali expropriados ao longo da década de 1980, e que suas antigas comunidades se encontram hoje sobrepostas às fazendas e áreas de preservação ambiental da empresa Agropalma S.A. A situação ficou tensa quando, no dia 7, funcionários da empresa e seguranças armados e encapuzados contratados pela Agropalma encurralaram os quilombolas.
Seu Raimundo Serrão afirma que o território onde vivia com sua família até ser expulso é hoje parcialmente ocupado pela fazenda Roda de Fogo e pela fazenda Castanheira, pertencentes à Agropalma, empresa que fornece Óleo de Palma para a Nestlé, conforme indicam documentos tornados públicos pela própria multinacional suíça. Os quilombolas afirmam que estas fazendas ocupam partes do território onde estavam as comunidades quilombolas Nossa Senhora da Batalha e Comunidade Santo Antônio e onde também viviam os indígenas Tembé – todos expulsos.
Como prova, os quilombolas apontam para os quatro cemitérios ancestrais que ali se encontram, e onde estão enterrados muitos de seus entes queridos já falecidos – são pelo menos três cemitérios quilombolas e um cemitério Tembé. Junto com telhas e elementos que compunham a estrutura de sustentação das casas, esses cemitérios atestam a existência de um território multiétnico destroçado pelo monocultivo de dendê na região do alto rio Acará.
É pela importância física e simbólica destes cemitérios que, no final de outubro de 2021, Raimundo Serrão e mais um grupo de cerca de dez quilombolas deram início a uma missão arriscada, e que ao mesmo tempo mexia com o sentimento de todos nela envolvidos. Após cerca de 35 anos, decidiram fazer a limpeza do cemitério. Seu Raimundo sintetiza os riscos envolvidos: “eu ia limpar o cemitério. Eu ia descer vivo para o cemitério. Mas eu não sabia se ia voltar vivo”.
Esse deslocamento forçado é a própria história de vida de Raimundo Serrão, que, emocionado, relata o processo de expulsão. Ele relembra que os conflitos com um fazendeiro local, se iniciaram em 1975. Ele dizia ter documentos, e reivindicava a área onde Raimundo morava com a sua família: “Esse fazendeiro já veio lá em casa pra falar pro meu pai pra ele aceitar o dinheiro de indenização. Que se ele não aceitasse, iam matar meu pai, matar meus irmãos.”
Raimundo tinha 12 irmãos, sendo ele o mais velho. Na época em que os conflitos se intensificaram, tinha 15 anos de idade. Ficou assustado e tentou mediar a situação, clamando para que sua mãe o ajudasse a convencer seu pai a aceitar a oferta pela área onde viviam. “A proposta era cem cruzeiros. Ou ele (seu pai) pegava cem cruzeiros, ou eles (fazendeiro e pistoleiros) colocavam fogo na casa, e acabava tudo. Ia matar todo mundo”, rememora, entre lágrimas, Seu Raimundo.
Com dor e voz trêmula, ele conta de uma visita específica dos pistoleiros armados, que ameaçaram matar a todos. Raimundo Serrão e sua mãe finalmente convenceram seu pai a aceitar os cem cruzeiros e foram para Belém. Uma vez na cidade, não conseguiram se adaptar. “Eu falo sobre isso. Mas pra mim é a mesma coisa de ter acontecido hoje. Dói demais. E desde esse tempo, eu nunca mais tive paz. Só rodando, só rodando…”, desabafa Raimundo, que desde então transitou pela região, apenas conseguindo se reestabelecer em definitivo na Vila Palmares no final de 2021 – a comunidade abriga as famílias deslocadas por este processo de implementação do monocultivo de dendê na região.
A história se repete
A história de Raimundo Serrão não é única. Ela é compartilhada por centenas de outros quilombolas e indígenas Tembé. “Eram 186 famílias. Hoje estamos em média de 80 famílias”, relata José Joaquim dos Santos Pimenta, presidente da Associação dos Remanescentes de Quilombos da Comunidade da Balsa, Turiaçu, Gonçalves e Vila Palmares do Vale do Acará e um dos moradores da Vila Palmares.
Muitas das famílias se espalharam por essas vilas que justamente dão o nome à Associação Quilombola. Outras, foram embora, intimidadas. Joaquim dos Santos Pimenta conta que os fazendeiros e seus pistoleiros “pegavam um documento falso e apresentavam aos moradores a proposta de compra, em valores muito inferiores ao que valia qualquer hectare de terra. E aí falavam: ‘se você não aceitar a proposta, o fazendeiro vai te expulsar daqui de dentro. E você sabe como que o fazendeiro expulsa o pessoal da terra’”.
“O pessoal ficava com medo”, continua Joaquim. “As pessoas se assujeitaram a sair. Algumas foram para o Acará, outras foram para Tailândia (cidade do nordeste paraense). Na década de 1990, um cidadão chamado Bolívar, comprou uma área, e que hoje é a Vila de Palmares. Essa Vila recebeu a maior parte do pessoal que foi expropriado”, conta o líder quilombola.
Em 2018, as duas fazendas – Roda de Fogo e Castanheira – pertencentes à empresa Agropalma, tiveram suas matrículas bloqueadas pela Justiça Estadual do Pará, após o Ministério Público do Estado do Pará ajuizar Ação Civil Pública. Em nota publicada no momento da decisão, o Ministério Público do Estado do Pará afirmou que “as áreas das fazendas Roda de Fogo e Castanheira teriam sido alienadas com base em documentos falsos emitidos por cartório inexistente e por pessoas sem habilitação para tanto”.
Após a Agropalma recorrer, o Tribunal de Justiça do Pará, em decisão da Desembargadora Célia Regina de Lima Pinheiro, manteve o cancelamento da matrícula das fazendas Roda de Fogo e Castanheira.
As decisões judiciais indicam a existência de grilagem de terra, fraude cartorial e corrobora com a narrativa dos quilombolas desalojados. Entretanto, as duas fazendas seguem operando com a Agropalma, seja para fins de preservação ambiental da empresa, seja para produção de dendê.
Os indígenas Tembé também se dispersaram pelas vilas da região, ou foram morar na Terra Indígena Tembé. “Os coitados dos índios abandonaram as aldeias deles. Fugiram de noite, fizeram um casco em (um tronco de) Angeli, muito grande, e colocaram os bagulhos deles e foram embora”, relata Raimundo Serrão.
Monocultivo de vigilância
Ao longo do dia, enquanto realizavam a limpeza do cemitério, apesar de saberem dos perigos envolvidos na limpeza do cemitério, quando escutaram tiros dados ao alto, Raimundo Serrão e os outros quilombolas não entenderam de imediato que eram disparos de aviso ou de ameaça. Pensaram que eram caçadores, em busca de carne de caça – prática corriqueira entre os caboclos da região.
Após terminar a limpeza, ao voltar para o local onde tinham estacionado as suas motos, o grupo teve uma triste surpresa: três delas haviam sumido, inclusive a de Seu Raimundo. “No dia que trouxeram (levaram) minha moto eu chorei bastante. Eu deixei num canto, eles trouxeram (levaram) escondido”, diz o quilombola, referindo-se a uma zona cinzenta em que ações tomadas por seguranças privados da Agropalma (e da empresa por ela contratada) misturam-se com a de membros da Polícia Militar paraense. As motos foram apreendidas no dia da limpeza do cemitério, e levadas para a Delegacia do Município de Tailândia. “Uma coisa dessas, eu acho triste demais”, desabafa Seu Raimundo. Segundo a liderança quilombola Joaquim dos Santos Pimenta, as motos ficaram detidas por 15 dias. Os quilombolas relatam que apreensões deste tipo são frequentes. Quando ocorrem com Seu Raimundo, ele, que só tem uma perna e depende da motocicleta adaptada para sua locomoção, é obrigado a andar quase 12 quilômetros a pé.
Além de desalojados de seu território tradicional, os quilombolas alegam que não podem transitar livremente nem pelos cemitérios comunitários onde jazem seus entes queridos, nem pelas áreas comuns, como o rio Acará, onde pescam, e tampouco nas florestas, onde praticam a caça, fundamentais para sua sobrevivência: “eu sou caboclo, gosto de pescar, de carne de caça. Não como carne de gado nem frango”, comenta Raimundo.
“Eles impedem a gente de ter acesso ao rio. Com segurança da empresa, e a própria polícia lá. Se eles toparem uma pessoa, pegam a zagaia (um ferro na ponta de uma vara pra fisgar o peixe), pegam a malhadeira, levam a bicicleta, quebram a canoa”, relata. “Isso, quando eles não trazem em cima da viatura preso, pra levar pra Tailândia. E aí quando pegam é pior, porque a pessoa só vai comer quando sair da cadeia, no dia seguinte”, afirma.
De acordo com ele, há um intenso sistema de vigilância, para impedir que os quilombolas cheguem ao rio. “Eles tem câmeras, no meio do campo, tem os guardas. Quando eles não pegam as pessoas na estrada, eles pegam a voadeira (tipo de barco veloz) e vão atrás das pessoas. Eles tem umas quatro voadeiras só pra fazer esse tipo de trabalho, colocam dois policiais dentro da voadeira. E vão humilhar”, prossegue Seu Raimundo. “Eu tenho pra mim que empresa nenhuma é dona do rio”.
“Conservação ambiental-empresarial”
Elielson Pereira da Silva é doutor em Desenvolvimento Socioambiental, no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA). Sua pesquisa de doutorado compara os processos políticos e violências envolvidas na instalação das plantations, grandes campos de monocultivo, de dendê em dois territórios Amazônicos, na Colômbia e na região do Alto Acará.
Ele explicita a relação entre a expulsão forçada e as tecnologias de controle e vigilância que impedem os quilombolas de usufruírem de áreas comuns: “Há uma grande dispersão. Essas pessoas que reivindicam o território, não estão no território. E por que elas não estão no território?”, pergunta, de maneira retórica. “Porque existe todo um controle muito estrito, com vigilância, câmeras, drones, placas, com postos de vigilância, responde ele mesmo.
“Eles têm dois tipos de agentes que atuam na segurança da empresa: os olheiros que ficam em postos de vigilância espalhados no campo e às margens do rio Acará, observando a movimentação. Quando visualizam alguma situação considerada ‘suspeita’, acionam (uma) empresa de segurança”, explica o pesquisador. Segundo Elielson, “esta por sua vez, dispõe de apoio irrestrito da Polícia Militar da Vila Palmares”.
Para Elielson Silva, “a pistolagem nessa região se transmutou em “segurança patrimonial” irmanada com a PM. A Agropalma é o próprio Estado empresarial. Ela determina quem vive e quem morre. O poder soberano é exercido por ela”.
O pesquisador critica o que ele chama de “uma lógica de conservação ambiental-empresarial”. Um discurso que clama por preservação ambiental mas que exclui as pessoas que vivem em seus territórios. O apelo deste discurso é tão significativo, que a própria Agropalma exalta-o em seu site, onde se lê: “dos 107 mil hectares que fazem parte do Grupo Agropalma 64 mil são ocupados por de reservas florestais protegidas, onde são proibidas atividades de caça e pesca, o que possibilita a manutenção dos processos ecológicos dentro dessas áreas”.
A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Pará não respondeu às repetidas solicitações de posicionamento do Joio quanto às denúncias dos quilombolas.
Em nota, o Ministério Público Federal no Pará afirmou que “tem procedimento administrativo aberto para acompanhar as ações dos órgãos responsáveis pelo procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes de quilombos (…) no município de Acará/PA”.
O MPF também indica que tem atuado em diversos inquéritos e processos relacionados “aos impactos socioambientais provocados por esse setor no Pará” e enfatiza “a necessidade de melhorias na fiscalização”.
Para Andreia Macedo Barreto, Defensora Pública do Estado do Pará, da Defensoria Agrária de Castanhal que acompanha a demanda de titulação dos territórios quilombolas e as violações cometidas pela empresa Agropalma “os processos administrativos da empresa devem ser indeferidos, seja em razão da prática da grilagem seja porque tramita processo da associação quilombola, que tem prioridade no processo de regularização fundiária. As terras deveriam ser retomadas pelo Estado do Pará para destinação de povos e comunidades tradicionais que foram desterritorializados”, pontua a defensora pública.
A Defensoria Pública ajuizou uma ação cautelar, em 2020, “para garantir acesso aos cemitérios no dia de Finados”, e pretende “ajuizar mais uma ação para discutir não apenas o acesso aos cemitérios, mas o direito ao território, o que envolve acesso aos recursos naturais, trabalho e moradia”. Leia as respostas enviadas pela Defensoria Pública aqui.
Reivindicação quilombola
“O alto Acará é o epicentro do dendê não só no Pará não, mas no Brasil”, explica Elielson Silva. Ali estão localizados os municípios de Acará, Tomé-Açu, Tailândia e uma parte de Moju, todos no nordeste do Pará. De acordo com dados da Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e da Pesca do Estado do Pará (SEDAP), o Estado concentra 98,47% do dendê produzido no Brasil. Juntos, esses municípios concentram cerca de 72% de toda a produção paraense, que vem crescendo. Entre 2015 e 2019, a área que o Estado do Pará colheu de dendê passou de cerca de 86 mil hectares para 164 mil hectares, também segundo os dados da SEDAP.
Elielson reflete sobre o esvaziamento das comunidades quilombolas e o que chama de privatização do rio. “No Alto Acará você vai ver pouquíssimas casas na beira do rio. Você vai ver tocos de casas, pedaços de esteio de casas, ruínas de trapiches – onde as pessoas ancoravam suas embarcações. Havia uma circulação intensa de pessoas, mercadorias. Havia um fluxo muito intenso, antes da plantation do dendê. Esse fluxo, ele morre, porque a empresa (Agropalma) simplesmente privatiza o rio.”
O pesquisador se refere a esse processo de retirada das populações quilombola e Tembé para a instalação do monocultivo de dendê como um “deslocamento compulsório”, e precisa que “em 1993/94 ocorreu a última grande expulsão”. “Os fazendeiros fizeram isso para poder abrir caminho para a grande plantação moderna do dendê”, resume.
Joaquim dos Santos Pimenta e os demais quilombolas dispersos pelas vilas da região lutam pela retomada das comunidades expropriadas. Em 2015, os refugiados da beira do rio se organizaram em uma associação para reivindicar o território de volta. “O tamanho da área que nós reivindicamos são 19 mil hectares: a comunidade Nossa Senhora da Batalha e a comunidade Santo Antônio. Essas duas comunidades foram extintas, o pessoal foi desapropriado, para o pessoal se apropriar da terra. É esse território, que nós estamos reivindicando de volta”, relata Joaquim. “A comunidade já sofreu demais”, explica.
Joaquim conta que em 2016, após o pedido da associação quilombola, o Instituto de Terras do Pará (ITERPA) foi fazer o trabalho de titulação do território. Segundo Elielson Silva, o ITERPA fez uma vistoria em 2018, e em novembro de 2019 uma vistoria específica das fazendas Roda de Fogo e Castanheira.
Segundo o site do ITERPA, a missão do instituto é “a prestação de serviços de regularização fundiária de áreas públicas do Estado do Pará e de reconhecer a validade dos títulos de terras por ele expedidos com o objetivo de assegurar ao produtor rural em todos os seus perfis, a comunidades tradicionais e remanescentes quilombolas a titulação das suas áreas”. Entretanto, Joaquim relata que a documentação referente ao processo de titulação dos quilombolas do alto Acará estava desaparecida “tanto do ITERPA quanto do próprio site”. O processo de demanda da titulação do território quilombola junto ao ITERPA, ao qual a reportagem do Joio teve acesso, foi apenas obtido pelos quilombolas e pela Defensoria Pública Agrária de Castanhal em dezembro de 2021, após a Defensoria notificar o ITERPA.
A assessoria de imprensa do Instituto de Terras do Pará não respondeu às repetidas tentativas de contato do Joio.
Seu Joaquim sintetiza a situação de expulsão e exclusão de seu próprio território: “eles querem a gente longe de lá. Eles têm medo, porque nós lá somos uma pedra no sapato.”
Por nota, a Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), Herena Neves Maués Corrêa de Melo afirma que “o conceito ‘desenvolvimento sustentável’ empreendido naquele projeto (da Agropalma), embora bastante propagandeado nos meios empresariais, está longe de representar o que se espera da boa-fé econômica e jurídica que justifique o uso do termo interesse público.”
Em relação à situação dos quilombolas residentes do município de Acará, a Promotora afirma que essas populações “passaram por um longo processo de expropriação para dar lugar ao monocultivo de Dendê da Agropalma S.A. e que reivindicam a titulação de seu território tradicional”, de modo que a 8ª Promotoria de Justiça Agrária de Castanhal possui investigações em andamentos nos municípios de Moju, Tailândia, Acará e Tomé-Açu.
Por fim, no que diz respeito às acusações dos quilombolas de que a empresa Agropalma, em associação com policiais militares, impede a sua circulação por antigas comunidades e pelo Rio Acará, a promotora Herena Neves Maués Corrêa de Melo afirma que o MPPA “recomenda a Empresa AGROPALMA S/A., e seus prepostos, no que couber, a adoção de medidas que NÃO OBSTACULIZEM/ IMPEÇAM/ RESTRINJAM o tráfego de comunitários do Alto Rio Acará pela estrada que dá acesso ao cemitério da antiga Vila Nossa Senhora da Batalha, localizado às margens do Rio Acará, e ao rio Acará no Município do Acará-PA, com a finalidade de assegurar direitos de locomoção e liberdade religiosa, crença e consciência”. Veja aqui as recomendações do MPPA quanto a liberdade de circulação dos quilombolas pelos seus territórios.
Agrotóxicos e dejetos nos rios
Outra faceta deste processo de implementação do monocultivo de dendê no Alto Acará são os impactos ambientais.
O pesquisador Elielson Silva salienta o uso excessivo de glifosato – agrotóxico que vem sendo paulatinamente proibido ao redor do mundo, devido a uma relevante incidência de casos de câncer relacionados à sua aplicação. “Eles continuam utilizando grandes quantidades de glifosato, para fazer a limpeza, o coroamento das plantas de dendê. Não querem contratar mão de obra para roçar e preferem utilizar o glifosato em grandes quantidades”, afirma. Um estudo de 2018, realizado por Rosa Helena Ribeiro Cruz, pesquisadora da Universidade Federal do Pará (UFPA) aponta para “uso indiscriminado de agrotóxicos” e “impactos nos recursos hídricos”, relacionados ao plantio de Dendê em sub-bacias hidrográficas do município de Tailândia.
Há, ainda, os impactos causados pela tibórnia, termo utilizado para se referir aos rejeitos, os efluentes agroindustriais do cozimento do dendê e da lavagem dos tanques que, apesar da existência de bacias de rejeito, são despejados nos dendezais como fertilizante. “Eles dizem que essa tibórnia é o adubo orgânico para as palmas”, afirma Seu Joaquim. “Só que quando isso cai no rio, isso destrói tudo. Os peixes vão morrendo, penetra no solo, no fundo do igarapé, e cria um tipo de limo que peixe nenhum consegue se procriar no fundo da água. Boia umas mantas de barro podre do fundo do igarapé”
Impedido de beber a água dos igarapés, Seu Joaquim lamenta que os peixes já não mais sobem os rios para desovarem, a chamada piracema: “e como, quem depende da pesca, vai sobreviver?”, questiona a liderança quilombola. “A nossa luta, não é só por território. É uma luta por sobrevivência”, resume Joaquim.
“Nestlé financia a exploração do trabalho infantil na cadeia produtiva da palma”
Além dos quilombolas e indígenas expulsos de seus territórios viverem sob vigilância e terem as águas contaminadas, os moradores e pequenos proprietários de comunidades da região são usados para trabalho escravo. De acordo com Marques Casara, jornalista, e diretor executivo do Instituto Papel Social, agência especializada em investigação de cadeias produtivas, de todas empresas que atuam na região “a Agropalma é a empresa mais criminosa dessas todas. Ela opera com fraudes, ela opera com suborno e ela opera com contratos desumanos que maquiam o trabalho escravo. Este é o cenário”.
Em 2019, a partir de uma iniciativa da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Ministério Público do Trabalho (MPT), Casara realizou uma análise da cadeia de produção do óleo de palma no Pará.
Segundo ele, o trabalho escravo dos agricultores que fornecem óleo de palma para Agropalma tem origem no momento de chegada da empresa no alto Acará, que além de terras públicas e comunidades tradicionais (como as de Seu Raimundo e Joaquim), encontrou pequenos agricultores na região. “Construiu-se um discurso de que a chegada da Palma ia ser como um eldorado para essas pessoas. Foram implantados projetos, e foi feito uma série de contratos com agricultores familiares, de maneira que eles obtiveram financiamento de bancos públicos, e eles iriam pagar as prestações a partir de laudos, e iam conseguir renovar contratos, a partir de laudos emitidos pelas próprias empresas”, sintetiza Casara.
Isto criou uma relação de poder que ele qualifica como “absolutamente desigual, na qual o agricultor fica a mercê da empresa. Ele não pode vender para outra empresa. Se ele não pode vender para outra empresa, você está violando o Estatuto da Terra. Se você viola o Estatuto da Terra, a depender da condição de trabalho que você observa ali, ela esconde o trabalho escravo”, resume.
Para ele, a relação de poder da empresa com os agricultores é tão desigual que ela determina o quanto vai pagar para uma palma que o agricultor não pode vender para outro. “Mesmo que alguém chegue dizendo: ‘eu te pago mais por esta palma, pelo fruto’, ele não pode, porque ele está preso a um contrato de exclusividade, num preço determinado pela empresa, que diz estar referenciada pela cotação internacional”. Desta forma, segundo Casara constatou em sua investigação, o “agricultor está preso nesta situação de uma dívida que ele nunca vai poder pagar, e ele coloca então todos os recursos disponíveis para fazer o serviço. E o recurso disponível mais a mão deles, são os filhos”.
Casara relata que o trabalho infantil é uma prática generalizada em toda a área, e em diversas empresas que atuam na produção de óleo de palma no nordeste do Pará, incluindo a Agropalma: “opera-se ali um discurso ilegal de que isso meio que faz parte do dia a dia das famílias. Que as crianças só vão para ficar junto, que elas não trabalham”, reflete Casara.
Uma das preocupações de Casara em sua investigação está exatamente centrada em compreender os elos de compradores internacionais do óleo de palma produzido na região taxativo em explicitar o papel da Nestlé nesta cadeia: “a Nestlé financia a exploração do trabalho infantil na cadeia produtiva da palma”, afirma Casara.
Ele narra também que a própria Organização Internacional do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho avisaram as multinacionais que compram da Agropalma e demais empresas produtoras de óleo de palma que tiveram suas cadeias analisadas: “as multinacionais sabem, pois elas foram avisadas pela Organização Internacional do Trabalho, em 2019, quando nós fizemos a pesquisa.”, explicita Casara.
Por e-mail, o Ministério Público do Trabalho no Pará e Amapá confirmou à reportagem do Joio que um Inquérito Civil ativo foi “aberto a partir do relatório produzido pelo Instituto Papel Social, em 2021”, a respeito das graves violações de direitos humanos apontados pelo Instituto Papel Social na cadeia de produção de produção do óleo de dendê pela Agropalma S.A. e outras empresas que atuam na região.
“A grande pergunta que eu me faço, é a seguinte: por que, a Nestlé, não explora crianças na Suíça, e explora no Brasil? O que que muda, no comportamento de uma empresa, ou o que que muda, nos seus códigos, nos seus protocolos de funcionamento, para que ela não explore crianças na Suíça, onde está a matriz da empresa, e ela aceite a exploração de crianças em várias cadeias produtivas, no Brasil e na África?,” questiona Casara.
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A reportagem do Joio consultou Daniel Cerqueira, advogado brasileiro com uma sólida trajetória na defesa de direitos humanos em processos internacionais. Ele é diretor do programa de direitos humanos e recursos naturais da Due Process of Law Foundation (Fundação para o Devido Processo, em livre tradução), cuja sede está localizada em Washington D.C., nos Estados Unidos.
Cerqueira fez uma reflexão ampla sobre responsabilidade corporativa internacional, o que considera um campo em “plena evolução”. Ele cita um documento elaborado pela Organização das Nações Unidas, os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos (Guiding Principles on Business and Human Rights, em inglês), que são uma série de diretrizes publicadas em 2011 para Estados e empresas prevenirem, lidarem e remediarem violações de direitos humanos cometidas por atividades empresariais.
Concomitante à publicação dos Princípios Orientadores, foi criado um grupo de trabalho na ONU para implementar estes princípios. Cerqueira explica que este “grupo de trabalho tem emitido uma série de pronunciamentos, esclarecendo um conceito bastante antigo no direito que se chamada devida diligência, due diligence em inglês”. Trata-se de conceito utilizado para determinar formas de atuação das empresas para não serem tolerantes ou co-partícipes de violações de direitos humanos.
Cerqueira esmiuça a existência de um conceito específico para direitos humanos: “devida diligência corporativa em matéria de direitos humanos”, segundo o qual, uma empresa multinacional que atua em diversos países, com uma complexa cadeia de fornecedores, pode ser responsabilizada por violações de direitos humanos cometidas por companhias que compõem o elo de sua operação: “Quanto mais complexa a operação dessa empresa, maior a necessidade de adiantar os eventuais perigos em sua cadeia produtiva. Inclusive, perigos que são provenientes dos seus fornecedores. Não decisões diretamente da empresa, mas se a empresa está contratando algum serviço de uma outra companhia que está envolvida, digamos, em trabalho escravo, outros tipos de violação de direitos humanos, isso pode gerar responsabilidade civil, pelo menos, e eventualmente até penal dessa própria empresa acionada”.
Para o advogado, o conceito de devida diligência “claramente estabelece alguns requisitos para esse tipo de empresa, como é o caso da Nestlé, antecipar e obviamente, se já tem o conhecimento desse tipo de prática violatória de direitos humanos, tem que tomar medida de eventualmente suspender fornecedores que estão envolvidos nesse tipo de violações a direitos internacionalmente reconhecidos.”
Existem desde pelo menos 2012 investigações e reportagens indicando práticas de violação de direitos humanos envolvendo a empresa Agropalma S.A., inclusive de compra de fazendas duas vezes flagrada com trabalhadores submetidos a trabalho análogo a escravidão, além das próprias investigações do Ministério Público do Estado do Pará e do Ministério Público Federal no Pará.
Embora não exista um tribunal internacional com competência para julgar uma empresa internacionalmente responsável em relação a direitos humanos, existem duas possibilidades de ações no campo judicial. A primeira possibilidade é a Nestlé responder judicialmente na Suíça, sua sede, por violações de Direitos Humanos praticadas pela sua cadeia de produção. A segunda possibilidade é a Nestlé ser processada no Brasil, e aí caberia ao Ministério Público Estadual ou Federal, conforme a competência, exigir justiça nos tribunais.
Ou seja, “se a empresa tem conhecimento de que existe violação de direitos humanos, e continua mantendo esses fornecedores na sua cadeia de produção, civilmente poderiam ser responsabilizados tanto na Suíça, quanto no Brasil”, resume Cerqueira. O próprio Brasil, enquanto Estado, pode ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. “Obviamente, o Estado brasileiro está obrigado, pelo Direito Internacional, a prevenir e remediar, e no caso, prover justiça, nesse tipo de situação.”
“Se é uma informação de conhecimento público, o Estado brasileiro está também incumprindo suas obrigações internacionais,” conclui Cerqueira.
Cerqueira cita também três mecanismos não-judiciais de responsabilizar a Nestlé por tolerar violação de direitos humanos em sua cadeia. O primeiro é um instrumento chamado “pontos de contato” da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – grupo de países ricos ao qual a Suíça pertence e do qual o Brasil almeja tornar-se membro. “Pontos de contato que são basicamente mecanismos de mediação de solução e controvérsias envolvendo investimento de empresas de países membros, ou países que aderem aos mecanismos de pontos de contato”, explica o advogado.
O segundo exemplo é o Pacto Global. Trata-se de uma iniciativa da Organização das Nações Unidas lançada em 2000 para disseminar práticas empresariais de acordo com 10 princípios, em áreas como meio ambiente, direitos humanos e trabalhistas, a qual as empresas podem aderir voluntariamente – e do qual a Nestlé faz parte. As empresas podem ser retiradas desta lista (delist, em inglês), caso suas decisões se mostrem tolerante a violações de direitos humanos por parte da própria empresa ou sua cadeia de fornecimento.
O advogado também explica que entre as medidas extra-judicais, existe a possibilidade dos acionistas da empresa se sentirem lesados por ações da empresa tolerantes à violações de direitos humanos ou de sua cadeia de fornecedores, e ingressarem com ações judiciais contra as empresas: “quando o braço executivo de uma empresa toma decisões que finalmente toleram violações de direitos humanos e isso gera prejuízos para a marca da empresa, acionistas podem depois demandar justamente por falta de transparência, porque não foi informado ao conselho de acionistas”, afirma Cerqueira.
O que dizem as empresas envolvidas?
Procurada, a Nestlé não se pronunciou até o fechamento da reportagem.
Já a empresa Agropalma, afirma, por meio de nota, que “a Agropalma está na região desde 1982, ou seja, há 40 anos. Todas as suas terras foram adquiridas de boa-fé de seus legítimos proprietários e possuidores, inclusive com a confirmação da documentação pelos órgãos competentes na época da aquisição. Infelizmente, décadas após a compra, foram constatadas falhas cartoriais que comprometeram a legitimidade da documentação fundiária dos imóveis citados. Logo que tomou conhecimento do problema, a própria Agropalma acionou os órgãos competentes e pediu o cancelamento das matrículas e iniciou o processo de regularização fundiária, conforme determina a legislação.”
A nota afirma ainda que “a Agropalma jamais retirou qualquer comunitário de suas terras e jamais fez ameaças a qualquer comunidade ou vizinhos moradores do entorno de suas fazendas”, e defende que “não há plantações de palma sobre qualquer cemitério”.
Quanto às acusações de que a Agropalma impede a circulação nos rios e florestas, a empresa afirma que “a circulação no Rio Acará é livre para quem quiser nele navegar”, e que “sempre que detectamos a presença de caçadores dentro de nossas reservas florestais, a empresa toma as providências cabíveis, conforme determinado pelas regulamentações ambientais, apreendendo armas de fogo caseiras montadas em armadilha e, se necessário, acionamos a polícia para apreender armamento e veículos de caçadores”.
A respeito dos impactos ambientais da ação da empresa, a Agropalma afirma, sem os dados, que “estudos realizados por pesquisadores da UFPA registram que todas as amostras de água coletadas dentro da área da empresa não tinham contaminação”. Conclui ainda, acerca da “tibórnia”, nome dado pelos moradores locais ao efluente da indústria de extração de óleo de palma, que “todo o efluente é tratado em lagoas anaeróbicas e posteriormente utilizado como fertilizante líquido nas plantações” e que “não lançamos o material nos cursos d’água, ao mesmo tempo em que se reduz a necessidade de fertilizantes”.
Por fim, “a Agropalma reforça sua preocupação com as pessoas e combate todos os tipos de trabalho forçado ou escravo e tem tolerância zero para essas práticas, assim como para o trabalho infantil. A empresa tem adotado, inclusive, um papel mais amplo na prevenção de práticas de exploração dos trabalhadores. É membro ativo do Instituto do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPACTO) e utiliza a “lista suja” oficial na avaliação de fornecedores potenciais, além de criar restrições comerciais contra os incluídos nesta lista.”