Denúncia foi apresentada por associação da indústria de alimentos em processo judicial. Em todo o mundo, fabricantes acusam varejistas de copiar produtos para disputar fatias de mercado
Um e-mail anexado pela Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) a um processo que tramita na Justiça Federal mostra que em setembro do ano passado o Carrefour passou a exigir que fornecedores de alimentos processados entregassem à varejista informações sigilosas sobre seus produtos.
Entre as informações exigidas pelo Carrefour estavam o “modo de preparo” dos produtos, a quantidade de açúcares totais – que se tornará obrigatória nos rótulos só a partir de outubro deste ano – e a quantidade percentual de frutas, legumes, verduras, castanhas variadas, óleo de canola e azeite.
Segundo o documento, o fornecimento dessas informações seria obrigatório a partir de 1º de setembro de 2021 e condição para “conclusão do cadastro” no Portal de Fornecedores do Carrefour.
Em nota enviada ao Joio, o Carrefour negou que tenha condicionado o fornecimento de informações à comercialização dos produtos na rede: “A empresa não condicionou o cadastro dos produtos ao envio das informações à venda dos mesmos na rede.” Procurada para comentar a denúncia, a Abia decidiu não se manifestar.
O e-mail anexado ao processo foi enviado pelo gerente de planejamento comercial de perecíveis do Carrefour, Frederico Rezende Gomes, a uma ou mais empresas associadas da Abia. O vídeo tutorial linkado ao final da mensagem tem 148 visualizações, sendo possível presumir que as exigências foram feitas a uma série de fornecedores simultaneamente.
O texto enviado por Gomes explica que as mudanças se aplicam aos setores de “Salsicharia” (que contém frios e carnes embutidas), “Seca” (produtos alimentícios secos), “PAS” (produtos de alta saída), que engloba laticínios e massas congeladas e “Líquida (exceto alcoólicos)”, o que inclui sucos, refrigerantes e energéticos. Em resumo, à maior parte das seções do supermercado.
Entre as informações solicitadas está o modo de preparo, “quando necessário” – não fica claro quais categorias estariam sujeitas à essa exigência – a quantidade de açúcar, e o percentual de composição de frutas, legumes, verduras, óleo de canola, castanhas e azeite em cada produto.
Gomes escreve no e-mail que a iniciativa tem o intuito de melhorar a qualidade do cadastro do Carrefour e dar mais transparência de informações aos clientes da rede. “Peço atenção ao tema pois a partir da data em questão [1º de setembro] estas informações passam a ser indispensáveis para a conclusão do cadastro”, diz o texto.
Nutri Escolha
O objetivo da requisição era abastecer o aplicativo Nutri Escolha, do Carrefour, que dá notas de “A” a “E” para os produtos vendidos na rede e promete facilitar escolhas mais baratas e saudáveis.
O aplicativo utiliza o método Nutri Score, criado na França e utilizado de maneira voluntária por fabricantes de alimentos naquele país.
O Nutri Score utiliza a percentagem de óleo de canola, castanhas, frutas, legumes e verduras para conferir pontos positivos aos produtos, e o teor de açúcar, sal e gorduras para conferir pontos negativos.
Somados, os pontos resultam em uma nota que vai de “A” a “E”. Quanto mais próximo de “A”, mais saudável, e vice-versa.
Briga de gigantes
Em julho do ano passado a Abia denunciou o app do Carrefour na Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), vinculada ao Ministério da Justiça – em uma disputa que gerou troca de acusações entre a associação e o Carrefour.
A alegação da Abia é de que o algoritmo fere o sistema de lupa adotado pela Anvisa, cria desequilíbrios concorrenciais e privilegia produtos de marca própria do Carrefour.
A Associação também questiona o uso dos dados pelo Carrefour, alegando que a rede não tem transparência em relação às informações recebidas, podendo utilizá-las para fins não declarados.
Implícita, está a preocupação de que o Carrefour utilize essas informações para fortalecer sua estratégia de marca própria – aproveitando dados utilizados pelos fornecedores para aprimorar produtos vendidos sob o selo “Carrefour”.
Hoje, 15,3% da receita líquida total de alimentos do Carrefour é composta por produtos de marca própria, que custam em média 30% menos quando comparados a marcas líderes de mercado.
Em 2020, a multinacional varejista tinha, no Brasil, 2.769 produtos alimentares comercializados sob marca própria, 600 deles lançados apenas naquele ano.
No mundo todo, varejistas e fornecedores travam quedas de braço em torno do fornecimento de informações. As indústrias acusam as redes de supermercado de promover exigências abusivas para, entre outras coisas, conseguir desenvolver rapidamente produtos de marca própria a partir das criações de outras empresas, uma tática conhecida como copycat.
Na Espanha, em 2011, a Comissão Nacional da Concorrência aplicou questionários a 47 empresas do setor alimentício para saber mais sobre essas relações. No total, 22% relatam ter recebido exigências “injustificadas” de compartilhamento de informação estratégica, mas esse índice dobra quando se trata das marcas líderes. Nesse caso, 80% acusam que tiveram a identidade de marca copiada de alguma maneira pelos varejistas.
Derrota na Senacon
Vinte e cinco dias após a denúncia protocolada pela Abia, a Senacon determinou a suspensão do Nutri Escolha, alegando que o aplicativo induz o consumidor em erro e dá notas altas para produtos ultraprocessados – contrariando recomendação do Guia Alimentar para a População Brasileira.
Foi então que o Carrefour moveu processo na Justiça Federal, alegando que havia tido o direito à ampla defesa cerceado pela Senacon.
Na tentativa de ingressar como “amiga da corte” no processo, a Abia colacionou aos autos o e-mail que mostra a exigência de informações sigilosas feita pelo Carrefour. Para a entidade, a prática da rede de mercados configura abuso de poder econômico e afronta ao segredo comercial das fornecedoras.
Donos do Mercado
O livro Donos do Mercado, publicado pelos repórteres do Joio João Peres e Victor Matioli, mostra que o Carrefour tem práticas abusivas em relação a fornecedores em geral, cobrando taxas em cima da inauguração de lojas – os chamados enxovais – e forçando que arquem com custos relacionados a promoções realizadas dentro das lojas.
O Carrefour é a maior rede de supermercados do Brasil, com 72 mil funcionários e 498 lojas físicas espalhadas pelo país. Em março de 2021, a empresa anunciou a compra do BIG (antigo Walmart), à época a terceira maior rede do país.
Clique aqui para conferir a resposta completa do Carrefour.