Moradoras de ocupação na Grande São Paulo fazem parte dos 33 milhões que passam fome no Brasil
Já é quase hora do almoço, mas na casa de dona Angela não há cheiro de comida, não tem panela apitando, nem som de comida no fogo. Não há nenhum sinal de que a família esteja preparando uma refeição. “O que vocês vão comer hoje?”, perguntamos. “A gente ainda vai ver. Ovo, uma coisa básica”, responde Aliny, filha de Angela.
Nos últimos anos, os itens da despensa da família de Antônia Angela Soares, de 48 anos, foram desaparecendo. No dia da nossa conversa, no armário da cozinha só havia massa de trigo. “E na minha casa, não tem nada”, diz Aliny, enquanto sua filha mais nova brinca com um aparelho de celular e chupa um pirulito.
Mãe e filha são vizinhas de barraco na ocupação Queixadas, no município de Cajamar, na grande São Paulo, onde vivem 105 famílias e cerca de 400 pessoas.
Nascidas no Piauí, vieram para São Paulo há quase 20 anos. Em diferentes momentos da vida, Angela e Aliny foram vítimas de violência doméstica. Viviam em casa alugada, até que chegou um momento em que foram obrigadas a escolher entre e pagar aluguel ou comer.
Foi quando descobriram a ocupação Queixadas e mudaram – em 2020. Mas nos últimos anos, com a alta do preço dos alimentos e o desemprego, nem comida conseguem comprar direito.
Do prato da família foi saindo a mistura, óleo, tempero.. “Você vai no mercado com cem reais, compra um frango e já era”, conta Angela. “Leite mesmo é uma raridade”, completa Aliny.
Mulheres e pessoas negras são as mais atingidas
Aliny e Angela fazem parte dos 33 milhões de brasileiros que passam fome. Os números foram publicados no dia 8 e são resultado do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.
Desde 2020, cresceu em 70% o número de pessoas em insegurança alimentar grave.
A pesquisa mostra ainda que a fome é muito maior entre mulheres, pessoas negras, moradores de zonas rurais e residentes das regiões Norte e Nordeste.
Uma em cada cinco casas chefiadas por mulheres está em insegurança alimentar.
Ao mesmo tempo, domicílios habitados por pessoas brancas registraram um índice de segurança alimentar de 53%, contra 35% de domicílios habitados por pessoas negras.
Aliny e Angela se encaixam em ambas as categorias. São mulheres negras, mães-solo e responsáveis pelo sustento das famílias.
Quando fizemos a entrevista com a Aliny, ela recebia Auxílio Brasil – o benefício foi cortado logo depois – mas disse que ele não cumpre “nem metade” da necessidade de uma mãe de família.
“Eles pensam que com 400 reais você vai no mercado e traz o que? A cartela de ovo tá 20 reais, você nem sabe o que fazer. Às vezes a gente deixa de comer pra dá pra criança”, conta.
Além de deixar de se alimentar para garantir comida para as crianças, muitas vezes elas tiveram que dormir com fome. A saída é “fazer um cafezinho, um cuscuz e ir dormir”, conta Angela. “As crianças ficam pedindo as coisas, a gente fica agoniado. Aí já dói por dentro. A primeira coisa que amanhece o dia eles querem pão e o leite: “Vó, eu quero pão, eu quero leite”.
Onde tem lenha, tem fome
Além dos alimentos que foram saindo do prato da família de Aliny e dona Angela, cozinhar o pouco que havia virou um desafio. Com o aumento do preço do botijão de gás, muitos moradores da ocupação foram obrigados a cozinhar com a lenha, em fogões improvisados.
“A maioria das pessoas aqui cozinha na lenha porque não tem condições de comprar um gás. Porque se você comprar um gás, vai ficar sem dinheiro para comprar arroz e feijão”, explica Aliny.
De acordo com a Agência Nacional de Petróleo de janeiro de 2020 a janeiro de 2022, o valor do botijão de gás de cozinha, que custava R$ 80 em média, superou os R$ 100. Em 2019, o IBGE registrou que 20% das famílias brasileiras cozinhavam com lenha ou carvão, cerca de três milhões a mais do que em 2016.
Pior cenário
Desde que foi criada a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), entre 2003 e 2004, jamais o país atingiu esse patamar de pessoas vivendo em algum dos três graus de insegurança.
Ao todo, são 125 milhões de brasileiros nessa condição, sendo 59 milhões em insegurança leve, 31 milhões em insegurança moderada e 33 milhões em insegurança grave (situação de fome). A legislação brasileira define segurança alimentar como acesso regular e permanente de alimentos de qualidade, direito garantido por lei.
Quando estávamos em Cajamar, resolvemos testar a Ebia, e ao final de cada conversa, pedimos que os entrevistados respondessem às oito perguntas do mesmo questionário utilizado pelos pesquisadores da Rede Penssan, responsáveis pelo recém-lançado inquérito Vigisan.
A ideia era entender as diferenças entre os três níveis de insegurança: leve, moderada e grave. Se a pessoa der uma a três respostas afirmativas, isso significa que a família está em um nível de insegurança alimentar leve. Entre quatro e cinco, a insegurança é moderada. E acima disso, é grave.
Na entrevista com a Aliny e Angela, elas responderam sim para todas as perguntas.