À frente do Ministério do Desenvolvimento Agrário de 2006 a 2009, Cassel falou ao Joio sobre agricultura familiar, rejeição do agro a Lula e o legado de Bolsonaro para o campo
São “engenheiros de obra pronta” alguns dos críticos à política de reforma agrária implementada durante os governos do PT, diz o ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, em entrevista exclusiva ao Joio.
À frente da pasta durante o segundo mandato do ex-presidente Lula, Cassel defendeu a atualidade da reforma agrária, relembrou o episódio da ocupação da fazenda da Cutrale pelo MST, em 2009, e classificou como “comportamento de classe” a rejeição de setores do Agronegócio à Lula.
“Eles tiveram crédito, tiveram seguro, tiveram política de garantia de preço, política de comercialização, tudo que é necessário para produzir. E produziram bem, se modernizaram muito”, diz Cassel. “Então, as razões devem ser de ordem eminentemente ideológicas”.
Guilherme Cassel é gaúcho de Santa Maria. Formado em engenharia civil pela UFSM, ele foi chefe de gabinete do governador Miguel Rossetto (PT), seu antecessor no MDA, e subchefe da Casa Civil do Governo do Rio Grande do Sul. Hoje é auditor fiscal aposentado e promove consultorias.
Confira a entrevista na íntegra.
Você escreveu recentemente um artigo defendendo a política de reforma agrária implementada durante os anos do PT e dizendo que existe um apagamento irresponsável feito pela esquerda em relação ao tema. Pode explicar melhor essa posição?
Sou formado em engenharia civil, e na engenharia civil tem uma figura muito popular, que é o engenheiro de obra pronta.
É aquele sujeito que passa em frente a uma obra que está acabada e ele não conhece nada sobre as limitações de terreno, não conhece nada das fundações, das limitações orçamentárias, dos materiais, mas diz que faria diferente.
Durante os oito anos dos governos Lula, 51 milhões de hectares foram destinados para a reforma agrária. A área destinada à soja, agora em 2021 e 2022, é da ordem de 39 milhões. Foram 746 mil famílias beneficiadas e 4 mil novos projetos de assentamento no país. É muita coisa.
Eu aceito sem nenhum problema a pessoa que me diz “olha, fizeram, mas queria que fizessem mais”. Nós podemos discutir porque é que não se fez mais, mas se fez e se fez muito.
O senhor segue defendendo a Reforma Agrária como uma medida atual?
Eu acho que a reforma agrária é mais do que atual. Ela continua sendo contemporânea, necessária e urgente.
O Brasil é um território. Esse território não vai crescer. Nós que moramos aqui, que habitamos o planeta, precisamos nos alimentar para viver. E o nosso alimento sai basicamente da terra.
E quem produz [alimento] é a agricultura familiar e campesina. São os assentados da reforma agrária, os agricultores familiares. [Produzem] mais de 70% de tudo aquilo que a gente come.
Os produtores de commodities, por conta da natureza do seu modelo, precisam cada vez mais ampliar suas terras, e ampliam em cima da agricultura familiar. É preciso criar freios para isto. Nós vamos ter que, mais cedo ou mais tarde, discutir limite do tamanho de propriedade no país. Vamos ter que fazer isto em nome da segurança alimentar e nutricional.
Você acredita que setores do agronegócio também têm uma visão injusta sobre o legado do PT para a agricultura?
Porque os grandes agricultores têm resistência ao Lula? Cabe a eles explicitar isso. Não são razões de natureza econômica, sem nenhuma dúvida.
Eles tiveram crédito, tiveram seguro, tiveram política de garantia de preço, política de comercialização, tudo que é necessário para produzir. E produziram bem, se modernizaram muito.
Então, as razões devem ser de ordem eminentemente ideológicas. O chamado comportamento de classe.
Na sua época como ministro, como era o diálogo com o Ministério da Agricultura?
Foi uma conversa sempre boa, produtiva. Eu passei por vários ministros da Agricultura: Reinhold Stephanes, Luis Carlos Guedes, Roberto Rodrigues. Havia tensionamentos? Às vezes, sim. A gente sentava e conversava.
A orientação do presidente Lula era essa. Encontrar pontos de acordo, evitar crises que fossem improdutivas, que tivessem consequência na produção.
Houve uma gestão produtiva, uma convivência produtiva dos dois modelos. A agricultura familiar cresceu muito. E o setor da agricultura empresarial também cresceu muito.
Em 2009, enquanto ministro do Desenvolvimento Agrário, o senhor deu declarações criticando a ocupação de uma fazenda da Cutrale pelo MST. Como o senhor enxerga esse episódio hoje?
Foi ruim para o movimento, para a reforma agrária. O caminho da reforma agrária é um caminho que é sempre conflituoso. Nesses conflitos, às vezes o movimento erra.
Às vezes o lado de lá também erra. Houve massacres. Eldorado dos Carajás, para dar um exemplo. O episódio da Cutrale não chega nem perto do que foi o Eldorado dos Carajás. Morreu gente ali. Ali se derrubou laranjeiras. Certo? Gente de um lado, laranjeira do outro.
Foi a atenção dada à reforma agrária e à agricultura familiar que indispôs setores do Agronegócio com o PT?
Acho que tem um comportamento de classe que atrapalha muito. Te dou um exemplo que eu vivi em 2006. Existe o Censo Agropecuário feito pelo IBGE. Até 2006, não existia a agricultura familiar no Censo, ela não aparecia. Existia “agricultura”.
E quando a gente propôs separar a agricultura familiar no Censo foi uma guerra. Porque interessava para os grandes manter a agricultura familiar na invisibilidade.
Existia um longo processo de propaganda cultural que dizia que assentados da reforma agrária e agricultores familiares eram um conjunto de pobres que só produziam para sua subsistência e que não tinham valor econômico nenhum.
A resistência não era do Ministro, mas da estrutura do Ministério da Agricultura e da Bancada Ruralista. E eu sei que o presidente da República sofreu pressão para não fazer, mas ele fez. O Ministério do Desenvolvimento Agrário teve que financiar técnicos para construir as derivadas do Censo.
Como o senhor enxerga o legado do governo Bolsonaro para a agricultura familiar e a reforma agrária?
Bom, legado para reforma agrária não tem nenhum. Porque não fizeram. Estão fazendo um crime agora que é titular a rodo todos os assentamentos do governo Lula, depois de um período de seis a oito anos onde os agricultores foram empobrecidos.
Então agora você dá título para que eles possam repassar a terra para os grandes. É um golpe, uma crueldade absoluta.