Representantes de movimentos, da academia e do legislativo se articulam para produzir sem agrotóxicos; prioridades são barrar o Pacote do Veneno (PL 6299/02), derrubar os incentivos fiscais e fortalecer políticas públicas de incentivo à produção agroecológica, principalmente a camponesa
Para o levantamento inédito que identificou quase 600 iniciativas de combate aos agrotóxicos em todos os estados para a série Brasil sem Veneno, o do De Olho nos Ruralistas ouviu representantes de movimentos e entidades, e do meio acadêmico e político. As pesquisas, experiências e histórias ouvidas apontam caminhos possíveis para a produção de alimentos saudáveis a partir do modelo agroecológico e camponês, em contraponto ao latifúndio da monocultura em que o cultivo só é possível com fertilização química para um solo exaurido e veneno para combater as pragas atraídas pelo excesso de oferta e ausência de predadores naturais.
“A agroecologia não é uma novidade”, explica Elisabeth Cardoso, do GT de mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). “A produção antes da ‘revolução verde’ era muito semelhante ao que se chama de agroecologia hoje, com o uso de técnicas ancestrais vindas dos quilombolas e indígenas”, diz Beth, como prefere ser chamada.
A partir das décadas de 60 e 70, os governos militares no Brasil passaram a incentivar o a expansão da agricultura a partir da a distribuição de latifúndios e avanço sobre o cerrado, com uso de tecnologias como sementes geneticamente modificadas, fertilização química do solo, utilização de agrotóxicos e mecanização no campo. O Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DENOCS) do governo federal desapropriou terras de camponeses para criar perímetros irrigados privilegiando empresas e a produção extensiva.
“Até os anos 40 nós produzíamos sem ‘pacote verde’, que de verde só tem o nome”, afirma Renato Roseno, deputado estadual pelo PSOL (CE), autor da primeira lei estadual aprovada contra a pulverização aérea de agrotóxicos no país. “Esse pacote tecnológico é insustentável, pois ele é hidro intensivo, tem alta contaminação e é muito caro”, completa.
Organizações tentam barrar PL do veneno
“A prioridade é barrar o Pacote do Veneno, que infelizmente parece estar próximo de ser aprovado, e avançar nas legislações de redução de uso de agrotóxicos”, fala Alan Tygel, da Campanha Permanente Contra Agrotóxicos e Pela Vida. “Estamos numa disputa de narrativas com o agronegócio, que tem muito poder e dinheiro e que consegue influenciar meios de comunicação e a política”.
Entre regulações emergentes necessárias está o banimento de agrotóxicos a base de neonicotinoides, já que estudos revelam que prejudicam a sobrevivência das abelhas em qualquer quantidade. “Não tendo abelhas, não há biodiversidade”, explica Roseno. “Já foram banidos na União Europeia e mais recentemente no Canadá”. Levantamentos apontam que 34% dos novos princípios ativos trazidos pelo governo Bolsonaro são banidos na união europeia”.
Em diversos estados a identificação entre pecuária, monocultura, agrotóxico e o governo é clara, como no Mato Grosso do Sul. “Quando eu pego a estrada vejo as paisagens destruídas e tudo é soja, ou milho”, conta Beatriz Branco, representante do movimento Slow Food no estado. “E emoldurados pela destruição estão os outdoors de apoio ao Bolsonaro”, ilustra. “A situação está muito ruim para quem defende saúde e ambiente em um país em guerra aberta contra a natureza”, diz Roseno.
Isenções fiscais encontram resistência política e jurídica
“Uma questão que está caindo de madura é a concessão de subsídios fiscais aos agrotóxicos”, afirma Neice Muller Faria, pesquisadora associada da Universidade Federal de Pelotas (RS). “É um absurdo que um país em crise econômica conceda benefícios para grandes indústrias”.
Para contestar esse incentivo, o PSOL moveu uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.553 no Supremo Tribunal Federal (STF). Os dispositivos tributários questionados concedem isenção parcial de ICMS e total de IPI à produção e à comercialização desses produtos. O observatório já tratou desse tema na matéria “Relatório contesta argumentos de que agrotóxicos mantêm produtividade”.
“São produto que podem matar”, avalia Beth Cardoso, da ANA. “O que deveria ter políticas para ser de uso restrito, recebe incentivos para venda”. Para Renato Roseno, é aético, injusto, inconstitucional haver isenção de IPI, PIS/Cofins e ICMS para agrotóxico. “O princípio da seletividade tributária é isentar o que se quer estimular, e a gente não deveria estimular veneno”. Para Roseno, o Brasil está exportando frutas e importando cânceres.
“A cada 1 dólar gasto com agrotóxicos, gasta-se 1,3 com intoxicações agudas”, ilustra Fernando Carneiro, pesquisador da Fiocruz e membro do GT de Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). “Capitaliza-se o lucro e socializa-se o prejuízo para saúde e ambiente”.
No momento, o julgamento se encontra suspenso desde novembro de 2020. O ministro Edson Fachin, relator da ação, votou favoravelmente à ADI. O voto seguinte seria de Gilmar Mendes, que pediu vistas.
O ministro é um interessado direto em relação ao tema, conforme relatado pelo De Olho na matéria “Gilmar Mendes é denunciado por abuso de agrotóxicos e plantio de transgênicos em nascentes do Rio Paraguai”.
O poder do agronegócio acaba se refletindo em outras facilidades financeiras. “O agronegócio se mantém porque a cada cinco anos vai para Brasília, faz um tratoraço e anistia-se todas as dívidas”, reflete Beth.
Povos do campo se articulam por mais políticas públicas
“O agronegócio tem todo o apoio do estado, recebe milhões em incentivos”, concorda Edivagno Rios, coordenador do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). “No semiárido costumamos dizer que o problema não são as secas, são as cercas que concentram a terra e a falta de políticas públicas”.
Para pressionar o poder público, resta aos movimentos organizar mobilizações como ocupação de ministérios, Anvisa, câmaras, congresso. “São ações em torno das políticas públicas, contra o pacote do veneno, pela agroecologia”, informa Jakeline Pivato, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e integrante da Campanha Permanente Contra Agrotóxicos e Pela Vida. “Nossa motivação é tirar os agricultores da dependência dos pacotes prontos, caros e muitas vezes inadequados às condições tropicais de produção”.
A sociedade civil busca se organizar para acumular força política e direcionar as ações para voltar ao rumo iniciado nos anos 90 e 2000, com a criação da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e de programas de compra de pequena produção. Entre eles o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e todo arcabouço criado pela Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO).
“Nossa proposta é a criação de um programa camponês a partir da criação de uma empresa brasileira de alimentos que possa garantir a sobrevivência de quem produz e de quem está com fome”, acrescenta Edivagno Rios, do MPA. “Outro desafio é o de distribuir para um mercado controlado pelo capital e as feiras e os mercados próprios são algumas das saídas”.
Para Beth, produzir a mesma quantidade de comida para alimentar o país, ou até mais do que se produz hoje, por meio da agroecologia, é possível. “Pode-se usar a mesma extensão de terra, o que não pode é ter um dono só”, afirma. “A agricultura camponesa produz para o mercado e para o autoconsumo. O camponês não vai ter só café. Vai ter feijão, mandioca, galinha, porco”. Diversas metodologias, como as dos Sistemas Agrícolas Integrados (SAT) do Rio Negro e do Vale do Ribeira comprovam que as pequenas propriedades diversificadas mantêm o equilíbrio daquela propriedade, comunidade e região.
Segundo Alan Tygel, a disputa por políticas públicas que viabilizem a produção sem veneno no orçamento federal continuará intensa. “Mesmo com a vitória de um governo progressista nossa luta continua árdua”, opina. “Porque sabemos que as alianças para a vitória contra o Bolsonaro incluem representantes do agronegócio”.
“Vai ser muito difícil a gente conseguir algo sem tirar o Bolsonaro do poder, ele é a peça-chave nessa engrenagem”, concorda Fernando Carneiro. “Sobre os erros do passado, podíamos ter aprovado o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), que está para ser votado”. Para Carneiro os governo PT tiveram essa oportunidade e não fizeram por pressão do agronegócio.