Crianças e jovens que vivem em regiões com maior produção agrícola são mais propensas a desenvolver câncer, revela estudo. Alerta sobre riscos ligados à exposição já havia sido feito pelo Instituto Nacional do Câncer
O câncer infantojuvenil tem aumentado no Brasil e hoje já representa a primeira causa de morte por doença entre crianças, adolescentes e jovens entre 1 e 19 anos, correspondendo a 8% do total de óbitos nessa faixa etária. O dado é do Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), ligado ao Ministério da Saúde.
Ao menos 12 estudos publicados nos últimos seis anos no Brasil buscam avaliar o efeito da exposição aos agrotóxicos nas células, como mostramos em uma das reportagens da série Brasil Sem Veneno. Os resultados indicaram que os agentes químicos podem provocar dano ao DNA e, por consequência, levar ao desenvolvimento de câncer. Um dos estudos revelou ainda que crianças e jovens que vivem em regiões com maior produção agrícola são mais propensas a desenvolver a doença.
Além do crescimento dos casos de câncer infantil, as malformações congênitas e imunodeficiências também têm aumentado, alerta a médica pediatra e pesquisadora Silvia Brandalise. Ela é fundadora do Centro Infantil Boldrini, em Campinas (SP), referência no combate ao câncer no Brasil.
De acordo com a especialista, tanto a exposição ambiental, como a inalação de agentes químicos, o consumo de alimentos ou água contaminados, a dedetização da casa ou o uso de produtos na pele que contenham derivados de benzeno ou glifosato, por exemplo, são lesivos a toda célula viva. As substâncias, segundo Brandalise, têm capacidade de agredir o DNA do material genético, o que pode alterar a proliferação ou a multiplicação da célula. A leucemia em crianças de até dois anos, por exemplo, pode ocorrer pela exposição materna ou paterna no ambiente de trabalho.
“Outra coisa que se vê é um aumento dos danos neurológicos, inclusive de autismo, que [as pesquisas] associam tanto a metais pesados contaminantes de alimento e água, como a presença de glifosato [um dos ingredientes usados em agrotóxicos], que possa estar neste material. São doenças crônicas que se expressam na criança e que, essas que eu mencionei, aparecem numa linha discretamente ascendente através das décadas, há publicações sobre isso em vários estudos internacionais”.
Fatores externos
O aparecimento ou não da doença, no entanto, depende de outros fatores externos e também genéticos, incluindo a capacidade do indivíduo em reparar esses danos. Todas essas variáveis são levadas em conta nos estudos. Pesquisas publicadas em anos anteriores e estudos internacionais já fizeram associação da exposição aos agrotóxicos ao desenvolvimento de câncer por meio de estudos epidemiológicos.
Um dos estudos mais recentes, chamado “Câncer infantojuvenil: nas regiões mais produtoras e que mais usam agrotóxicos, maior é a morbidade e mortalidade no Mato Grosso”, foi publicado no ano passado, no livro Desastres Sócio-Sanitário-Ambientais do Agronegócio e Resistências Agroecológicas no Brasil, por pesquisadores do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador e do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Mato Grosso (Neast/ISC/UFMT).
Como o próprio título revela, o estudo epidemiológico, do tipo ecológico, investiga a distribuição dos casos de câncer infantojuvenil (0 a 19 anos) pelo estado de Mato Grosso e a associação com o uso de agrotóxicos no território. O estudo cruza dados públicos, como internações e mortes por câncer infantojuvenil, do Sistema de Internações Hospitalares do Datasus e do Sistema de Informação sobre Mortalidade, com informações coletadas por macrorregião de economia agropecuária (IMEA) e sobre a área plantada, extraídas da Produção Agrícola Municipal do IBGE/Sidra. Os números são de 2008 a 2017.
Ao longo dos oito anos analisados, Mato Grosso registrou mais de 10,9 mil internações por câncer infantojuvenil, sendo que 30% são crianças de 0 a 4 anos. Além disso, 406 pessoas de 0 a 19 anos morreram por câncer, dos quais 30,7% foram adolescentes e jovens de 15 a 19 anos. As leucemias foram os tipos de câncer mais presentes entre os pacientes internados, correspondendo a 50,2% dos casos. A leucemia linfóide (quando surge um linfócito imaturo e danificado na medula óssea) causou 37,2% das mortes.
O estudo observou correlação positiva entre o uso médio de agrotóxicos em litros e a média de mortes e internações por câncer infantojuvenil. É importante deixar claro que a análise leva em conta os 138 municípios onde há produção agrícola. Cuiabá, Rondonópolis e Várzea Grande, por serem polos industriais, comerciais e conglomerados urbanos, foram excluídos da análise.
De acordo com o especialista em saúde pública e pesquisador que participou da elaboração do estudo, Wanderlei Pignati, os resultados dessa e de outras pesquisas evidenciam o aumento de casos de câncer infantojuvenil no Brasil, principalmente a leucemia – câncer relacionado à produção de glóbulos brancos, de defesa do organismo, que se reproduzem muito rapidamente no nosso corpo. E um dos fatores para o desenvolvimento dessa doença, na avaliação dele, é o agrotóxico.
“Tem agrotóxicos que inibem a produção de hormônio e vários deles [provocam] mutação genética, que altera o DNA. E isso vai [resultar] na produção de células com malformação. Uma parte [das malformações] é rapidamente descartada pelo fígado, mas a outra vai se reproduzir muito, porque tem agrotóxicos que também baixam a imunidade. Então, somam-se vários fatores: mutação, desequilíbrio hormonal, baixa imunidade. Você tem as células cancerígenas se reproduzindo e não tem um sistema de imunidade para ir lá retirar aquela célula com malformação”, explicou Pignati.
Segundo a pesquisa da UFMT, mais de 1 trilhão de litros de agrotóxicos foram aplicados em 117 milhões de hectares de área plantada, entre 2008 e 2017, em Mato Grosso. Um fato curioso apontado na análise é que o número de casos de internação e mortes acompanha a migração das áreas destinadas às culturas agrícolas. Em 2008, quando as extensões de terras plantadas encontravam-se em maior parte nas regiões Oeste, Médio-norte e Sudeste do estado, os casos de internações e mortes também concentravam-se nessas regiões. Já em 2017, o maior uso de agrotóxicos e número de casos ocorreu na região Nordeste do estado, que até então não havia registrado casos de câncer infantojuvenil. O que ocorreu, segundo os pesquisadores, é que houve migração da atividade do agronegócio para essa região, num processo de expansão da fronteira agrícola em direção ao Tocantins.
Desafios da pesquisa científica
A sanitarista Mariana Soares, autora principal dessa pesquisa, acredita que é possível avaliar a influência do território no processo de adoecimento dos indivíduos por conta das exposições ambientais, ocupacionais e fatores genéticos e hereditários. Ainda assim, ela ressalta, esse tipo de estudo tem limitações, devido à subnotificação dos registros públicos e à impossibilidade de estabelecer uma relação direta de causa e efeito.
“O que a gente tem divulgado no âmbito do Neast/UFMT, são estudos epidemiológicos de cunho ecológico. Nesse caso, a gente encontrou a associação de que nos municípios onde têm maior produção agrícola é onde ocorreu maior aumento de casos de câncer infantojuvenil”, explicou. “O estudo de cunho ecológico, no entanto, não permite uma avaliação individual. Por isso, a gente vem avançando nas nossas pesquisas. Inclusive, a minha tese de doutorado é avaliar a exposição dos pais e a exposição individual da criança ou do adolescente e o adoecimento por câncer”, completou.
A médica e pesquisadora Silvia Brandalise explica que a associação do câncer com a exposição aos agrotóxicos só é possível de ser feita por meios estatísticos, como ocorreu com a pesquisa da UFMT, uma vez que não é possível colocar humanos em laboratórios para fazer testes. Além disso, vários outros fatores podem influenciar o desenvolvimento da doença, como os hábitos alimentares e o consumo de cigarro, álcool e outras drogas.
“Não existe um teste que você possa fazer para mostrar essa associação. A associação é epidemiológica, porque o indivíduo não vive sozinho exposto àquele produto, ele está exposto a uma série de outros produtos. Então, a única evidência é através de estudos epidemiológicos, nos quais você pega uma pessoa doente para dois ou quatro controles [não doentes], variados por sexo, idade e ano, na mesma região [e faz a comparação]”, completa Brandalise.
Outro estudo, desenvolvido na Costa Rica e publicado na Revista Científica National Library of Medicine, sugeriu que a exposição precoce a pesticidas dentro de casa, antes e depois da gestação, pode estar associada à leucemia infantil. Os pesquisadores costa-riquenhos também identificaram risco aumentado para as gestantes que moram perto de fazendas.
Um estudo ainda mais ousado, que começou em 2005 e está em andamento, propõe acompanhar os filhos de 1 milhão de gestantes ao longo de 18 anos para examinar as associações entre exposições ambientais e a incidência de câncer infantil. A pesquisa colaborativa, chamada International Childhood Cancer Cohort Consortium (Consórcio Internacional de Coorte de Câncer Infantil, na tradução livre), envolve equipes de pesquisa de 15 países em quatro continentes, inclusive a equipe da médica e pesquisadora Silvia Brandalise, em Campinas.
Sem dar entrevistas, INCA se posiciona contra os agrotóxicos
A reportagem de O Joio e O Trigo procurou o Instituto Nacional do Câncer para comentar a associação entre exposição aos agrotóxicos e incidência de câncer, especialmente em crianças, uma vez que o órgão já abordou essa questão em suas publicações, mas não conseguimos nenhuma entrevista. A primeira tentativa ocorreu em março e a segunda, em junho. A justificativa na primeira vez foi falta de tempo. Na segunda, a pessoa responsável nos disse que não poderia dar entrevista em decorrência do período eleitoral. Alguns documentos também foram retirados do ar por conta das eleições. A mensagem deixada no site é a seguinte: “até o encerramento das eleições, diversos materiais do Instituto, como livros, folhetos e cartilhas ficarão indisponíveis”.
De qualquer forma, a assessoria de imprensa compartilhou alguns desses documentos que ainda estão públicos, entre eles o posicionamento do INCA em relação aos agrotóxicos. Na carta de cinco páginas, publicada em 2020, o INCA demarca a sua posição contrária às práticas de uso de agrotóxicos e ressalta os riscos à saúde. O órgão critica o atual modelo de cultivo, com intensa aplicação de agrotóxicos, e a liberação de sementes transgênicas. De acordo com a carta, essa liberação teria sido responsável por colocar o país “no primeiro lugar do ranking de consumo de agrotóxicos”, já que o cultivo das sementes geneticamente modificadas permite o uso de grandes quantidades desses venenos.
A instituição menciona as intoxicações agudas, que geralmente ocorrem pela exposição ocupacional, e causam irritação da pele e dos olhos, coceira, vômitos e diarréias. E também aborda as intoxicações crônicas, que ocorrem pela presença de resíduos de agrotóxicos nos alimentos e no meio ambiente. Mesmo que as doses de agrotóxicos sejam baixas, o INCA afirma que os efeitos podem aparecer muito tempo após a exposição, o que dificulta a correlação com o agente. “Dentre os efeitos associados à exposição crônica a ingredientes ativos de agrotóxicos podem ser citados infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e câncer”, afirma o documento.
Na carta, o INCA faz ainda um alerta sobre os resultados do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos (PARA), da Anvisa, que revelaram amostras de alimentos com resíduos de agrotóxicos em quantidades acima do permitido e com presença de substâncias não autorizadas.
Em 2019, o instituto publicou uma nota se posicionando contrária ao Projeto de Lei 6.299/2002, mais conhecido como o “Pacote do Veneno”, que propõe flexibilizar a autorização e o registro de agrotóxicos no país.
Defesa da agroecologia
O INCA não só criticou o uso de agrotóxicos como defendeu a substituição do modelo de agronegócio pela produção agroecológica, prevista na Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. Segundo a instituição, a agroecologia otimiza a integração entre capacidade produtiva e conservação da biodiversidade, além de funcionar como uma alternativa aos agrotóxicos.
O engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo explica que o modelo atual de produção em larga escala não é possível sem o uso de veneno. É inviável para o produtor identificar uma praga que surgiu em um cantinho de uma plantação cuja área equivale a milhares de campos de futebol. O veneno, portanto, é aplicado preventivamente sobre toda a lavoura. “Ele aplica o veneno por via das dúvidas, porque ele não pode permitir que a infestação se transforme em um dano econômico relevante”. Só que, ao aplicar o veneno, muitas vezes por pulverização aérea, ele contamina não só os alimentos, mas a água, o solo, os mananciais e até a produção orgânica do vizinho.
Para implementar um sistema agroecológico, segundo Melgarejo, seria necessário estabelecer um tamanho máximo da propriedade, condicionado à capacidade de gerenciamento dos trabalhadores, o que, afirma ele, levaria a uma reforma agrária.
“O que nós consumimos de um pé de café, por exemplo, corresponde a 0,2%. Todo o resto é lixo para o agronegócio do café. Na lavoura de arroz, aquelas montanhas de palha viram lixo, é coisa para ser queimada. Para o pequeno produtor, tudo o que a natureza produz é matéria orgânica e insumo para controlar a velocidade de escorrimento da água e o teor de matéria orgânica no solo. Tem que ser reincorporado. E a agroecologia tem diversas maneiras de trabalhar isso”, completa.
A Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, citada na carta do INCA, foi instituída em 2012, durante o governo de Dilma Rousseff, com o apoio de organizações da sociedade civil, para estimular a oferta de alimentos saudáveis e o uso sustentável dos recursos naturais. A Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo), criada para articular essas políticas, foi extinta no governo de Jair Bolsonaro. No Painel do Orçamento Federal, é possível encontrar ao menos 14 políticas públicas relacionadas à agroecologia, produção orgânica ou agrobiodiversidade. Apenas uma delas ainda persiste. Mesmo quando em vigor, no entanto, as demais políticas encontradas no painel não contavam com orçamentos expressivos.
Procurado, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) afirmou que instituiu por meio de portaria, em 2 de dezembro de 2021, o Grupo de Trabalho do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) e novas instâncias de gestão para voltar a avançar no tema. “Neste momento, os documentos produzidos no GT estão em análise para posterior publicação”, informou via assessoria de imprensa. Sobre as políticas públicas, o Mapa alega que há três programas, sendo que um deles conta com quatro ações orçamentárias distintas, voltados para a Política de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo). São eles: Defesa Agropecuária, Agropecuária Sustentável e Pesquisa e Inovação Agropecuária.