Recomendada pelo ONU e frequentemente ignorada por autoridades, agricultura urbana floresce pelo Brasil, ajudando a garantir alimento no prato e dinheiro no bolso
Com andar manso, mas firme, Dionísio Garcia guia a reportagem entre os canteiros da Horta Comunitária Vila Pinho, que fica no bairro do Barreiro, localizado na periferia de Belo Horizonte (MG). A organização perfeita dos pés de alface, coentro e rúcula, todos plantados sem uso de agrotóxicos, contrasta com o restante da região.
Casas disformes, com tijolos aparentes e ligações clandestinas de esgoto cercam a horta de 10 mil metros quadrados, onde trabalham treze famílias. Dionísio explica que a água para irrigação vem de um poço artesiano furado com recursos do Banco do Brasil – não há relação com o rio poluído que passa à margem do terreno.
“A água vem do poço artesiano e enche aqui”, explica o agricultor de 57 anos, apontando para duas caixas d’água de 15 mil litros. “Daí ela parte para regar a horta duas vezes por dia.”
Nascido em família de lavradores, Garcia é natural de Rio Vermelho (MG), de onde partiu aos 19 anos. “Lá no interior a gente plantava feijão, arroz, milho”, conta. “Colhia uma safra por ano. Você plantava, Deus cuidava, mais nada. Nem irrigação tinha.”
Garcia trabalha na horta Vila Pinho desde 2013, e hoje diz plantar quase cem espécies de cultivos diferentes, a depender da estação – entre leguminosas, folhas e frutíferas – que ele comercializa em três feiras agroecológicas de Belo Horizonte e duas escolas na região do Barreiro.
A horta, diz, não é sua única fonte de sustento. Vem complementada pela aposentadoria da esposa. Os outros integrantes do projeto, na sua maioria idosos, também complementam a aposentadoria ou o benefício de prestação continuada (BPC) com a renda obtida na lavoura.
De acordo com a Organização das Nações Unidas, a ONU, 80% da população mundial residirá em áreas urbanas até o meio do século (no Brasil esse percentual já é de 85%, segundo o IBGE) e, hoje, quatro quintos da comida produzida globalmente é consumida dentro das áreas urbanas.
Um cenário desse tipo impõe a tarefa de fortalecer a produção e a oferta de alimentos, tornando-as menos vulneráveis às quebras causadas pelas mudanças climáticas e a grandes emergências como a pandemia da Covid, que desestruturou cadeias alimentícias no mundo todo.
A agricultura urbana tem sido apontada como parte da solução para esses problemas – inclusive pela ONU, no âmbito dos objetivos para o Desenvolvimento Sustentável – uma vez que aumenta a oferta disponível de alimentos e aproxima o alimento da população, diminuindo custos com transporte, armazenagem e conservação.
Também tem o potencial de gerar emprego e renda, alimentando com mais qualidade uma população cada vez mais habituada a comer produtos ultraprocessados e contaminados com agrotóxicos.
Heloísa Costa é professora do curso de geografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordena o grupo de pesquisa Auê!, especializado em agricultura urbana.
Em uma conversa realizada por videochamada com o Joio no mês de julho, ela explicou que a agricultura urbana é uma prática antiga, utilizada ao longo da história como forma de driblar a escassez de alimentos.
“Na História ocidental, ela foi muito importante em momentos de guerra, de fome, momentos em que a população se voltava para resolver suas questões de sobrevivência por si mesma”, diz Costa. “Na Alemanha da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, alguns lotes de terra dentro das cidades eram destinados exclusivamente à produção de alimentos, de forma a garantir a segurança alimentar da população.”
“E agora a agricultura urbana retorna como alternativa de melhora das condições alimentares das populações em geral e das populações mais carentes, nas quais a insegurança alimentar é mais visível”, continua a professora.
Recentemente o Grupo Auê mapeou cerca de mil iniciativas de agricultura urbana apenas em Belo Horizonte. “Encontramos hortas em creches, hospitais, asilos, penitenciárias, lajes e assentamentos da reforma agrária”, conta Heloísa. “É incrível a criatividade das pessoas para plantar.”
Para a professora, a expansão da agricultura urbana nas cidades esbarra na concorrência com outros interesses econômicos e sociais, como a expansão de projetos de infraestrutura e habitação.
“Um dos grandes empecilhos é o acesso à terra”, argumenta Costa. “É preciso identificar espaços nas cidades e no entorno das cidades que sejam acessíveis ao plantio, mas isso bate de frente com outras demandas, sejam imobiliárias ou de infraestrutura, que são muito mais lucrativas.”
Para a professora, também deve haver mais apoio do poder público à agricultura urbana – por exemplo, através de compras públicas, concessão de terrenos e isenção de imposto territorial para as hortas.
As Mulheres do Gau
Um exemplo de ação efetiva do poder público para viabilização da produção de alimentos ocorreu no extremo leste da cidade de São Paulo, no bairro de São Miguel Paulista.
Ali nasceu, em 2005, a horta Mulheres do Gau, fundada apenas por mulheres em um terreno cedido pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo, a CDHU.
Quando chegamos na horta, em uma tarde nublada de agosto, fomos recebidos pela sorridente Léia Pereira da Silva, de 43 anos.
“As pessoas chegam aqui, é como se fosse uma terapia”, conta ela. “A gente entende que isso aqui não é só lugar para ganhar dinheiro. É um lugar que a gente está contribuindo para o meio ambiente, para que a natureza flua melhor no lugar que a gente vive.”
E, realmente, a natureza parece fluir melhor. Mulheres do Gau parece mais um jardim botânico do que uma horta, com grandes árvores frutíferas fazendo sombra sobre o terreno e servindo de abrigo para passarinhos.
É sob o canto deles que Léia nos mostra os pés de escarola, espinafre, salsa e cebolinha cultivados de forma orgânica, sem uso de agrotóxicos.
Ela explica que o trabalho das meninas do Gau é dividido em dois. De um lado existe a horta, onde são produzidas frutas, ervas medicinais, plantas não convencionais (PANCs) e folhas de todos os tipos.
Parte dessa produção é destinada ao Centro de Recuperação e Educação Nutricional, o Cren, uma ONG que trata gratuitamente crianças com baixa estatura, desnutrição e excesso de peso, enquanto outra parte é vendida a particulares.
De outro lado, há uma cozinha comunitária, que usa ingredientes produzidos ali mesmo para oferecer refeições e coffee breaks em eventos de toda a cidade de São Paulo. A renda auferida é dividida igualmente entre as mulheres que participam de cada uma das frentes de trabalho.
Léia explica que, apesar da cessão do terreno feita pelo governo do estado, hoje elas caminham praticamente sem apoio do poder público. “A gente está num momento bem difícil. Não estamos recebendo nenhum recurso de prefeitura”, conta. “A gente sobrevive dos editais de ONGs que nos ajudam.”
Até 2020, a Prefeitura de São Paulo ainda pagava um auxílio no âmbito do Programa Operação Trabalho, dentro da rubrica “Hortas e Viveiros Urbanos”, mas essa categoria foi encerrada no início da pandemia, justamente no momento de maior necessidade.
O Pacto de Milão para Agricultura Urbana, do qual São Paulo e Belo Horizonte são signatárias, estipula que o poder público deve reconhecer que a agricultura urbana, “especialmente as mulheres produtoras em muitos países”, desempenha um papel essencial na alimentação das cidades.
Para tanto, diz o documento, governos municipais devem “apoiar os circuitos curtos agroalimentares, organizações de produtores, redes e plataformas que aproximem o produtor do consumidor e outros sistemas de mercado que integrem as infraestruturas económicas e sociais do sistema alimentar urbano” – ou seja, o poder público deve ser um promotor ativo da agricultura urbana, reconhecendo seu papel na promoção da alimentação saudável e na geração de emprego e renda.
Em 2020, o Instituto Escolhas realizou uma simulação que indicou que a agricultura na região metropolitana de São Paulo tem o potencial de fornecer alimentos para 20 milhões de pessoas por ano e gerar 180 mil empregos, isso tudo sem utilizar áreas de mata nativa ou destinadas à conservação ambiental.
Alguns dados mostram que, mesmo sem apoio firme do poder público, a agricultura urbana tem crescido na capital paulista.
De acordo com o Levantamento Censitário das Unidades de Produção Agropecuária, realizado pela Secretaria da Agricultura e Abastecimento do Governo do Estado, a área agrícola cultivada dentro dos limites do município de São Paulo cresceu de 3 mil para 4,3 mil hectares entre 2006 e 2017.
Ao mesmo tempo, dados do Censo Agropecuário do IBGE levantados pelo Grupo de Estudos em Agricultura Urbana do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) indicam que o número de estabelecimentos agropecuários aumentou de 193 para 550 no município no mesmo período.
Uma solução para o lixo
O caso da Revolução dos Baldinhos, na capital catarinense Florianópolis, mostra como o ecossistema da agricultura urbana pode oferecer soluções também para outros problemas, como o acúmulo de lixo nas periferias urbanas.
A iniciativa, que foi criada em 2008, surgiu após uma infestação de ratos matar dois moradores do Complexo de Monte Cristo, um conjunto de comunidades carentes que reúne cerca de 35 mil pessoas na capital catarinense.
Cíntia Cruz, que é coordenadora do projeto, explica que o problema era o acúmulo de resíduos sólidos, um chamariz perfeito para os ratos viverem e se reproduzirem.
“A gente viu que não adiantava jogar veneno, precisava tirar o alimento do rato”, explicou ela em conversa com a reportagem no mês de julho. “Então começamos a distribuir baldes para os moradores da comunidade, e instalamos pontos de coleta na comunidade.”
Com o lixo entregue pelos moradores, os integrantes do projeto montaram um centro de compostagem (produção de adubo a partir da degradação natural de resíduos orgânicos) que hoje emprega oito pessoas e processa até duas toneladas de resíduos por dia.
O composto resultante do processo é distribuído para hortas urbanas e para os próprios moradores da comunidade. No total, calcula Cíntia, cerca de 2,5 mil pessoas interagem com o projeto atualmente.