Avanço dos alimentos ultraprocessados desacelera no Brasil

Pesquisa do IBGE sobre orçamentos familiares também traz más notícias; o consumo de feijão no país diminui em 50% e o de arroz, em 37%

Um desdobramento da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, do IBGE, trouxe boas e más notícias. Os dados divulgados nesta sexta-feira (3) pelo instituto mostram que o aumento na disponibilidade de comida-porcaria foi mais lento ao longo da última década. Ultraprocessados respondem agora por 18,4% das calorias disponíveis na alimentação do brasileiro.

Por outro lado, a presença geral de arroz e feijão caiu de maneira acentuada ao longo das duas primeiras décadas do século 21. Entre a edição de 2002-03 e a de 2017-18, a quantidade média anual per capita de feijão foi de 12,394 quilos para 5,908 quilos, ou seja, caiu a menos da metade. No caso do arroz, o recuo é de 37%, de 31,578 quilos para 19,763 quilos.

De maneira geral, a pesquisa mostra que o padrão alimentar do brasileiro se mantém entre as classes de renda mais baixa e nas regiões Norte e Nordeste. Nesses casos, o consumo de alimentos in natura ou minimamente processados segue a ser predominante.

É importante destacar que a pesquisa aborda a disponibilidade calórica, ou seja, não necessariamente reflete o que é efetivamente consumido.

O arroz com feijão segue a refletir o prato das classes de menor renda, mas consumo per capita teve queda acentuada nesse século (Foto: Giu Levy. Arquivo Nupens USP)

Ultraprocessados

O consumo de ultraprocessados segue avançando no país, mas a um ritmo mais lento. Na edição de 2002/2003, representavam 12,6% das calorias. Chegaram a 16% em 2008/2009, e agora ficaram em 18,4%.

Esse dado é particularmente importante porque um conjunto crescente de evidências científicas aponta que um maior consumo de ultraprocessados expõe a um risco aumentado de desenvolver doenças crônicas, como diabetes, hipertensão e câncer. Entre outros problemas, doenças crônicas são um claro agravante de quadros de coronavírus.

Entre os ultraprocessados, destacam-se o consumo de frios e embutidos (2,5% das calorias), biscoitos e doces (2,1%), biscoitos salgados (1,8%), margarina (1,8%), bolos e tortas doces (1,5%), pães (1,3%), doces em geral (1,3%), bebidas adoçadas carbonatadas (1,2%) e o chocolate (1%).

Na outra ponta, alimentos in natura ou minimamente processados representavam 53,3% das calorias totais na POF 2002/2003, caindo para 50,4% em 2008/2009 e para 49,5% agora. Outros 22,3% vêm de ingredientes culinários processados (açúcar, óleos, féculas) e 9,8% de alimentos processados (extrato de tomate, carnes salgadas, pães, bebidas alcoólicas fermentadas).

No grupo dos alimentos processados, a maior disponibilidade calórica diz respeito ao pão (6,7%), seguido por queijos (1,4%), carnes salgadas/secas/defumadas (0,7%) e bebidas alcoólicas fermentadas (0,7%).

Uma das hipóteses aventadas pelo IBGE para explicar o ritmo menor de avanço dos ultraprocessados é o Guia Alimentar para a População Brasileira. O documento define as diretrizes oficiais do Ministério da Saúde para uma alimentação saudável, recomendando explicitamente que se evite o consumo de biscoitos, refrigerantes, cereais açucarados, achocolatados, macarrão instantâneo e companhia. O material serve como base para a atuação de equipes de atendimento básico no Sistema Único de Saúde (SUS).

“Isso é visto no meio urbano e rural e em todas as regiões e estratos de renda, e pode ser o resultado de políticas públicas implementadas no período mais recente, com destaque para ações baseadas no Guia, que recomenda incluir alimentos in natura ou minimamente processados em suas preparações culinárias e evitar alimentos ultraprocessados”, diz José Mauro de Freitas, analista do IBGE.

Desigualdades

Embora alimentos ultraprocessados estejam cada vez mais baratos, a ponto de, na média, estarem próximos do preço dos alimentos in natura, ainda há produtos caros que são proibitivos para boa parte da população. A POF abarca o momento no qual o desemprego e a perda de renda começaram a avançar de maneira mais rápida por decorrência da agenda neoliberal dos governos, com o corte de direitos trabalhistas. É possível que isso tenha influenciado no consumo de comida-porcaria.

Essa é uma rara situação na qual a desigualdade pode ter um efeito benéfico para as classes mais baixas. Dividindo a população em cinco quintos, de acordo com a renda, os 20% mais pobres têm um consumo de 12,5% de calorias a partir de ultraprocessados. Entre os mais ricos, chega-se ao dobro, 24,7%. Esse padrão já era visível na versão anterior da POF. Em relação a alimentos in natura, a situação é a oposta: 55,6% contra 44,2%.

Há, ainda, uma clara diferença regional. Sul (22%) e Sudeste (21,6%) têm as maiores fatias de consumo de ultraprocessados, frente a 16,6% do Centro-Oeste, 14,4% do Nordeste e 11,4% do Norte.

No Norte e no Nordeste, alimentos in natura seguem a ser o principal componente da dieta, com 58,2% e 54,5%, respectivamente. Farinha de mandioca, peixes, farinha de milho, feijão e fubá são os destaques nas duas regiões.

Por renda, os 40% mais pobres seguem a ser os maiores consumidores de pescados; cereais e leguminosas; farinhas, féculas e massas. São os únicos três grupos alimentares nos quais os mais pobres têm um consumo per capita mais elevado.

No caso dos peixes, há uma diferença regional claríssima. No Norte, o consumo per capita é de 9,855 quilos ao ano, contra 4 quilos no Nordeste e menos de 1,5 quilo nas demais regiões. O mesmo vale para a farinha de mandioca, com 9,1 quilos no Norte, 3 quilos no Nordeste e menos de meio quilo nas outras regiões.

Arroz e feijão vão embora

Como esperado, o consumo de arroz e feijão continua a cair. O feijão recuou 50% nesse século, enquanto o arroz caiu 37%. Mas, de novo, há uma diferença clara em termos de renda. O quinto mais pobre da população retira 21,1% da energia do consumo de arroz e 5,4% do feijão. Entre os mais ricos, os índices caem quase pela metade: 10,9% e 3,4%, respectivamente.

Para o analista da pesquisa, José Mauro de Freitas, a queda na aquisição desses dois produtos é bastante significativa e pode ter múltiplas causas, como o aumento da importância da alimentação fora de casa e as mudanças de hábitos alimentares. “Questões econômicas como a variação de preços e da renda também são importantes e devem ser consideradas”, ele diz.

No começo do século já havia uma diferença clara de consumo entre pobres e ricos no que diz respeito ao arroz com feijão. Mas, entre os três estratos de menor renda, praticamente não houve variação entre 2002-03 e 2017-18. Entre os 40% mais ricos, há uma tendência de queda.

Essas duas primeiras décadas também consolidam o frango como a carne das classes baixas. O grupo “Carne de aves” passa de 3,3% para 5,6% da disponibilidade calórica do estrato mais pobre, e vai de 3,8% para 5,1% no estrato seguinte. Não há variação, nesse sentido, entre os mais ricos, que apresentam uma variação ligeira no consumo de carne bovina (3,4% para 6,9%).

Quem mais avançou no período foram os ovos (94%), os alimentos preparados e misturas industriais (56%) e as bebidas alcoólicas (19%). No caso dos ovos, a interpretação é de que houve uma mudança na maneira como o alimento é visto pela população.

“Se isso era científico ou não é uma outra discussão. O fato é que, de lá para cá, o ovo, pelo menos publicamente, deixou de ser um alimento a ser evitado. Por uma outra perspectiva, os ovos são uma fonte comum de substituição de proteína animal quando os preços das carnes aumentam. Se é uma substituição econômica ou mudança de hábitos alimentares é difícil dizer. O que a pesquisa mostra, e esses são os dados, é que a aquisição de ovos aumentou significativamente”, afirma o pesquisador.

Por João Peres

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