Altamente viciante e nociva para saúde, substância é reembalada e vendida como salvação: de vacinas para Covid-19, remédios contra Parkinson e Alzheimer e até aliada contra dependência do cigarro
É fim de 2020, auge da pandemia de Covid-19. A corrida por vacinas está a todo o vapor, e notícias sobre as diversas tentativas para encontrar um imunizante eficaz não param de chegar. Uma, no entanto, chama atenção: envolve a nicotina.
As empresas canadenses Zyus Life Sciences e Medicago anunciam que vão explorar o uso da Nicotinia benthamiana, o tabaco selvagem, na produção de uma vacina. A Medicago tem laços diretos com a indústria do fumo: a Philip Morris International é dona de 23% das ações da companhia.
Um pouco antes, no mesmo 2020, é lançado o documentário “You Don’t Know Nicotine” – que, como o nome sugere, promete revelar a “verdade” por trás da substância. A nicotina, segundo o filme, poderia ser matéria-prima de tratamentos para um grande número de doenças – e, ao invés de causar morte e debilidade, poderia salvar milhões, quiçá bilhões, de vidas em todo o mundo.
O filme é dirigido por Aaron Biebert que, por sua vez, também tem laços com a indústria do fumo: sua produtora, a Attention Era, presta serviços para a Fundação Futuro Sem Fumaça – um think tank criado em 2018 para promover dispositivos eletrônicos de fumar. A Philip Morris é o pilar financeiro da fundação, contribuindo com 80 milhões de dólares nos primeiros anos e se comprometendo a direcionar outras dezenas de milhões até 2029.
Na mesma linha do documentário, pesquisadores passaram a investigar os potenciais benefícios que a nicotina poderia trazer à saúde – muitas vezes, com o apoio financeiro da indústria. Assim, tem se estudado o uso da substância para combater as mais variadas doenças, como Mal de Alzheimer, Mal de Parkinson e esquizofrenia. E há também uma série de defensores do uso da nicotina em tratamentos contra o vício no tabaco, ainda que pesquisas mostrem que as taxas de sucesso dessas terapias sejam relativamente baixas.
Por fim, a indústria do fumo tem outra grande aposta para recauchutar a nicotina: os cigarros eletrônicos. Vendidos como uma alternativa mais saudável, que ajudaria no controle do tabagismo, os dispositivos eletrônicos de fumar costumam ter níveis mais altos de nicotina do que os cigarros comuns e, por isso, podem ser ainda mais viciantes. Nos Estados Unidos, esses dispositivos têm conquistado novos fumantes, principalmente jovens, para quem o cigarro tradicional saiu de moda – mas o vape é cool.
Vacina, tratamento para doenças graves e até um novo produto para jovens: a tentativa de reabilitação da nicotina pela indústria do fumo parece estar a todo vapor. Mas será que essa substância pode ser benéfica para a saúde? Há base científica para isso? Será que ela pode, por meio dos cigarros eletrônicos e terapias, ser a chave para a redução de danos do tabagismo? Afinal, o que sabemos sobre essa substância?
Vamos começar com um pouco de história. O tabaco já vinha sendo utilizado há milênios nas Américas quando o diplomata francês Jean Nicot enviou sementes da planta para Catarina de Médici em 1560. Seu objetivo era mostrar à rainha da França as propriedades medicinais do tabaco. Catarina aprendeu a usar a planta em forma de rapé para curar dores de cabeça. A partir dali o sucesso da erva entre a corte francesa foi tamanho que, poucas décadas depois, o botânico francês Jacques Deléchamps batizou a planta em homenagem ao compatriota.
A Nicotiana tabacum é a espécie de tabaco mais utilizada na produção de cigarros mundo afora. Ela faz parte da família das Solanáceas, junto com a batata, o tomate e o pimentão – alimentos que também contêm nicotina, embora em concentração bastante menor. O tabaco é a espécie com a maior quantidade da substância no grupo. Sua função é atuar como defesa contra animais que desejam se alimentar da planta, principalmente insetos, por ser uma neurotoxina. Ela tem sido usada há séculos em lavouras como inseticida – a nicotina altera o sistema nervoso desses animais, deixando-os tão excitados que não conseguem comer e morrem.
Conhecida como “erva santa” no século 16, o tabaco era usado como panaceia para males que iam de lombrigas e dores de estômago a feridas venenosas, passando por dores de dente, das articulações e para matar piolhos. O que Nicot provavelmente não imaginava é que a planta seria matéria-prima de um produto que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mata mais de oito milhões de pessoas todos os anos – é mais do que o número oficial de mortes por Covid-19 registradas durante toda a pandemia, cerca de 6,6 milhões até o início de dezembro. Cigarros de tabaco movimentam um mercado de mais de R$ 50 bilhões por ano, apenas nos Estados Unidos. Maior exportador de tabaco do mundo desde 1993, o Brasil vendeu quase 500 mil toneladas para mais de cem países em 2021, com faturamento de R$ 7,6 bilhões.
Como a nicotina age sobre o corpo humano?
Na origem desses números está a nicotina. A rapidez com que o corpo humano absorve a substância é o que faz com que ela seja tão viciante. Quando tragada em um cigarro de combustão, a nicotina leva de seis a dez segundos para chegar ao cérebro, explica o médico Paulo César Corrêa, coordenador da Comissão Científica de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT).
“A nicotina é a razão principal pela qual as pessoas fumam, mas não é a única, já que outras substâncias também provocam e reforçam a dependência,” diz Corrêa. Uma delas é o acetaldeído, que, produzido de forma natural pela combustão do tabaco, potencializa os efeitos da nicotina.
O problema, conta Corrêa, não é apenas causar dependência. A nicotina, além de viciar, pode impactar o organismo humano de várias maneiras. “Por ser um agente simpático-mimético, a nicotina provoca alterações diretamente ligadas ao sistema nervoso simpático, aquele que provoca a reação de lutar ou fugir diante de uma situação,” explica o médico. Alterar esse sistema, diz ele, afeta a pressão e a frequência cardíaca.
Isso porque a nicotina estimula a liberação de noradrenalina – um hormônio que provoca o aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial, por provocar a contração ou por “apertar” os vasos sanguíneos. Maior frequência cardíaca significa mais demanda de oxigênio e nutrientes para que o corpo funcione – o que, em casos extremos, pode levar ao infarto.
Segundo uma nota técnica, com base em revisão de estudos científicos, publicada em janeiro de 2022 pela ACT Promoção da Saúde, a nicotina também pode causar uma doença chamada tromboangeíte obliterante. Ela provoca uma inflamação que pode obstruir o fluxo sanguíneo em veias, especialmente as menores e mais finas, como as das mãos e dos pés, causando uma trombose. Em alguns casos, pacientes precisam amputar os membros afetados.
A nicotina também tem efeitos indesejáveis sobre o sistema metabólico. Ela pode, por exemplo, causar uma desregulação na quantidade de glicose no sangue, o que aumenta o risco de desenvolver diabetes, observa Corrêa. Além disso, apesar de diminuir o apetite, ela provoca o aumento da adiposidade central, que é o acúmulo de gordura abdominal. “Quando você vê alguém com barriga de chope, isso é a adiposidade central. É um fator de risco tanto para hipertensão arterial quanto para diabetes”.
Até o sistema reprodutivo pode sofrer com a nicotina. De acordo com a nota da ACT, a substância prejudica a ereção, porque altera o fluxo sanguíneo do pênis. O esperma também é afetado: a nota cita um estudo experimental em que, ao serem expostos à nicotina, ratos apresentavam muito menos espermatozoides – e muitos deles tinham anormalidades.
Nas mulheres, a nicotina pode afetar o ciclo menstrual e provocar a menopausa precoce por diminuir a quantidade de estrogênio circulando na corrente sanguínea. A exposição à nicotina e outras substâncias presentes no cigarro podem até aumentar o risco de infertilidade em mulheres, por potencialmente diminuir e desregular a produção de progesterona, hormônio produzido nos ovários a partir da puberdade.
E, claro, além da nicotina, o cigarro tradicional traz uma série de outros problemas para a saúde. “Cigarros têm mais de sete mil substâncias químicas diferentes, das quais pelo menos 70 são conhecidas como carcinogênicas – ou seja, causam câncer,” diz Ann McNeill, professora do King’s College em Londres. “Cigarros são altamente mortais. Não há outro produto [que ofereça o mesmo risco] nem de longe”, observa.
A questão, segundo especialistas, é que muita gente está disposta a enfrentar esses e outros riscos à saúde porque a nicotina gera uma sensação de prazer e satisfação – e causa sintomas de abstinência quando está ausente.
Presente na fumaça e liberada pela queima do tabaco, a nicotina é absorvida pelos pulmões e chega rapidamente ao cérebro. Ali, ela se liga a receptores e libera a dopamina, um neurotransmissor responsável pela sensação de prazer. A nicotina também estimula a liberação do ácido gama-aminobutírico (GABA) causando uma sensação de satisfação.
Remédio e vacina de nicotina?
Não é de hoje que a indústria do fumo investe em pesquisas científicas para tentar reabilitar a nicotina. Esses esforços ocorrem há décadas, como explica o médico Paulo César Corrêa. “Nos anos 1980 e 90, houve uma estratégia de se tentar associar a nicotina com ganhos para a saúde,” conta.
Uma pessoa com o Mal de Parkinson, por exemplo, tem déficit de dopamina no cérebro. Há quem diga que o cigarro, ao liberar nicotina – e, por sua vez, dopamina – poderia ajudar no tratamento da doença. “Mas a nicotina não seria um remédio, já que ela apenas mascara a doença de Parkinson que já existe.” Além disso, continua o médico, a nicotina não seria um estimulante para aumento da concentração – o efeito só ocorre em quem já tem adicção pelo cigarro.
Outra linha buscou investigar um possível tratamento com nicotina para o Mal de Alzheimer. Em 1996, uma equipe de pesquisadores liderada pelo bioquímico Michael Zagorski, da Universidade Case Western Reserve, nos Estados Unidos, observou em testes in vitro que a nicotina, ao se ligar à proteína beta-amiloide, evitava que ela se acumulasse para formar placas – um dos principais indicadores de Alzheimer no cérebro.
O estudo, parcialmente financiado pela Philip Morris, foi publicado na revista Biochemistry. À época, em uma entrevista ao New York Times, Zagorski alertou que era preciso haver mais estudos clínicos para tirar conclusões sobre o funcionamento do mecanismo no cérebro humano – e que ninguém deveria fumar na tentativa de prevenir a doença de Alzheimer.
Vários estudos e revisões continuaram a ser feitos nas décadas seguintes, mas sem um corpo de resultados conclusivo que permita afirmar que a nicotina, de fato, possa proteger o cérebro contra o Alzheimer.
A Organização Mundial da Saúde, inclusive, alerta que o fumo é um fator de risco para demência – o que inclui o Alzheimer – especialmente pelos danos que o cigarro (e a nicotina) causam ao sistema cardiovascular humano.
Também se estuda os efeitos da substância sobre sintomas psicóticos de pessoas com esquizofrenia. E ainda se a nicotina evitaria efeitos colaterais de medicamentos antipsicóticos. Em 2017, um estudo publicado na revista Nature observou que o uso de nicotina, em modelos animais, reverteu um marcador importante da esquizofrenia: a baixa atividade em uma região muito importante do cérebro, o córtex pré-frontal – responsável pelo julgamento e decisões que tomamos.
Especialistas, no entanto, discutem se a nicotina também poderia ter o efeito reverso – a substância, ao liberar dopamina no cérebro, também poderia aumentar o risco de esquizofrenia entre fumantes (especialmente entre pessoas com propensão genética a desenvolver a doença), inclusive os que usam cigarros eletrônicos.
E, então, vieram as tentativas de tratamentos e vacinas para Covid-19. Em 2020, testes clínicos dos Hospitais de Paris – um fundo hospitalar universitário – sugeriram que a nicotina poderia inibir a penetração e proliferação do novo coronavírus no corpo humano, possivelmente protegendo contra a doença. Os resultados, no entanto, ainda não foram publicados em formato de artigo científico e, portanto, não foram revisados por pares.
Em seguida, diferentes grupos entraram na corrida pelo desenvolvimento de uma vacina para Covid-19 baseada em nicotina. O caso da Medicago – aquela que tem 25% das suas ações nas mãos da Philip Morris – é o mais emblemático. A vacina foi aprovada no Canadá em fevereiro de 2022. A OMS, no entanto, não fez a revisão do imunizante e condenou o governo canadense por desconsiderar, em sua análise, possíveis conflitos de interesses com a indústria do fumo. A Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, único tratado internacional de saúde pública que existe no mundo, recomenda que países signatários evitem situações assim.
Em um comunicado, a OMS enfatizou que “pesquisadores, cientistas e a mídia devem ser cautelosos em amplificar alegações não comprovadas de que tabaco ou nicotina possam reduzir o risco de Covid-19. Ainda há informações insuficientes para confirmar qualquer ligação entre tabaco ou nicotina e a prevenção ou tratamento” da doença. Na nota, a OMS destaca ainda que fumantes têm um risco maior de desenvolver quadros graves e morrerem por Covid-19.
A farmacêutica Silvana Turci, coordenadora do Centro de Estudos Sobre Tabaco e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), é taxativa. “A nicotina não é inofensiva sob nenhuma circunstância e só é uma substância benéfica quando usada como inseticida, para matar pragas.”
A nicotina também é utilizada em tratamentos para parar de fumar – ou na terapia de reposição de nicotina (TRN), que tem por objetivo reduzir os sintomas de abstinência causada pela interrupção do uso do tabaco.
Ao contrário do cigarro, que entrega nicotina ao cérebro em poucos segundos, as TRNs liberam a substância mais lentamente, aliviando a irritabilidade, alterações no sono e na concentração, dores de cabeça e outros sintomas que podem surgir com o corte brusco do tabagismo. Dentre os produtos usados na TRN estão as gomas de mascar, sprays nasais e orais, pastilhas e adesivos com nicotina.
Uma revisão de 2018 olhou para mais de 130 artigos científicos que envolveram quase 65 mil indivíduos e concluiu que pessoas que usavam TRNs tinham entre 50% e 60% mais chances de sucesso em abandonar o cigarro. Outra revisão do mesmo ano abrangendo 63 estudos e mais de 41 mil pessoas concluiu que a combinação de adesivos com formas mais rápidas de entrega de nicotina – como pastilhas ou gomas de mascar – era mais eficaz como tratamento do que o uso de um único produto de reposição de nicotina.
Ainda assim, os números são bastante baixos – segundo um estudo de 2019, em média 98 pessoas a cada mil tiveram sucesso usando uma combinação de TRNs, e apenas 78 em cada mil usando um tratamento único. E pesquisadores continuam estudando o uso de medicamentos, como a vareniclina, e até vacinas de nicotina para ajudar a parar de fumar ou evitar recaídas em ex-fumantes.
A nicotina reembalada: os cigarros eletrônicos
Além de vacinas, tratamentos e remédios, a grande promessa atual para a redenção da nicotina são os dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs). Para alguns especialistas, eles permitem um consumo menos danoso do tabaco e podem ser uma alternativa para quem quer continuar fumando. Ao mesmo tempo, podem funcionar como tratamento para a dependência – como uma opção supostamente mais eficiente do que as terapias de reposição de nicotina. Ou seja, seriam um trampolim para abandonar o vício.
Seja como for, para a indústria isso significa muitas novas formas de vender a nicotina. Nos Estados Unidos, as grandes empresas de tabaco logo embarcaram na onda dos cigarros eletrônicos. Afinal, eles representam uma oportunidade de formar novos públicos fumantes, principalmente jovens, para quem o cigarro de combustão estava ultrapassado.
Conforme conta a jornalista Jamie Ducharme, autora do livro “Big Vape: The Incendiary Rise of Juul“, quando o mercado do cigarro eletrônico se iniciou nos EUA, onde a sua produção e venda são liberadas, ele era formado principalmente por pequenos fabricantes, em sua maioria ex-fumantes que adotaram o vaping.
“Mas, à medida em que cigarros eletrônicos se tornaram mais populares, e as grandes empresas de tabaco perceberam que os dispositivos eletrônicos estavam comendo uma parte de suas vendas, elas começaram a comprar essas empresas menores ou a investir nelas. Ainda há alguns pequenos fabricantes, mas de longe os líderes de venda são grandes empresas de cigarro.”
O Brasil, ao longo de décadas, conseguiu reduzir a proporção de fumantes no país. Em 1989, 34,8% da população adulta fumava, segundo a Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição do Ministério da Saúde – ou aproximadamente 29 milhões de pessoas, se levarmos em conta uma aproximação dos dados do Censo de 1991. Trinta anos depois, esse número caiu para 12,8%, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE, ou 20 milhões de fumantes.
Segundo um levantamento da Gallup, 11% dos norte-americanos adultos usam cigarros de combustão – quase a mesma quantidade de pessoas que usam cigarros eletrônicos no país. Por lá, o consumo de DEFs é bem maior na faixa que vai dos 18 aos 49 anos do que entre maiores de 50 anos – o uso gira em torno de 13% entre o primeiro grupo e 1% entre o segundo.
Outras pesquisas mostram que, no país, o número de estudantes no ensino médio que passaram a usar vapes com nicotina praticamente dobrou entre 2017 e 2019 – e jovens, além de serem mais propensos a usar DEFs do que pessoas mais velhas, não acreditam, em sua maioria, que o uso desses dispositivos seja prejudicial à saúde.
Ducharme diz que não apenas a ciência sobre os cigarros de combustão se acumulou, mas o fumo de tabaco comum deixou de ser visto como cool pelas gerações mais jovens nos Estados Unidos. Esse lugar foi ocupado, conta ela, pelos cigarros eletrônicos.
A proliferação de referências ao vape na cultura jovem é prova disso – e, não raro, essas manifestações vêm acompanhadas de outros esforços para vender a nicotina. É o caso do documentário “You Don’t Know Nicotine”, aquele que, como mencionamos anteriormente, foi realizado por uma produtora financiada pela Philip Morris. No filme, o diretor Aaron Biebert defende que a nicotina precisa ser “desvilanizada”. E no documentário “A Billion Lives”, sobre cigarros eletrônicos, também do mesmo diretor, Biebert afirma que esses dispositivos poderiam salvar um bilhão de vidas.
Cigarros eletrônicos podem salvar vidas?
Será que os cigarros eletrônicos podem ser tão bons como defende Biebert? Cientistas se debruçam sobre o tema. Se, por um lado, existe um consenso entre a comunidade médica de que o cigarro faz mal – não apenas pela presença de nicotina, mas também pelas outras milhares de substâncias –, por outro lado, ainda há muito a se entender sobre os riscos e malefícios reais e potenciais dos e-cigarros.
De acordo com uma revisão de estudos científicos preparada pelo Instituto de Psiquiatria, Psicologia e Neurociência do King’s College London, a pedido do Departamento de Saúde e Cuidado Social do Reino Unido, o vaping – ou uso de cigarros eletrônicos – representa substancialmente menor risco à saúde do que o uso do cigarro de combustão. Lançado no fim de setembro de 2022, o relatório inclui mais de 400 estudos na revisão e não é o primeiro do tipo, mas é o mais abrangente de que se tem notícia até o momento.
“Encontramos um nível muito reduzido de toxinas no corpo de pessoas que usam DEFs exclusivamente em comparação com fumantes que usam exclusivamente cigarros de combustão ou fazem uso dos dois,” conta Ann McNeill, autora principal do relatório. Isso quer dizer que a exposição a toxinas seria menor com o uso de vaping do que com cigarros de combustão, diz ela.
A conclusão principal do relatório, diz McNeill, é que, apesar de DEFs serem relativamente menos tóxicos do que cigarros de combustão, esses dispositivos não são livres de risco. “Quem não fuma deve continuar sem fumar. Sugerimos fortemente que as pessoas evitem começar a fumar, ainda que usando DEFs.”
Silvana Turci afirma que ainda não se conhecem os impactos do cigarro eletrônico na saúde humana. Ao contrário do cigarro de combustão, que existe em sua forma moderna desde o fim do século 19, os cigarros eletrônicos são um fenômeno recente. A tecnologia do primeiro vaporizador data de 1927, mas os dispositivos como conhecemos hoje se baseiam no modelo desenvolvido pelo farmacêutico chinês Hon Lik em 2003. “Ainda não deu tempo de fazer estudos sobre os efeitos do cigarro eletrônico a longo prazo sobre o corpo humano, então não dá para dizer que são seguros,” diz Turci.
Ela explica que, apesar de existirem evidências de que DEFs podem ser menos tóxicos que o cigarro de combustão – especialmente porque não produzem alcatrão no processo do fumo – há compostos ainda pouco estudados nos vaporizadores.
Corrêa concorda. Ele cita um estudo de 2021 que faz o mapeamento das substâncias presentes no líquido usado em cigarros eletrônicos, também conhecido como juice. “Foram encontradas mais de duas mil substâncias, dentre elas alguns contaminantes perigosos [como o óxido de tributilfosfina, que é corrosivo].”
O cigarro eletrônico como tratamento
Apesar dos riscos dos cigarros eletrônicos, McNeill acredita que eles podem ser aliados no processo de parar de fumar. Segundo ela, há uma série de estudos científicos que mostram que o vaping é mais eficiente do que as terapias de reposição de nicotina (TRNs).
Um estudo que vai nesta direção observou quase 900 pessoas e foi publicado em 2019 no The New England Journal of Medicine, uma das revistas científicas mais respeitadas no mundo. A pesquisa mostrou que, de fato, a taxa de sucesso em parar de fumar cigarros de combustão entre os usuários de DEFs foi quase o dobro do que entre pessoas que usaram terapias de reposição comuns – 18% contra 9,9%, respectivamente, depois de um ano.
No entanto, após largar o cigarro comum, 80% dos vapers ainda usavam os dispositivos eletrônicos, enquanto apenas 9% dos que usaram as terapias de reposição continuaram a usar algum produto do tipo, como gomas de mascar ou adesivos de nicotina.
De acordo com um relatório de 2020 do Surgeon General (EUA), não é possível afirmar que quem usa DEFs tem mais sucesso em parar de fumar do que quem não usa, já que as evidências ainda não são sólidas o suficiente.
Para Ann McNeill, as pessoas deveriam poder usar a nicotina sem precisar morrer pelo uso de cigarros de combustão. Ela observa que a indústria do tabaco não vai desaparecer de um dia para o outro, e defende que deveria haver uma maior diversidade de fabricantes oferecendo produtos “mais seguros” – inclusive com produtores pequenos e artesanais dividindo uma fatia deste mercado. “Mas os cigarros eletrônicos não são a bala de prata para resolver o vício,” diz.
Um comentário de especialistas publicado em 2021 na revista Preventive Medicine Reports sugere, inclusive, que não apenas o vaping não é um método eficaz para a cessação do tabagismo, mas pode ter o efeito contrário, iniciando novatos no hábito de fumar.
Paulo Corrêa observa que os níveis de nicotina dos juices de vaporizadores costumam ser mais altos do que em cigarros de combustão. Enquanto o cigarro comum no Brasil tem um limite de até 1 miligrama de nicotina por unidade, o líquido dos cigarros eletrônicos pode conter até 57 mg por mililitro. Ou seja, vapes podem ser ainda mais viciantes do que cigarros comuns.
Isso porque eles possuem a chamada supernicotina ou sal de nicotina, muito mais potente que a nicotina de base livre, presente nos cigarros tradicionais – e também na primeira geração de vaporizadores. A desvantagem da nicotina de base livre é que ela causa uma sensação áspera na garganta.
Assim, Corrêa explica que a inovação do sal (gerado pela associação da nicotina com ácido benzóico) foi conseguir aumentar a entrega da substância sem provocar aquele desconforto na garganta, que era o grande limitante dos cigarros eletrônicos de primeira geração. “Neles, quando se aumentava a dose de nicotina, o vapor era literalmente intragável – mas com pouca nicotina, o fumante não ia querer consumir aquele produto,” afirma.
A descoberta dos sais, continua o médico, veio de pesquisa da empresa Juul Labs. E isso mudou o jogo no campo dos cigarros eletrônicos. “A partir dessa descoberta da Juul, a indústria procurou associar outras substâncias – como ácido lático e o ácido levulínico – para potencializar [ainda mais] a entrega de nicotina.”
Mais nicotina por baforada significa uma dificuldade maior de reduzir ou parar com o uso de cigarros eletrônicos – justamente o contrário do efeito desejado por aqueles que defendem o vaping como solução para a dependência do tabaco.
Para Turci, a defesa e o investimento das grandes empresas nos cigarros eletrônicos e na tentativa de reabilitação da nicotina, “mesmo que o melhor conhecimento científico disponível não ofereça bases sólidas para isso”, tem interesses puramente mercadológicos. No fundo, se presta a um objetivo: “repor usuários de cigarro que adoecem e morrem.”