Agricultores familiares enfrentam jornadas exaustivas, riscos de adoecimento e baixa renda
Os primeiros vendedores chegam antes de o dia clarear. É uma espécie de feira livre, mas muito diferente das feiras de alimentos: não existem barracas, os produtos não são comestíveis, os fregueses não são os consumidores finais e, via de regra, esses fregueses é que decidem o preço que vão pagar.
Estamos em uma feira de fumo em Craíbas, cidade de 25 mil habitantes no interior de Alagoas. Tanto ali como em municípios próximos, milhares de agricultores familiares têm no tabaco sua principal atividade econômica. Eles estão no entorno de Arapiraca, a segunda maior cidade do estado, que já foi conhecida como “capital do fumo”. Circulamos por Arapiraca e arredores durante três dias no início de setembro e, nas pequenas e médias propriedades por onde passamos, a paisagem era essa: milhares de pés de fumo crescidos, com varais de bambu onde as folhas já colhidas eram postas para secar.
Não estamos falando aqui do tabaco que preenche os cigarros industrializados de empresas como Philip Morris e British American Tobacco, transnacionais que dominam o mercado brasileiro vendendo marcas como Marlboro e Derby. O que se vende nas feiras alagoanas é o chamado fumo de corda ou de rolo, usado principalmente em cigarros enrolados à mão.
Alguns produtores trazem fardos de folhas secas inteiras, mas a maioria chega com as chamadas bolas de fumo: algo parecido com novelos enormes, de 70 a 100 quilos cada, em que estão enroladas cordas longas, feitas de folhas de fumo unidas e torcidas.
Quando chegamos, às sete da manhã de um sábado chuvoso, vemos muita gente transitando a pé, de moto, carro, caminhonete ou kombi, pesando o produto em grandes balanças antigas, negociando preços, abrindo as cordas com faca para examinar a qualidade, cheirando o fumo de perto. Só vemos homens, que em geral trabalham com isso há décadas.
Achamos o movimento intenso, mas estamos enganadas: todos dizem que a feira ainda está fraca e que só começa a ficar realmente agitada em novembro ou dezembro, quando as folhas colhidas chegam no melhor ponto para venda.
Nas feiras semanais de Arapiraca e de Craíbas, quem planta fumo tenta vender sua pequena produção a atravessadores que vão acumulando volumes maiores para oferecerem às empresas. Para elas, que industrializam e comercializam o produto, não interessa negociar poucas quantidades.
“Eu planto há 25 anos e sempre venho aqui pra vender, não tem outro jeito. Quem vem aqui comprar, compra barato da gente e vende caro para as empresas. Para quem planta, é sofrido”, critica Laércio Castro, de 49 anos.
O fumo de rolo vem de uma planta diferente daquelas cultivadas hoje para os cigarros convencionais, a partir de um processo de produção também muito distinto – e que entrou em franca decadência a partir do fim dos anos 1990. “Depois dos anos 2000, só mesmo os agricultores familiares continuaram no fumo, por uma questão de sobrevivência. E a vida deles ficou ainda mais difícil”, diz Geraldo Balbino, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Arapiraca.
Esses agricultores enfrentam jornadas extenuantes e chegam a sofrer intoxicações por nicotina durante o trabalho com tabaco. Mas o retorno não é dos melhores: uma renda baixa – segundo os agricultores com quem conversamos, cada hectare rende, em média, R$ 10 mil por ano – e cercada de incertezas.
Do boom à crise
O Brasil é o maior exportador e o terceiro maior produtor de fumo no mundo, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Hoje, o cultivo está altamente concentrado nos três estados do Sul, responsáveis por mais de 95% da produção no país.
Mas nem sempre foi assim: na verdade, a história do fumo no Brasil começou no Nordeste. A planta era cultivada por indígenas bem antes da chegada dos portugueses, e, ainda em meados dos anos 1570, os colonizadores começaram sua cultura comercial.
Durante muito tempo, havia lavouras de tabaco apenas onde hoje ficam Alagoas, Bahia e Pernambuco. O cultivo no Sul só começou três séculos depois, e logo se estabeleceu uma diferença: enquanto os estados do Nordeste produziam um fumo escuro, rústico, no Sul foi incentivada a produção de novas variedades mais claras e suaves. Também foi ali que se instalaram empresas que dominariam o mercado mundial, como a Souza Cruz (que foi comprada pela British American Tobacco em 1914 e, hoje, se chama BAT Brasil).
No Nordeste, os agricultores podiam vender o fumo escuro de duas formas, dependendo da parte da planta colhida: as folhas mais baixas eram exportadas (inteiras) para a produção de capas de charuto ou para servirem de enchimento de cigarros comuns, charutos e cigarrilhas. Já as folhas mais altas e fibrosas abasteciam o mercado interno na forma de fumo de rolo.
“Eu nasci na década de 1970, época de muita produção aqui. Quando um jovem completava 14, 16 anos, já se preocupava em ter sua própria roça de fumo, além daquela onde trabalhava com os pais. Essa era a dinâmica”, lembra Geraldo. Mas a coisa começou a desandar na década 1990, quando, por uma série de razões, o fumo de corda começou a perder terreno e seu consumo fora das regiões Norte e Nordeste quase desapareceu.
Hoje, ele não está nem mesmo nos cigarrinhos de enrolar que voltaram a fazer sucesso com parte da classe média urbana: estes contêm, geralmente, tabacos claros do Sul. Se nos anos 1980 o estado de Alagoas teve em média 35 mil hectares de fumo colhidos por ano, na década de 2010 a média foi de apenas 9,4 mil, segundo a pesquisa Produção Agrícola Municipal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PAM/IBGE). “As quase 20 exportadoras que havia em Arapiraca foram fechando, uma a uma. Hoje só sobraram duas, que não trabalham com fumo de rolo, e sim com folhas para capa de charuto”, diz Fábio Ribeiro. Ele gerencia uma dessas empresas, a CAPA, criada por seu pai.
Com a queda na demanda, os grandes produtores começaram a migrar para outras atividades, como a pecuária e o cultivo de milho. Mas para os agricultores familiares, que têm poucos recursos e vivem em terras muito pequenas (ou nem terra possuem), mudar de atividade não é tão fácil.
Acesso à terra
Quem chega à comunidade Capim (ou “sítio Capim”, como se diz por lá) vê uma área plana com ruas largas, casinhas coloridas bem próximas umas às outras, um pequeno comércio, igrejas e pouco movimento. O lugar fica muito perto do Centro de Arapiraca, mas é totalmente diferente. Arapiraca tem mais de 200 mil habitantes e as áreas centrais têm aquela aura caótica típica de cidades de médio e grande porte: muitas lojas, restaurantes, luzes e ruídos de toda ordem. No Capim, o ritmo é outro.
Mas, mesmo com a calmaria, o local ainda tem um jeito de bairro periférico urbano. Então, estranhamos quando chegamos lá de madrugadinha, acompanhadas pelo Geraldo, e ele nos disse que o plano era visitar uma lavoura por ali. Onde estariam as lavouras, se para todo lado que olhávamos só havia casas?
É que gente de fora não imagina que, atrás de cada casa, há quintais espaçosos, muitos deles com fumo plantado. “Essa terra era do meu pai, eu planto aqui desde criança”, conta Genival José, mostrando o espaço de pouco mais de um hectare, onde, além do tabaco, há um pouco de mandioca, batata-doce e frutíferas. Como o Capim, há várias outras comunidades do tipo: muito próximas do perímetro urbano, mas cheias de plantações.
Hoje, a produção de fumo em Alagoas é tocada basicamente por produtores familiares como Genival: a área média plantada é de um hectare por estabelecimento, segundo o Censo Agropecuário de 2017. Existem ao todo 7,4 mil propriedades cultivando fumo no estado, todas em municípios que rodeiam Arapiraca. Entre 2010 e 2020, a produção média foi de 12 mil toneladas, segundo o Ipeadata, banco de dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Mas nem todo mundo que planta fumo tem terra. Geraldo estima que 20% dos agricultores associados ao sindicato plantam em propriedades de terceiros, seja arrendando (quando se ‘aluga’ um pedaço de terra); fazendo meia (o meeiro paga ao dono da terra com metade da produção); ou ainda em regime de comodato (um empréstimo da terra para uso, comum entre pessoas da mesma família). Segundo o secretário de Agricultura de Arapiraca, Hibernon Cavalcante, só 60% de todos os produtores de fumo do município plantam em terras próprias.
Quem arrenda terra na região normalmente paga por esse uso no fim da safra, em fumo: cada 0,3 hectare custa em média 50 quilos de fumo de corda. O preço disso varia ano a ano, mas corresponde a algo entre R$ 1 mil e R$ 1,5 mil. “Além de pagar a terra, o produtor ainda paga os custos da safra seguinte – sementes, adubos, venenos, não é pouca coisa. Tinha vezes que, depois de tirar o pagamento do dono da terra e esses custos da produção, não sobrava o suficiente para pagar as contas”, lembra Ivonete Bernardo, hoje secretária de Mulheres do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Arapiraca.
Ela e sua família trabalharam em terras arrendadas até 2001, quando se mudaram para o então recém-criado Assentamento Ceci Cunha. Não se trata de um assentamento conquistado via MST, mas sim a partir de uma reivindicação do sindicato.“Depois do acesso a essa terra, a diferença na nossa renda foi muito grande”, comenta Ivonete, apontando que a principal atividade econômica das 80 famílias de assentados continua sendo o fumo.
Ao lado do assentamento, conhecemos Dona Maria, que trabalha com fumo desde os oito anos. Hoje, aos 67, ainda atua todo o ciclo da planta, incluindo a cansativa colheita. Sua família não tem terra e arrenda cerca de meio hectare por 100 quilos de fumo. Ali, ela trabalha com o marido e três filhos. “Depois de pagar a terra, e também os adubos e os venenos para o outro ano, sobra pra gente uma média de R$ 3,5 mil a R$ 4 mil”, calcula um de seus filhos, José Aparecido. Esse dinheiro precisa durar o resto do ano inteiro, até o fim da safra seguinte.
Renda incerta
Ter sua própria terra significa deixar de lado um custo de produção importante, mas ainda não garante uma vida tranquila. Mesmo nos anos de boa safra, a renda não é tão alta: segundo o agricultor Cláudio dos Santos, o trabalho em meio hectare rende em média R$ 10 mil brutos em um ano – sendo que normalmente envolve o trabalho de boa parte da família.
E há ainda fatores que podem puxar essa média para baixo. Um ponto importante é que a produção depende do clima para dar certo: “Este foi um ano perdido para mim. A chuva não parava e o trator não conseguiu chegar até a minha terra para fazer os canteiros. Com isso, não consegui plantar no tempo certo”, diz Ivonete. Ela já tinha as sementes e os insumos, e acabou decidindo plantar mesmo assim. Mas já sabe que suas chances de sucesso são muito pequenas: “Com certeza, perdi 99% da produção”. Mesmo quem conseguiu plantar a tempo não vai produzir muito, porque o excesso de chuva atrapalha tanto o desenvolvimento da planta como a secagem das folhas.
Os anos em que o clima fica úmido ou seco demais sempre fazem cair a produção, e com isso o preço das bolas de fumo sobe. Muita gente se anima com a alta e decide aumentar a plantação no ano seguinte. Mas aí há tanto fumo que o preço cai, e bate o desespero nos agricultores.
Isso aconteceu há bem pouco tempo: em 2018 houve seca, o preço subiu, e nos três anos seguintes a produção foi às alturas. “É complicado… Em 2018 eu vendi a mercadoria a R$ 29 o quilo. No ano passado só consegui R$ 20. Esse ano só Deus sabe… O preço deve ser melhor por causa da chuva, mas a produção não deu nada”, compara Genival José, da comunidade Capim.
E tem outro problema: os custos da produção. Este ano, o aumento no preço dos insumos é uma queixa geral. “Tudo subiu demais. Ano passado eu comprava um saco de ureia por R$ 100, este ano já comprei por R$ 300”, ele exemplifica.
O que alivia as famílias é uma parte da produção que não é contabilizada como renda, por não ser vendida para fora, mas que tem grande importância financeira: os alimentos para consumo próprio. Quase todas as lavouras de fumo que conhecemos tinham batata-doce nas beiradas dos canteiros. Também se planta mandioca e macaxeira (a primeira para moer farinha, a segunda para comer cozida), feijão, inhame e frutas em geral. “A gente consegue tirar da terra uns 30% do que come. O que precisamos comprar é carne, arroz, macarrão e coisas industrializadas”, estima Genival.
Trabalho pesado
Embora o tabaco não seja uma planta de ciclo muito longo – são cerca de cinco meses desde a semeadura até o início da colheita –, os trabalhadores ficam envolvidos com a safra durante quase o ano inteiro. Entre março e setembro eles preparam mudas e solo, transplantam as mudas para os canteiros, cuidam do desenvolvimento das plantas e, finalmente, colhem as folhas.
Até esse ponto, a produção dos fumos claros e escuros é bem parecida. A partir daí, o processo muda totalmente. Na variedade clara mais comum no Sul do Brasil, chamada Virginia, as folhas colhidas são curadas (secas) durante alguns dias em estufas, em geral com uso de lenha. Depois, são classificadas e vendidas para as empresas de fumo, que fazem o beneficiamento e a comercialização.
Já com o fumo de corda, a curagem acontece em duas etapas. Quando chegamos à plantação da família de Ailton e Josefa Ferreira, estavam sendo armados varais de bambu onde seriam colocados os maços com as folhas recém-colhidas para secar. Essa é a primeira parte: as folhas ficam assim, suspensas no meio da lavoura, por duas a quatro semanas.
A secagem do fumo de corda começa em varais de bambu, erguidos no meio da lavoura. Fotos: Raquel Torres
Depois de murchas e amareladas, elas seguem para a “destalação”, que é a remoção dos talos com faca, folha por folha. Há famílias que destalam as folhas da própria produção, mas em outros casos elas contratam gente para fazer esse serviço. “Antigamente, quando o fumo era forte mesmo na região, ficavam uns galpões enormes cheios de mulheres e crianças fazendo a destalação, as mulheres cantando”, lembra Geraldo. Os cantos de trabalho das destaladeiras de fumo de Arapiraca até ganharam fama.
A referência a crianças no trabalho com o fumo é constante. Quase todos os agricultores com quem conversamos disseram que estão nessa atividade desde pequenos, e que atuavam não apenas na destalação, mas em todo o processo do cultivo: o plantio, o combate às lagartas – que eram retiradas à mão antes de haver venenos para isso –, a dura colheita, a secagem das folhas.
Mas todos também indicaram que o trabalho infantil hoje praticamente não existe por lá. Claro que esse é um tema difícil de abordar, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe qualquer forma de trabalho até os 13 anos, e mesmo adolescentes não podem realizar nenhum trabalho insalubre ou perigoso. Mesmo se houvesse trabalho infantil na região, seria natural que os agricultores não quisessem falar sobre isso. No entanto, durante o período em que circulamos por lá, passando por lavouras e quintais, de fato não vimos nenhuma criança trabalhando.
Geraldo conta que, em Arapiraca, as ações do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI, do governo federal) começaram ainda nos anos 1990, e que de lá para cá as coisas mudaram muito em relação a isso.
Em relação à destalação, ele explica que atualmente, com a produção reduzida, o serviço é em geral feito em família, nas próprias casas – mas sem crianças. Tanto nas comunidades próximas ao Centro de Arapiraca como nas zonas mais distantes, vimos muita gente sentada nas varandas ou em pequenos galpões, com as folhas no colo e uma faquinha na mão. Para quem recebe pelo serviço, o preço é pago por peso: cada quilo de folha destalada sai por algo entre R$ 1,00 a R$ 1,50, apenas.
A destalação do fumo (retirada dos talos) é feita à mão, normalmente em família. Fotos: Raquel Torres
Três meses de viração
Na nossa visita à comunidade Capim, vimos também o processo que faz com que o fumo de corda tenha esse nome. Chegamos às cinco da manhã e fomos seguindo o Geraldo pela lateral de uma casa. Da rua não se ouvia nada, mas aos poucos fomos distinguindo vozes e uns sons de engrenagem. Quando enfim chegamos a um galpão nos fundos da casa, demos de cara com maquinários simples e alguns homens que se ocupavam fazendo as cordas de fumo e cuidando da cura.
Funciona assim: depois da fase da destalação, os trabalhadores passam mel de cana nas folhas e vão “colando” umas nas outras, torcendo o conjunto a cada nova folha que entra. Essas folhas coladas e torcidas se tornam uma corda grossa e comprida, e, à medida em que a corda se forma, ela vai sendo colocada em um grande balaio.
Depois, a corda é enrolada em uma espécie de carretel gigante chamado sarrilho, e é desse jeito que vai ser curada em galpão por dois a três meses. Mas não se pode simplesmente deixar o fumo quieto no sarrilho todo esse tempo. Durante o primeiro mês, a corda precisa ser passada de um sarilho para outro todos os dias – é a “viração” do fumo. Depois o processo passa a ser feito dia sim, dia não, por mais um mês. Ainda pode ser preciso virar o fumo por mais 30 dias, umas duas vezes por semana. É nesse ponto, já totalmente curado, que o fumo tem maior valor de venda nas feiras.
Overdose de nicotina
“Eu tinha bebedice muito forte: trabalhava durante o dia e ficava bêbada de noite. Era uma sensação de morte, eu sentia como se fosse morrer, mesmo. Ficava vomitando, sem forças, uma coisa horrível. Não dormia. E no dia seguinte tinha que trabalhar de novo, mesmo doente, porque não podia deixar de colher”, conta Gilsa Felix da Silva, que trabalhou com fumo dos dez aos 25 anos. Hoje, está no ramo das hortaliças.
A sensação que ela descreve é conhecida como “bebedice” em Alagoas e como “porre de fumo” no Sul, mas não tem nada a ver com bebida alcoólica: é a doença da folha verde do tabaco, um tipo de intoxicação por nicotina que está diretamente relacionada ao trabalho nas lavouras de fumo. Náuseas, vômitos, tontura, dores de cabeça, calafrios, diarreia, dor abdominal e fraqueza são alguns dos sintomas mais comuns.
O problema acontece quando os agricultores manuseiam as folhas verdes na presença de alguma umidade, seja de suor, chuva ou orvalho. A nicotina das folhas é então “puxada” para a superfície e absorvida pela pele. Existe um agravante: o trabalho físico pesado e altas temperaturas ambientes favorecem a absorção. Ou seja, as lavouras reúnem as condições perfeitas para o aparecimento dos sintomas. Principalmente na época de colheita, quando os trabalhadores passam o dia quebrando folhas verdes e carregando montes delas junto ao corpo, em geral debaixo de sol forte.
Os primeiros registros da doença aconteceram nos Estados Unidos, na década de 1970. Desde então, ela vem sendo identificada em vários outros países, mas o nível de subnotificação é muito alto.
Primeiro porque os sintomas se assemelham aos de outros tipos de intoxicação, o que pode dificultar o diagnóstico. Depois, porque dificilmente os agricultores procuram algum serviço de saúde. “Às vezes eu fico mal, mas uma hora passa. E continuo no serviço. Fazer o quê? Tenho que trabalhar”, resume Rosa Emília, de 56 anos, que conversou rapidamente com a gente enquanto colhia. É que as folhas precisam ser retiradas no ponto certo, e perder um dia de trabalho pode significar prejuízo grande. Alguns agricultores acabam até tomando medicamentos por conta própria, antes da colheita, na tentativa de evitar a bebedice.
Apesar de o Brasil estar entre os líderes na produção mundial de tabaco há décadas, por aqui os primeiros casos da doença só foram reportados em 2007, justamente em Arapiraca, a partir de uma pesquisa do Ministério da Saúde. Mas as cidades da região ainda não possuem dados sobre a prevalência do problema, segundo Dayana Pimentel, gerente do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) de Arapiraca.
Mesmo quem não tem sintomas pode estar sendo intoxicado durante o trabalho. Há alguns anos, no Rio Grande do Sul, o Cerest da Região dos Vales coletou amostras de urina de 80 fumicultores na época da colheita para identificar a presença de nicotina, sendo que 76 deles não haviam relatado nenhum sintoma. Mas a dosagem de nicotina confirmou a doença da folha verde em um terço dos trabalhadores, incluindo os assintomáticos.
Nos dias que passamos entre Arapiraca e Craíbas, conversamos com mais de 20 produtores e ex-produtores de tabaco. Sempre perguntávamos: “E você, fuma?”, mas era difícil ouvir um sim. “Esse é nosso problema: a gente vive disso, mas não consome”, riu o agricultor Genival José. Mas esse estudo mostra que mesmo não-fumantes ficam com muita nicotina no organismo na época da colheita: foram registrados níveis até 50 vezes mais altos do que o valor de referência. Os efeitos de longo prazo dessa exposição não são conhecidos.
Além da nicotina, agrotóxicos
Se a doença da folha verde do tabaco é algo que afeta especificamente quem trabalha na fumicultura, há outros tipos de intoxicação comuns a muitos agricultores: aquelas causadas por agrotóxicos. “Karate, Decis, Cyptrin, Confidor, Marmiplus e outros mais… É meio mundo de veneno”, enumera Genival.
O uso de equipamentos de proteção individual (EPIs) é raro. “Há resistência grande quanto ao uso de EPI, por ser um equipamento incômodo, quente. E também caro: agricultores familiares muitas vezes não têm condições de comprar”, aponta Dayana, do Cerest.
Isso é confirmado no relato dos trabalhadores. “Muita gente nem tem [EPIs]. Eu mesmo nunca coloquei”, diz Frank Charles dos Santos, de 43 anos, que já sofre os efeitos de longo prazo da exposição aos produtos: “Há uns cinco anos eu comecei a ter um problema de vista, e o médico disse que tem relação com agrotóxicos. Hoje, não consigo nem ver TV por muito tempo, os olhos ardem, começam a encher d’água.”
Como acontece no país inteiro, o problema é subnotificado. Em 2021, só 47 intoxicações por agrotóxicos agrícolas foram registradas em Arapiraca, no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Foi a cidade alagoana com o maior número de registros – mais da metade do total do estado. Segundo Dayana, não há informações sobre quantas das intoxicações se dão no contexto da fumicultura.
O que vai para fora
Nem todo o tabaco produzido nos arredores de Arapiraca vira fumo de corda. Hoje, ainda há duas empresas que exportam as folhas inteiras para a produção de capas de charuto: a CAPA e a Ermor Tabarama. Elas têm um esquema parecido com o que as grandes fumageiras fazem no Sul (mas numa escala muito menor), mantendo contratos com os agricultores. As empresas vendem a eles os insumos, fazem assistência técnica, doam os EPIs e compram a produção no fim da safra, desde que atinja certo padrão de qualidade.
Em uma sala de reuniões, Fábio Ribeiro, que administra a CAPA, nos conta que exporta anualmente de 120 a 140 toneladas de folhas para charutos. “Temos contratos com pequenos e médios agricultores, que plantam de 0,5 a 7 hectares. O contrato estabelece a quantidade de fumo que vai ser plantada e também o preço. Só que pode acontecer de, durante a safra, a gente avaliar o campo e ver que aquele fumo não vai ficar bom para capa de charuto. Aí o agricultor acaba tendo que colher apenas para fazer a corda, por conta própria”, explica.
Para virarem capa de charuto, as folhas precisam ser mais perfeitas do que as do fumo de rolo. Por isso, a colheita é feita por empregados da CAPA, e não pelos próprios agricultores. “Não podemos correr riscos na colheita. Quem trabalha na nossa equipe sabe o limite do estrago que pode ter na folha.”
Quando são quase 11 horas, Fabio avisa que já vai tocar o sinal para o almoço e que precisamos correr se quisermos ver o pessoal que faz a separação das folhas em ação. Passamos pelo galpão e damos uma meia parada em frente a uma cortina preta de plástico grosso. Quando ele abre o plástico, a vista é a seguinte: um salão enorme onde dezenas de mulheres estão sentadas no chão, cercadas por montes de folhas secas de tabaco e manuseando algumas delas.
Trabalhadoras separando folhas de fumo para exportação. Fotos: Raquel Torres
Ficamos desconcertadas, já que a cena é um bocado chocante. Fábio mostra que existem mesas e bancos para a atividade, mas, segundo ele, as trabalhadoras preferem o piso. Não conseguimos conversar com as mulheres, que, ainda de acordo com Fábio, gostam também de almoçar sentadas no chão, em pequenos grupos, em vez de usarem o pequeno refeitório. Não há microondas ou estufa para esquentar as marmitas.
Essas trabalhadoras fazem as manocas, pequenos maços de folhas que em seguida vão para grandes pilhas de fermentação. Ali, elas descansam por seis a oito meses, e depois são exportadas.
De volta à feira
Apesar de a CAPA e a Ermor se manterem em atividade, a esmagadora maioria dos produtores trabalha por conta própria, com foco no fumo de corda. Para se ter uma ideia, a CAPA, maior entre as duas exportadoras, tem contrato com apenas 81 agricultores, enquanto há mais de sete mil estabelecimentos produzindo tabaco em Arapiraca e arredores.
Esses agricultores compram os insumos e sementes, plantam, colhem, fazem a cura e levam o produto para as feiras. Vendem ali aos atravessadores e eles revendem a empresas, que, por sua vez, processam o fumo de rolo e o vendem em pacotinhos para os consumidores finais.
Em Arapiraca, as duas grandes empresas que fazem isso são a Incoforte e a Incofusbom. A primeira se estabeleceu só em 2014, mas é um desdobramento da tradicional Coringa – esse é o primeiro nome que as pessoas dizem quando perguntamos sobre empresas de fumo na região.
Acontece que há algumas décadas a Coringa começou a produzir alimentos, como café e flocão de milho. E também produtos ultraprocessados, como o salgadinho “Coringuitos”, que leva estampado nas embalagens um personagem infantil. Deu certo, e a empresa acabou se concentrando nisso. A Incoforte foi criada para ficar apenas com o tabaco.
Segundo Geraldo, há também compradores de Minas Gerais e da empresa Maratá, de Sergipe – esta última também se dedica hoje majoritariamente à produção de comida.
Procuramos representantes da Incoforte e da Incofusbom, mas, até o fechamento da reportagem, eles não aceitaram falar conosco.
“Para negociar com as empresas, é preciso juntar cinco, 10, 15 toneladas de fumo curado”, aponta Geraldo, notando que a produção anual de cada agricultor não costuma chegar a uma ou duas toneladas. O sindicalista vê a figura do atravessador como um “mal necessário”: eles lucram em cima dos produtores, mas estes não conseguem vender seu fumo sozinhos para a indústria.
“No ano passado eu comprei umas 120 toneladas. Trabalho há 20 anos com isso, é algo que vem dos meus avós e vou dando continuidade”, nos conta Sandro Araújo, um desses atravessadores. Ele compra tanto o fumo já curado como as folhas soltas, para curar em casa. “Vai depender do que for mais vantajoso”, diz.
Na feira de Craíbas, o clima entre agricultores é de desilusão. Ainda é setembro, a colheita começou há pouco tempo e as primeiras folhas colhidas, da parte mais baixa da planta, valem menos. A cura do fumo também ainda está incompleta, e tanto as folhas inteiras como as cordas no início do processo de cura têm um preço menor. Mas muitos produtores precisam do dinheiro e acabam decidindo vender assim mesmo – nesse caso, os atravessadores é que depois enrolam e curam.
“Eu achei melhor vender esse baixeiro [as folhas mais baixas] em folha inteira por R$ 7 [o quilo] do que ainda ter que enrolar e vender por R$ 10”, explica Paulo do Nascimento, o Paulinho. Ele tem 69 anos e uma dívida enorme para quitar. “Eu perdi metade de um carro por causa do fumo – vendi o carro para dar conta do negócio. Fiz as contas e acho que em 2024 termino de pagar esses juros. E aí chega. Não quero mais plantar. O fumo me quebrou.”
A queixa de Paulinho está longe de ser isolada. “Os donos das fábricas é que botam o preço. Eles avaliam o tanto de fumo que deu na região e ditam quanto vão pagar. A gente é obrigado a vender. Os atravessadores e os empresários ganham muito dinheiro em cima da gente”, avalia José Marques, de 50 anos, que planta fumo há 35. “É muito difícil.. Gastei R$ 10 mil na lavoura este ano e, quando vender, vou apurar em torno de R$ 16 a R$ 17 mil. E a gente ainda tem que guardar uma parte para investir na próxima safra. Mas na próxima eu não vou mais investir. Este foi o último ano que plantei. Até a terra vou vender, não tenho mais condições.”
O problema é que, para os agricultores familiares que querem mudar de atividade, há poucas opções economicamente viáveis – e eles não veem nenhum incentivo por parte do poder público.
Quando termina de falar conosco, José volta a circular pela feira. Mas retorna minutos depois, para arrematar: “Esqueci de falar uma coisa: o certo era o pequeno e médio produtores todos deixarem de plantar, e os empresários virem trabalhar na lavoura para saber o quanto isso custa de verdade. Para saber como é. Porque o pobre é quem levanta o rico.”