Delegado abre investigação e pede que coordenador militar explique “se houve degradação ou exploração ilegal de aproximadamente 170 hectares” da área indígena. Desmatamento foi documentado em matéria do Joio
A Polícia Federal abriu investigação preliminar sobre o desmatamento de 170 hectares da terra indígena Parabubure, localizada em Campinápolis, no leste de Mato Grosso. Em ofício datado de 5 de dezembro de 2022, a PF informa a Funai sobre a abertura de notícia-crime com base em reportagem publicada pelo Joio cerca de três meses antes.
Os questionamentos são endereçados ao então coordenador regional da Funai em Barra do Garças, o capitão da reserva Álvaro Luís de Carvalho Peres. O delegado Sinval Junior Pereira, hoje lotado em outra delegacia da PF, pede que o militar relate “se houve degradação ou exploração ilegal de aproximadamente 170 hectares” em Parabubure, uma terra do povo Xavante, e “informe se ocorreram consultas aos povos indígenas da região, bem como apresente atas ou documentos que eventualmente esclareçam o ocorrido”.
A reportagem do Joio esteve em Parabubure em junho do ano passado e documentou o desmatamento de uma área equivalente a 230 campos de futebol no interior da terra indígena, por parte da Prefeitura de Campinápolis, sem consulta à comunidade ou autorização da Funai e do Ibama.
Lideranças dos Xavante ouvidas pela reportagem estavam indignadas pelo fato de não terem sido consultadas. “A população daqui não foi consultada pela Prefeitura e pela Funai”, nos contou o cacique da aldeia principal de Parabubure, Xisto Paratse Nomotse, na ocasião.
Em entrevista para a mesma reportagem, o secretário de Assuntos Indígenas de Campinápolis (MT), Epaminondas Conceição, confirmou que a área havia sido desmatada pela prefeitura. Na versão dele, o local seria usado para produção de arroz e abastecimento interno da terra indígena. “É uma lavoura para atender realmente a necessidade do índio, para que eles possam ter uma vida mais tranquila”, disse.
Ele afirmou ainda que o desmate teria recebido autorização da Sema, a Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso, algo negado pelo órgão que, de todo modo, é incompetente para autorizar supressão de vegetação em terras da União.
Procuramos a Delegacia da Polícia Federal de Barra do Garças, mas o órgão afirmou que não comenta investigações em andamento. A Prefeitura de Campinápolis também foi procurada, mas não respondeu aos questionamentos enviados.
Álvaro Peres, coordenador instado pela PF a prestar esclarecimentos, foi exonerado do cargo em portaria publicada nesta segunda-feira (23) no Diário Oficial da União. A exoneração faz parte de um processo de “desmilitarização” da Funai iniciado pela nova chefe do órgão indigenista, Joenia Wapichana, como mostra reportagem da InfoAmazônia. O texto relata que no governo Bolsonaro, só 2 das 39 coordenações regionais eram chefiadas por servidores de carreira.
Entenda o caso
O desmate dos 170 hectares em Parabubure se deu em meio ao avanço do agronegócio em outra área dos Xavante. Em Sangradouro, terra localizada entre Primavera do Leste, Poxoréu e General Carneiro, fazendeiros firmaram “parceria”em 2020 com lideranças indígenas para a produção de soja e milho em uma área de 1.500 hectares – contratos iniciais, depois alterados, previam chegar a até 11 mil hectares, mais de 10% da área total de Sangradouro.
Segundo um dos fazendeiros, José Otaviano Ribeiro Nardes, o projeto Agro Xavante, também conhecido como Independência Indígena, foi uma ideia de Jair Bolsonaro. Conforme revelou o Joio, avisos da área técnica da Funai sobre irregularidades no projeto foram ignorados repetidamente pelo coordenador regional, Álvaro Peres, e pelo então presidente da Funai, o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier.
Além disso, o projeto contou com a colaboração do procurador federal Everton Pereira Aguiar Araújo, que se colocou a favor da iniciativa – mesmo que a Constituição seja explícita em dizer que as terras indígenas são de “usufruto exclusivo” dos povos indígenas.
Já em Parabubure, que fica a cerca de 300 km de Sangradouro, a Prefeitura de Campinápolis realizou o desmate sem haver, oficialmente, qualquer fazendeiro interessado no modelo de parcerias.
O então secretário de Assuntos Indígenas, Epaminondas Conceição, afirmou que a iniciativa foi uma demanda dos vereadores xavante Geninho Tseredzapriwe (PSDB) e Azevedo Tserebuto (Pros). “Esses vereadores foi que nos procuraram. Daí então a gente se reuniu com as lideranças, com os caciques, que representam as aldeias”. Logo após a publicação da reportagem, Epaminondas foi exonerado do cargo.
Outra liderança entusiasta do plantio em larga escala é José Acácio Serere Xavante. Ele foi suplente de vereador na vizinha Nova Xavantina. Em 2020, candidatou-se a prefeito em Campinápolis, tendo obtido 689 votos, contra 4.000 do eleito Zé Bueno (União). Em junho, ele conversou conosco em uma praça da cidade. “O branco muitas vezes pensa que o índio tem que ser pobre, que ele pode estar só cuidando da natureza. Ele pode só cantar, dançar, fazer ritual. E ele não pode ser milionário”, disse.
“[Pensam que] o índio não pode ser agricultor. O índio não pode ser fazendeiro. O índio não pode ser capitalista. O índio tem que ser índio como é, mas como se fosse um, não um ser humano, desvalorizando a sua intelectualidade, o seu crescimento de capacidade humana. O índio não pode criar bomba atômica”
Meses depois, em dezembro, Serere teve a prisão decretada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, por envolvimento nos atos golpistas e de contestação à vitória de Luiz Inácio Lula da Silva. Em um vídeo publicado em redes sociais, ele diz que Moraes fraudou as eleições e cobra que o Exército realize a prisão do ministro.