Mortalidade infantil entre indígenas da etnia Xavante é cinco vezes a média nacional e se aproxima dos Yanomami

Dados obtidos com exclusividade pelo Joio também mostram altos índices de desnutrição infantil. Monocultura avança sobre territórios e afeta saúde dos indígenas do Mato Grosso

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Os Xavante, uma numerosa etnia indígena concentrada em nove terras demarcadas no estado de Mato Grosso, têm uma taxa de mortalidade infantil cinco vezes maior do que a média brasileira. 

Em 2022, faleceram 70 crianças Xavante com até um ano de idade, dentre 966 crianças nascidas vivas no mesmo período. A média brasileira é cinco vezes menor: em 2019, segundo o Ministério da Saúde, ocorreram 13 mortes para cada mil crianças nascidas vivas. 

Comparados com os Yanomami, que vivem uma crise sanitária de grandes proporções e cujos dados o Joio também obteve, os Xavante não ficam muito atrás. A etnia registrou 75 óbitos para cada mil nascidos vivos em 2022.

Índices de desnutrição infantil também são altos. O Ministério da Saúde anotou que 5% das crianças Xavante de até quatro anos de idade apresentavam desnutrição em 2021. A título de comparação, o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani), coordenado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, apontou que 2,9% das crianças brasileiras de até cinco anos estavam abaixo do peso ideal no ano de 2019.

Chama atenção que, para os Yanomami, as planilhas fornecidas à reportagem registrem índices menores que a média nacional. Segundo esses dados, apenas 0,7% das crianças Yanomami de até quatro anos – 23 dentre 3033 – estariam com quadro de desnutrição em 2021. O material entra em contradição com informações fornecidas pelo próprio Ministério da Saúde à Rede Globo, em fevereiro, que apontavam taxa de desnutrição de cerca de 56% para crianças de até cinco anos naquele ano.

Os dados obtidos pelo Joio são da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde e foram obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI). Como são referentes ao ano passado, as planilhas alertam que ainda pode haver revisão das informações.

Para Maria Augusta Assirati, que presidiu a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) entre 2013 e 2014, os indicadores são um retrato da “inação completa” da Sesai durante o governo de Jair Bolsonaro. 

“O contato com os Xavante [feito ainda nos anos 40] aconteceu para viabilizar a exploração econômica da região e a aculturação destes povos, então o histórico já é muito negativo”, diz ela. “Mas a gente teve nos últimos quatro anos uma política expressamente anti-indigena, voltada para o extermínio desses povos.”   

Emergência sanitária

O governo federal de Getúlio Vargas buscou contato com os Xavante a partir dos anos 30, por meio de missionários, porque desejava “pacificar” os indígenas para poder explorar economicamente a região. Os Xavante resistiram, e várias expedições terminaram em mortes, até que, em 1946, esse povo indígena decidiu iniciar o contato com o Serviço de Proteção ao Índio. 

“O governo deixou de proteger os territórios e paralelamente deixou de investir na atenção à saúde indígena”, continua Assirati. “Esses dois pilares, aliados, estão se revelando nessa condição de emergência sanitária completa que vemos hoje.”

A expansão das fronteiras agrícolas por Mato Grosso afetou as terras indígenas dos Xavante. Hoje, muitos territórios estão cercados por fazendas de pecuária, soja, milho e algodão, ou por projetos de infraestrutura, como pequenas centrais hidrelétricas e rodovias. 

Em junho do ano passado, o Joio percorreu três das nove terras Xavante, e é consenso entre as dezenas de pessoas entrevistadas que o modo de vida tradicional – em especial a coleta e a caça – se viu prejudicado pelo entorno. 

Em alguns casos, os Xavante chegaram a ser expulsos das próprias terras, e apenas após algumas décadas puderam retomar as áreas. É o caso da terra indígena Marãiwatsédé, que viu o retorno de seus ocupantes originais apenas no ano 2000, depois de quatro décadas de luta. 

A homologação e a desintrusão da TI ocorreram apenas em 2013, o que não garantiu o fim das invasões – como mostram os casos recentes arrendamento da área para criação de gado. A cobertura vegetal nunca mais se recuperou: dados de satélite da plataforma MapBiomas mostram que há apenas 50 mil hectares de florestas, contra 110 mil hectares de pastagens. 

Na Terra Indígena Sangradouro, mais ao sul no estado de Mato Grosso, indígenas e fazendeiros tentaram implementar um projeto de monocultivo que, com apoio firme da Funai sob Bolsonaro, conseguiu produzir três mil toneladas de soja e arroz no interior da Terra Indígena antes de ser embargado pelo Ibama, por desmatamento ilegal. Ainda é incerta a posição do governo Lula sobre o tema.

Quadro de abandono

Profissionais da Sesai que atuam na área confirmam o quadro de abandono durante o governo Bolsonaro. Uma enfermeira ouvida pelo Joio sob condição de anonimato reclamou, em novembro do ano passado, que a terra indígena onde atua estava há dez meses sem um profissional médico. “No governo Bolsonaro não tem medicamento e os profissionais da Sesai são humilhados”, contou.

“A situação está precária, muito em função dos cortes no orçamento”, comentou outro profissional com atuação entre os Xavante, na mesma época. “Falta pessoal, falta medicamento.” 

Ele relatou que o sulfato ferroso, usado para suplementação das crianças com quadro de desnutrição, estava em falta. Em 2023, o orçamento destinado à saúde indígena, deixado pelo Governo Bolsonaro, será o menor em dez anos. Desde 2017 as verbas vêm caindo gradualmente. 

Mas o quadro não é recente. Dados do Censo IBGE 2010, até hoje o único a fazer uma radiografia completa de indicadores de saúde indígena, mostram que no início da década passada crianças indígenas tinham 60% mais chances de falecer antes do primeiro ano de vida do que crianças não-indígenas. Entre 2002 e 2012, a taxa média anual de mortalidade infantil dos Xavante era ainda maior, com 94 óbitos por mil nascidos vivos, segundo a Sesai.

Dados subnotificados

A pesquisadora Aline Alves Ferreira, que tem estudos sobre saúde de crianças Xavante pela Fiocruz e é professora-adjunta do Instituto de Nutrição Josué de Castro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que os registros estejam subnotificados. “Os dados da Sesai são muito fragmentados e não são alimentados com a frequência ideal”, diz. “A maioria das vezes que comparei informações do sistema com aquelas colhidas em trabalho de campo, as informações não batiam.” 

“Infelizmente não me causam surpresa”, diz ainda, sobre os dados. “São situações que nem precisariam acontecer, ou que poderiam ter intervenções mais rápidas, como uma diarréia, e acabam resultando em morte por falta de acesso à saúde.” 

Félix Tseredze, vice-presidente da Associação Wara, uma das muitas organizações criadas para representar o povo Xavante, reclama da falta de acompanhamento apropriado, tanto nas casas de saúde indígenas (Casais), quanto pelos profissionais de assistência social, também vinculados à Sesai. 

Para ele, parte do quadro é responsabilidade dos indígenas. “Falta organização dos Xavante para discutir como melhorar a nossa saúde”, completa. “Por que está dessa maneira? Como ficou essa situação? Nunca o Xavante discutiu internamente. Nossa organização social foi destruída desde o contato, quando o branco exterminou, estuprou e nos expulsou dos territórios.”

Hoje, diz a liderança, os projetos de agricultura em terra indígena contribuem para aumentar essa divisão. “Uma parte de nós quer ficar no território, e outra parte quer vender a terra”, afirma. 

A professora Ferreira, da UFRJ, aponta que proximidade das terras Xavante com projetos de infraestrutura e com lavouras de commodities pode ser um fator importante para determinar o estado de saúde das populações, uma vez que esses empreendimentos pressionam os territórios, espantando a caça e poluindo os rios.

Ferreira argumenta que, entre as medidas necessárias para melhorar os indicadores de saúde entre os indígenas, seria importante voltar a proteger a integridade dos territórios e valorizar os funcionários da Sesai.

“Saúde é território”, diz Assirati, a ex-presidente da Funai, “Os diversos órgãos públicos precisam estar atentos às fragilidades decorrentes das pressões territoriais e cooperando entre si para superá-las.”

Por Marcos Hermanson

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