Investigação do Joio rastreia caminho do produto até a corporação suíça. Marca tem a atriz norte-americana Jennifer Aniston como garota-propaganda e diretora criativa
O cheiro ruim anuncia a proximidade dos caminhões. Eles estão carregados de peles, que foram retiradas de carcaças de gado abatido dias antes. Moscas seguem os veículos, provavelmente atraídas pelo forte odor enjoativo e pelo líquido putrefato que goteja pelas frestas dos automóveis não climatizados.
A cena não é bonita. Tampouco parece ser a vida dos moradores do bairro semi-industrial de Arcadas, em Amparo, no estado de São Paulo. É para lá que os caminhões seguem – e onde o odor de carcaça deteriorada se transforma em um muito mais disperso cheiro nauseante de pele de animal cozida.
Isso porque opera no bairro a fábrica da Rousselot, uma empresa pertencente à norte-americana Darling Ingredients, e que é especialista na extração de gelatina e colágeno, que podem ser obtidos em peixes, porcos e bovinos. A proteína, que se tornou peça fundamental de suplementos de saúde, está no coração de uma verdadeira febre de promessas para uma vida saudável.
Enquanto seus consumidores mais fiéis clamam pelos benefícios da proteína na melhora do cabelo, da pele, das unhas e das articulações, ou mesmo em retardar o processo de envelhecimento, a substância tem um efeito duvidoso na saúde do planeta. Por trás da popular versão “bovina” do colágeno, existe uma indústria pouco transparente que impulsiona o desmatamento e alimenta a violência contra populações indígenas na Amazônia e no Cerrado.
Uma investigação conduzida em parceria por O Joio e O Trigo com The Bureau of Investigative Journalism, com o jornal britânico The Guardian e com a também britânica rede televisiva ITV revela que dezenas de milhares de cabeças de gado criadas em fazendas envolvidas em desmatamento da Amazônia e do Cerrado foram abatidas em grandes frigoríficos ligados à cadeia internacional de colágeno.
Nossa investigação conseguiu rastrear o caminho de parte deste colágeno até a multinacional suíça Nestlé, que comercializa a proteína pela marca Vital Proteins, um fenômeno de vendas que conta com a atriz Jennifer Aniston como diretora criativa e garota-propaganda. No Brasil, a Vital Proteins é vendida em diversas farmácias e pode ser encontrada com facilidade. Mundo afora, pode ser comprada online, pela Amazon, e em supermercados como Walmart e Costco nos Estados Unidos, e Holland & Barrett e Boots no Reino Unido.
Esta é a primeira grande reportagem a conectar a produção de colágeno bovino com desmatamento da Amazônia e do Cerrado e violência contra povos indígenas. Nossa investigação, em parceria com a organização Center for Climate Crime Analysis (CCCA), encontrou pelo menos 2.600 km² de desmatamento desde 2008 ligados à cadeia de suprimentos de duas empresas localizadas em território brasileiro com conexões com a norte-americana Darling: a já mencionada Rousselot e a Gelnex, em processo de aquisição pela empresa.
De acordo com a análise realizada em parceria com o CCCA, a maior parte dos casos analisados são de fornecedores indiretos dos abatedouros da JBS, em Marabá, no Pará, e em Araguaína, no Tocantins, e da Minerva no mesmo município. A maior parte das fazendas fornecedoras envolvidas em desmatamento estão localizadas nos estados do Pará e no Tocantins, incluindo municípios visitados pela reportagem, como Marabá e Bom Jesus do Tocantins.
Ainda não está claro o percentual exato de colágeno produzido no Brasil e destinado à Vital Proteins. O que se sabe é que a Nestlé, e sua marca Vital Proteins, compram colágeno da Darling Ingredients, cuja empresa no Brasil, a Rousselot, compra parte de sua matéria-prima da Marfrig.
Em setembro de 2022, o Joio, em parceria com o The Bureau of Investigative Journalism e o The Guardian, publicou uma investigação inédita, que aponta que uma fazenda dentro de território reivindicado pelo povo indígena Mỹky, no Norte do estado do Mato Grosso, forneceu gado para abatedouros da Marfrig listados como fornecedores da Nestlé pela multinacional suíça.
Fornecimento responsável?
A Darling Ingredients disse à reportagem que a empresa e sua subsidiária Rousselot monitoram seus fornecedores, e removem aqueles que não atendem aos critérios de fornecimento responsável. Um porta-voz acrescentou ainda que as empresas “desempenham um papel crucial” na “coleta e reaproveitamento de subprodutos animais que, de outra forma, seriam descartados”.
Ele também disse que não poderia comentar sobre a Gelnex, já que a aquisição, ocorrida em outubro de 2022, ainda não foi finalizada. A Darling ofereceu 1,2 bilhão de dólares pela compra de todas as ações da Gelnex no ano passado.
Em uma recente chamada com investidores, o CEO da Darling Ingredients, Randall C Stuewe, disse que a aquisição da Gelnex aumentaria enormemente a produção de colágeno da empresa. A previsão é que o colágeno da Gelnex integre a cadeia da Darling Ingredients na segunda metade deste ano.
A Gelnex vende colágeno para produtos de saúde, ingredientes alimentícios e outros fabricantes em todo o mundo, incluindo mercados na Austrália, Nova Zelândia e Rússia. Muitas vezes para produtos de marca própria.
A reportagem foi até a sede da empresa, em Araguaína, no Norte do Tocantins, para entender a cadeia de suprimentos da Gelnex. A empresa obtém matérias-primas da Durlicouros, um fabricante de couro localizado na cidade vizinha de Wanderlândia, que limpa as peles e as prepara para a produção de couro. Nesta fase, para evitar que as peles cruas apodreçam antes de serem processadas, elas são frequentemente tratadas com alvejante ou outros produtos químicos. Apesar do tratamento químico, foi justamente o cheiro forte que permitiu a reportagem literalmente farejar os caminhões chegando até a fábrica da Gelnex, e daí entender sua procedência.
A Durlicouros, por sua vez, obtém as peles de gado dos abatedouros da JBS e da Minerva, de acordo com várias entrevistas com caminhoneiros e outras fontes locais.
Centenas desses animais são criados em fazendas que pressionam a Terra Indígena Mãe Maria, no sudeste do Pará, e invadem outras terras indígenas.
Uma indústria obscura
Estima-se que a indústria do colágeno como um todo valha quase 4 bilhões de dólares por ano. O colágeno bovino é frequentemente chamado de um subproduto da pecuária – atividade que no Brasil responde por 80% de todo o desmatamento da Amazônia.
Mas “subproduto” é um termo equivocado, segundo a Environmental Investigation Agency (EIA, na sigla em inglês), um grupo de advocacy ambiental com sede em Londres, na Inglaterra. “Eu não chamaria nada disso de subproduto. As margens para a indústria da carne são bastante apertadas, então, todas as partes vendáveis do animal são incorporadas ao modelo de negócios”, disse Rick Jacobsen, gerente de política de commodities da EIA.
As partes do gado que não a carne respondem por pouco menos da metade do peso de uma vaca abatida, e podem gerar até um quarto da renda dos frigoríficos, de acordo com estimativas da Bain & Co, um grupo de pesquisa de mercado. De longe, o mais valioso dos chamados “subprodutos” é a pele do boi, usada tanto para fazer couro quanto colágeno.
Diferentemente de commodities como a carne bovina, a soja e o óleo de palma, o colágeno não está previsto na futura legislação de Devida Diligência (Due Diligence Legislation, em inglês) da União Europeia e do Reino Unido. Esta nova legislação pretende combater o desmatamento ao impedir a importação de produtos cuja produção gere impactos ambientais ou esteja envolvida em violações de direitos humanos. Ou seja, as empresas de colágeno não teriam, de acordo com estes mecanismos, a obrigação de rastrear seus impactos ambientais.
“É importante garantir que as novas regulamentações cubram todos os principais produtos que podem estar ligados ao desmatamento”, disse Jacobsen, da EIA.
Desmatamento e violência acompanham expansão da pecuária
A maior parte do desmatamento ligado à pecuária no Brasil pode ser atribuída a fornecedores indiretos das empresas, de acordo com Ricardo Negrini, procurador da República do Ministério Público Federal no estado do Pará, e que monitora os compromissos climáticos das empresas processadoras de carne bovina. O gado é frequentemente transferido de fazenda para fazenda para diferentes estágios de criação, de tal modo que uma vaca nascida em uma terra ilegal, recentemente desmatada, pode ser engordada para abate em uma fazenda “limpa”. Trata-se de uma espécie de ‘lavagem do gado’. Embora, para Negrini, hoje todos os frigoríficos tenham capacidade de rastrear a origem do gado que compram.
Com as vendas de carne bovina, couro e colágeno em alta, mais e mais florestas foram derrubadas e substituídas por pastagens para gado nos últimos anos. Não raro, são terras obtidas de modo ilegal. A certeza da impunidade para grilagem de terras durante o governo de Jair Bolsonaro também alimentou ataques a comunidades tradicionais. Em 2021, terceiro ano de presidência do mandatário de extrema-direita, foram 305 invasões de Terras Indígenas. Isso é três vezes mais do que os números de 2018, conforme dados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Entre os locais onde o avanço da pecuária na Amazônia está particularmente vinculado ao desmatamento e a formas de violência estão as regiões Sul e Sudeste do Pará. Para o advogado José Batista Afonso, há décadas na Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Marabá (PA), o que acontece nessas regiões oferece uma imagem de como seria a Amazônia se a pecuária continuasse a se expandir sem controle.
“Essa região aqui, até a década de sessenta, era uma típica região amazônica, ocupada basicamente por indígenas, comunidades ribeirinhas, pescadores, coletores, principalmente castanheiros. E rapidamente, diria assim, historicamente é um período curto, meio século mais ou menos (…) a floresta foi totalmente destruída e transformada em pastagem para a criação do gado”, afirma Batista.
De acordo com ele, foi a instauração de grandes frigoríficos na região que viabilizou a exportação de carne na região, superando problemas de baixa qualidade sanitária e o controle de doenças nos rebanhos: “Isso provocou uma intensificação da criação de gado: criação extensiva e ampliação das áreas. Então o gado passou a pressionar mais ainda aqueles municípios onde ainda havia floresta não derrubada”, afirma o advogado.
Dados obtidos pela reportagem junto ao IBGE e ao MapBiomas evidenciam esta correlação entre desmatamento e aumento da criação de gados no Sudeste do Pará. Os municípios de Tucuruí, São Félix do Xingu, Parauapebas, Marabá, Redenção e Conceição do Araguaia são os seis principais do Sudeste paraense.
Enquanto isso, a área de floresta nestes seis municípios, de acordo com dados obtidos no MapBiomas, caiu de um total de cerca de 10,7 milhões de hectares em 1990 para cerca de 8,2 milhões de hectares em 2019. E a área de pastagem passou de 617 mil hectares em 1990, para 3,1 milhões em 2019. É, literalmente, o gado comendo a floresta. Ou melhor, o gado comendo o capim que cresce sobre as ruínas das florestas que os fazendeiros desmataram.
De acordo com os dados da Pesquisa da Pecuária Municipal, do IBGE, em 1990 (primeiro ano de dados disponível da região) existiam 3,8 milhões de cabeças de gado no Sudeste do Pará. Em 2019, este número passou para 13,9 milhões.
“Nós, os povos indígenas, estamos sendo cercados”
“Eles [os fazendeiros] destroem o que é deles, e vêm invadir o que é nosso. Eu não consigo entender por que eles destroem tudo”, afirma a cacica Kátia Silene Akrãtikatêjê.
Kátia Akrãtikatêjê é a primeira mulher a se tornar cacica do povo Gavião, e uma das principais lideranças da Terra Indígena Mãe-Maria, localizada no município de Bom Jesus do Tocantins, no sudeste do Pará. Este é o único território verde, de floresta preservada pelos indígenas, entre quilômetros e quilômetros de pastos e algumas palmeiras de babaçu que servem de sombra ao gado.
A cacica faz questão de mostrar a exuberância deste território, e o contraste com os pastos que sitiam a Terra Indígena. Por isso, concedeu a sua entrevista mata-adentro, caminhando, apontando para a variedade de árvores, as frequentes castanheiras e brincando com o que seria xixi de onça. Em outros momentos de descontração, ela nos diz os nomes em Gavião de animais como tamanduá, anta, onça, entre outros.
Ela defende seus pontos com força, como alguém que sabe ter razão e explica ao outro a irracionalidade, o absurdo da situação. “Nós, povos indígenas, estamos sendo cercados, sufocado numa ilha”, reflete a cacica acerca do processo histórico de confinamento de três distintos povos nesse território (Gavião Akrãtikatêjê, Gavião Kyikatejê e Gavião Parkatêjê). Um processo que se intensificou durante a ditadura civil-militar e se atualizou nas últimas décadas com o cercamento do território pelas fazendas de gado. Além da pressão da pecuária, obras de infraestrutura, como rodovias, a ferrovia para escoamento de minério da Vale e linhões elétricos cruzam o território Gavião.
A estrada entre a cidade de Marabá e a Terra Indígena Mãe-Maria possui um intenso fluxo de caminhões boiadeiros. A placa que indica a entrada em área indígena dá uma dimensão do clima de violência: ela está toda cravejada de balas. E, por vezes, essas ameaças de fazendeiros locais tomam formas ainda mais concretas e violentas. Em setembro do ano passado, uma vila inteira foi incendiada. Uma escola, dezenas de casas e um pedaço de floresta foram reduzidos a cinzas. O incêndio não foi acidental, dizem os indígenas, e a comunidade ainda vive com medo.
“Nenhuma expansão, do modo como ocorre a pecuária na Amazônia, pode se dar sem violência”, reflete Bruno Malheiro, geógrafo e professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Para o pesquisador, “um frigorífico, não é só um frigorífico, é uma cadeia de relações”.
Ele explica como essa conversão de um território repleto de florestas e pessoas depende de distintas formas de violência para acontecer. Segundo o professor, para garantir a rentabilidade destes frigoríficos, “é preciso uma quantidade muito grande de boi. E essa quantidade não está disponível num primeiro momento, da instalação [destes frigoríficos]. Então vai produzir um processo de interiorização e de expansão dessa frente do gado”, afirma Malheiro.
Malheiro ressalta ainda que, para os indígenas Gavião, a luta pelas florestas onde caçam, pescam, cultivam e coletam sementes vem acompanhada de ameaças e tentativas de invasão. A partir de junho de 2022, o território Gavião passou a ser sobrevoado por drones. Sempre à noite. Acontecimentos que foram interpretados pelos indígenas, após seguirem os drones até a estrada e verificarem a presença de caminhonetes brancas, como mais uma ameaça de fazendeiros aos seus territórios.
Nos meandros da cadeia de suprimentos
A cadeia de suprimento para colágeno bovino no Brasil é altamente complexa, envolvendo inúmeros intermediários na aquisição e no processamento do gado.
A marca “Peptan” da Rousselot é a líder mundial de colágeno bovino. Colágeno este que é exportado para os EUA e para a Europa. Para fabricar o seu produto, a Rousselot obtém aparas e raspas de couro bovino de um curtume chamado BluBrasil. Este, por sua vez, está localizado dentro de um complexo da indústria pecuária arrendado pela Marfrig em Bataguassu, no Mato Grosso do Sul.
A Marfrig é o segundo maior frigorífico do Brasil. E fornecedores deste abatedouro específico foram ligados ao desmatamento do Cerrado e Pantanal e à invasão de territórios indígenas.
Em 2021, o frigorífico comprou animais da fazenda Campanário, uma grande propriedade que adentra os limites da Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá I, do povo Guarani Kaiowá em Laguna Carapã, também no Mato Grosso do Sul. A área é conhecida por seu elevado índice de violência contra os indígenas.
A Marfrig disse à reportagem que apenas uma pequena parte da propriedade está sobreposta ao território indígena. E que para a empresa este território não é totalmente reconhecido como indígena. O proprietário da fazenda Campanário não respondeu ao pedido de comentários da reportagem.
Um relatório do Greenpeace de 2021 também descobriu que a mesma planta da Marfrig estava ligada ao desmatamento do Pantanal. A Marfrig confirmou que o fornecedor em questão estava registrado como “indireto”, mas afirmou que ele estava em conformidade com as políticas da empresa na época.
A Marfrig acrescentou ainda que o monitoramento de fornecedores indiretos é “um dos maiores desafios da cadeia pecuária brasileira”, mas trabalha “continuamente para mitigar qualquer vínculo entre o desmatamento ilegal e outras irregularidades em sua cadeia produtiva, tanto na Amazônia quanto nos demais biomas “.
Outro lado
O curtume DurliCouros, fornecedor da Gelnex, disse que a empresa segue “todos os requisitos legais e atendemos aos mais rígidos padrões nacionais e internacionais relacionados à sustentabilidade”.
A BluBrasil não respondeu à reportagem. Tanto a DurliCouros quanto a BluBrasil foram classificadas no nível “ouro” na avaliação do Leather Working Group (LWG), associação do setor que afirma auditar a sustentabilidade dos membros. A LWG disse à reportagem que este é um “assunto complexo” e que está trabalhando para que suas empresas associadas atinjam um patamar de desmatamento zero até 2030.
A JBS disse que, embora houvesse desmatamento em algumas das fazendas na Amazônia identificadas pela investigação, suas compras estavam “totalmente compatíveis” com os protocolos de aquisição e monitoramento, e que em outros casos mencionados, as propriedades haviam aderido a seus padrões.
Terceiro maior frigorífico do Brasil, a Minerva disse que trabalha para garantir que o gado adquirido não venha de propriedades com áreas desmatadas ilegalmente, acrescentando que monitora “100% dos fornecedores diretos”.
A Nestlé disse que a Vital Proteins tem o compromisso de fornecer peptídeos de colágeno de alta qualidade e que as informações apresentadas pela reportagem não condizem com seus padrões de compra reponsável. A gigante de alimentos acrescentou que está tomando medidas para garantir que seus produtos estejam livres de desmatamento até 2025.
A reportagem teve acesso a uma carta enviada pela Nestlé a seus clientes, na qual a empresa afirma que a Vital Proteins vai encerrar as compras de matérias-primas provenientes da Amazônia imediatamente.
A atriz Jennifer Aniston, por sua vez, pediu que os questionamentos fossem encaminhados à Nestlé.
Essa reportagem foi produzida com o apoio do Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center.