Distribuição de terras foi mencionada pelo grupo de transição de governo, mas não tem aparecido nos discursos do presidente e tampouco tem recursos à disposição. Mudanças na estrutura fundiária e no papel global do Brasil colocam novos desafios
Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto num domingo ensolarado, dia 1º de janeiro de 2023. Em frente a uma multidão de 150 mil pessoas, mencionou a palavra “fome” nove vezes. Chegou a chorar quando lembrou da outra multidão, a dos miseráveis que ocupam as ruas do país pedindo ajuda para comprar um prato de comida.
Mas se a ênfase dada ao combate à fome – que atravessou campanha, posse e início de governo – chamou atenção, também é notável que o presidente tenha mantido silêncio sobre a expressão “reforma agrária”.
Naquele dia 1º de janeiro, nos seus discursos na tribuna da Câmara e no parlatório do Palácio, Lula falou brevemente em fortalecer a agricultura familiar e a produção de alimentos, mas não falou em reforma agrária. O arquivo de discursos oficiais, disponível no site do Palácio do Planalto, registra que o presidente tampouco usou a expressão em seus pronunciamentos desde então.
Talvez o silêncio tenha, no fundo, razões orçamentárias. Por mais que tenha havido uma recomposição do investimento em programas voltados à agricultura familiar – como o de Alimentação Escolar (PNAE) e o de Aquisição de Alimentos (PAA) – as rubricas da reforma agrária seguem com o cobertor curtíssimo deixado pelo governo Bolsonaro no ano passado.
A dotação orçamentária “aquisição de terras para reforma agrária” terá apenas R$ 2,4 milhões no orçamento de 2023, enquanto a concessão de crédito e assistência às famílias assentadas terá R$ 48 milhões – muito aquém do R$ 1 bilhão requisitado pelo Grupo de Trabalho (GT) de Desenvolvimento Agrário do Governo de Transição para cada uma das ações.
Segundo fontes ouvidas pelo Joio, o aperto orçamentário dificulta muito a promessa de Lula de eliminar a fome durante o mandato. Combate à fome e realização da reforma agrária, dizem, são dois lados da mesma moeda.
“Dá pra comer, dá pra aplicar medidas paliativas”, argumenta a assentada Ceres Hadich, que integra a Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), “mas não dá para acabar com a fome”.
O argumento é que, se for mantido o mesmo padrão de alta concentração fundiária, com grandes porções de terra dedicadas exclusivamente à pecuária e à produção de soja, milho e cana-de-açúcar, é improvável que o governo consiga assegurar oferta barata e abundante de alimentos saudáveis para a população. “Erradicar a fome passa por repensar tanto a estrutura fundiária no campo quanto na cidade”, completa Hadich.
De acordo com o Censo Agropecuário de 2017 do IBGE, o índice de Gini rural (indicador utilizado para medir a desigualdade no campo) do Brasil chega a 0,86. É um dos mais altos do mundo. E permanece inalterado há pelo menos quarenta anos.
Conforme outro levantamento, este realizado pela Imaflora com base na mesma pesquisa do IBGE, 10% das propriedades rurais ocupam 73% da área agrícola do Brasil, enquanto os restantes 90% ocupam somente 27% das terras.
Ao mesmo tempo, a figura histórica do latifúndio improdutivo, que era o alvo dos movimentos de ocupação, hoje convive com latifúndios altamente produtivos, voltados à exportação, mas que de todo modo não contribuem para a segurança alimentar da população.
O professor e pesquisador Marco Aurélio Arlindo, doutor pela Universidade Estadual de Londrina com uma tese sobre a produção de alimentos em assentamentos agrários da região de Andradina (SP), reforça o argumento.
“O combate à fome passa pela democratização da terra”, afirma. “A agricultura capitalista, caracterizada pelas grandes propriedades e pela produção de commodities, não consegue abastecer a população.”
Arlindo descobriu que as políticas de reforma agrária aplicadas em Andradina – por mais que não tenham alterado significativamente o grau de concentração fundiária da região – criaram uma dinâmica virtuosa de produção, consumo e atendimento à população vulnerável.
“Com as compras públicas de alimentos destinadas às escolas e instituições de caridade, a população pobre da região foi atendida”, explica. “Ao mesmo tempo, a renda que entrava nos assentamentos gerou aquecimento do comércio local e expansão da capacidade produtiva, beneficiando as cidades da região com uma disponibilidade maior de alimentos frescos, saudáveis, sem veneno.”
Mas dados do IBGE mostram que, ao contrário do que se passou em Andradina, a produção de alimentos básicos vem caindo ano a ano no Brasil, perdendo espaço para as commodities.
Entre 1991 e 2021, a produção per capita de mandioca diminuiu 47%, a de feijão, 26%, e a de arroz, 13% – o que ajuda a explicar uma inflação de alimentos que só no ano passado bateu os 12%. Nesse mesmo período, a produção per capita de soja cresceu impressionantes 600%.
A redução na safra de alimentos básicos convive com o aumento da fome, agravado pela pandemia de Covid e pela Guerra da Ucrânia.
Segundo dados da Rede Penssan, formada por pesquisadores em segurança alimentar, a fome atingia, em 2022, 33 milhões de brasileiros, cerca de 15% da população total do país, com indicadores ainda piores no campo – 22% dos produtores rurais em estado de insegurança alimentar grave (fome).
A professora Vanilde Esquerdo, que é docente da Faculdade de Engenharia Agrícola da Universidade Estadual de Campinas, coordenou em 2014 uma revisão bibliográfica que mostra melhora nos índices de segurança alimentar entre assentados da reforma agrária em comparação com o período anterior a sua fixação na terra.
A professora defende medidas como a limitação de tamanho para propriedades do campo e a atualização dos índices de produtividade rural – que definem quais terras são improdutivas e, portanto, passíveis de redistribuição pelo Estado.
No Brasil, a política de reforma agrária é garantida pelo Artigo 184 da Constituição, que determina a desapropriação de propriedades rurais improdutivas ou que não cumpram função social.
São consideradas improdutivas, pela Lei 9.629/93, aquelas propriedades que não atingem o “grau de eficiência” previsto nos índices de produtividade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra. O problema é que esses índices estão congelados desde a década de 70.
Nesse período, a produtividade agrícola brasileira cresceu 400%, o que significa que propriedades com baixíssima produção – para parâmetros atuais – podem ainda ser consideradas “produtivas” pelo Estado, impedindo sua desapropriação.
Nas condições atuais, a professora Esquerdo não acredita que haja espaço para execução das políticas defendidas por ela. “Está mais difícil falar de reforma agrária hoje do que em 2003”, avalia. “A bancada ruralista é muito grande e ativa.”
Ainda assim, as propostas são compartilhadas pelo GT de Desenvolvimento Agrário do Governo de Transição, cujo documento final foi obtido pelo Joio.
O texto, construído por ex-ministros, representantes de movimentos sociais e pesquisadores entre o segundo turno das eleições e a posse de Lula, constata o desmonte vivido pelas políticas voltadas à reforma agrária desde 2016 e defende medidas como a criação de uma Política Nacional de Abastecimento – com a retomada dos estoques públicos de alimentos – a reformulação do Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) com condições de crédito mais favoráveis aos pequenos produtores e uma recomposição do quadro de funcionários do Instituto Nacional de Reforma Agrária, o Incra, que perdeu quase metade dos servidores desde 2014.
O documento fala ainda em retomar o Programa de Cisternas e atualizar os já mencionados índices de produtividade rural. Mas a pergunta permanece: com orçamento tão apertado, como levar adiante essas sugestões?
Em entrevistas à imprensa, o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, tem reconhecido as restrições orçamentárias. Ele sugere como alternativa que se faça a distribuição de terras por adjudicação, ou seja, expropriando proprietários que tenham dívidas com a União.
Teixeira também chamou de “papel de pão” os títulos concedidos pelo governo Bolsonaro a assentados por meio do Titula Brasil – programa que mereceu uma série de reportagens do Joio no ano passado, por seus conflitos de interesse. Na argumentação do ministro, os títulos são precários e carecem de valor jurídico.
Ceres Hadich, do MST, minimiza o problema orçamentário – “sempre teve pouco dinheiro”, diz – e afirma que mesmo integrando o governo, o movimento continuará em mobilização pela efetivação da reforma agrária.
“O MST sempre entendeu que a luta social precisava se conjugar com a institucionalidade”, argumenta. “Há companheiros destacados para compor o governo, mas a mobilização vai se manter, incluindo a ocupação de terras e outras formas de luta que se mostrarem necessárias”.
De fato, o MST já dá sinais de que seguirá fazendo pressão. Na semana passada, o coordenador nacional do movimento, João Paulo Rodrigues, criticou a demora do Governo Federal em nomear um novo presidente para o Incra. “Começando a acender a luz amarela”, escreveu em uma rede social. “Até agora o governo federal não nomeou a direção do Incra, que tem a responsabilidade de cuidar de todas as áreas de implantação do programa de reforma agrária. Nem precisamos lembrar a importância deste órgão para o povo do campo”.
Nesta segunda-feira (27) o governo finalmente fechou questão em torno do tema e nomeou o servidor de carreira César Aldrighi, que ocupava a presidência do instituto de forma interina. A decisão contrariou indicação anterior do movimento sem-terra, que queria a sergipana Rose Rodrigues no cargo.