Em discussão sobre tributação de cigarros, BAT Brasil e Philip Morris correm em direções opostas. Por quê?
Se a gente pensa na indústria do fumo, pode imaginar um bloco homogêneo, com grandes empresas reunidas em torno dos mesmos interesses. A realidade, porém, é mais complicada do que isso. É claro que as líderes do ramo têm mesmo muito em comum: querem driblar programas de controle do tabaco, maximizar seus lucros e passar a imagem de que são socialmente responsáveis. Acontece que essas empresas são concorrentes umas das outras e, no lobby por certas pautas, elas podem firmar posições opostas.
Uma dessas pautas é a tributação dos cigarros. Em 2019, o então ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro criou um grupo de trabalho (GT) para avaliar a redução na tributação de cigarros fabricados no país. O GT deveria ver, entre outras coisas, se isso ajudaria a diminuir o contrabando (contamos a história desse grupo aqui).
As duas maiores empresas do setor no país se manifestaram imediatamente. A BAT Brasil (antiga Souza Cruz) disse apoiar “tanto a criação de forças-tarefa de combate ao contrabando, quanto a revisão do atual modelo tributário aplicado a cigarros no Brasil”. Já a Philip Morris afirmou que o combate ao contrabando “não deveria passar por alternativas que possam resultar na redução de tributos e de preços, aumentando o acesso da população de baixa renda a um produto como o cigarro”.
O antagonismo pode ter soado estranho para quem não segue de perto os passos dessas empresas. Parecia até que, de repente, a Philip Morris tinha ficado preocupada com o aumento do tabagismo na população, enquanto só a BAT Brasil pensava mais no próprio bolso do que nas pessoas. Mas não era bem assim. E, na verdade, o racha era esperado: “Isso não me surpreende nada”, revela o economista Roberto Iglesias, ex-coordenador da Unidade de Economia do Controle do Tabaco da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Ele conta que, quando se trata de discutir impostos, há muito tempo existe mesmo essa diferença de postura entre as gigantes do tabaco no Brasil. A razão é mercadológica: tem a ver com o tipo de cigarro que cada empresa vende, com o público-alvo que elas miram, e com o quanto a tributação afeta o lucro nas marcas que são seus carros-chefe.
Esses interesses vão se tornar mais claros ao longo desta reportagem, mas eles nem sempre são óbvios no tipo de argumento que as empresas constroem para sustentar suas demandas.
E elas não poderiam deixar de apresentar suas posições ao GT do Ministério da Justiça. Via Lei de Acesso à Informação (LAI), o Joio conseguiu uma série de documentos relacionados ao GT, e entre eles estão quatro estudos sobre tributação encaminhados ao Grupo por representantes da indústria do fumo: Philip Morris, BAT Brasil, Japan Tobacco International (JTI) e o Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), do qual a BAT Brasil faz parte.
Uma pessoa que participou do GT e falou ao Joio em condição de anonimato disse que o grupo não solicitou nenhuma contribuição à indústria, mas as empresas ofereceram os documentos mesmo assim.
O começo da conversa
A ideia de que aumentar o preço dos cigarros pode reduzir o consumo se baseia no conceito de elasticidade-preço-demanda, que mede a reação dos consumidores ao preço de um produto.
“Vamos supor que uma pessoa compre um tubo de pasta de dentes a cada 15 dias, por determinado valor. Se o preço da pasta e a renda da pessoa não mudam, ela pode manter esse consumo constante. Mas se aumenta o preço da pasta e a renda continua a mesma, a pessoa só tem duas saídas: ou economiza em outros itens para continuar com o mesmo consumo de pasta, ou reduz a quantidade de pasta usada para que o tubo dure mais tempo”, exemplifica Iglesias. Quando uma população aumenta ou reduz o consumo de um produto diante de variações no preço, se diz que a demanda é elástica; quando é um produto muito essencial, difícil de se reduzir o consumo, sua demanda é inelástica.
O cigarro não é essencial, só que vicia. Por isso, sua demanda não é muito elástica, e quando o preço aumenta, a demanda não cai muito. Mas cai: a OMS estima que um aumento de 10% no preço dos cigarros leve a cerca de 4% de redução na demanda.
Essa é uma das razões para se pesar a mão nos impostos dos cigarros. Tem outra: mesmo se a prevalência do tabagismo não cair muito, ao menos os impostos garantem recursos para os governos cobrirem – em parte – os prejuízos sociais causados pelo tabaco.
No Brasil, a última mudança de legislação para aumentar a tributação dos cigarros aconteceu em 2011, e mexeu no IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados). Até aquele momento havia seis categorias de cigarros, e, para cada uma, um IPI fixo. As categorias de marcas mais baratas pagavam menos imposto e as mais caras pagavam mais. A partir de 2011, o IPI passou a ser dividido em duas partes: uma é fixa (atualmente está em R$ 1,50) e a outra cresce conforme o preço de venda. Também foi estabelecido um preço mínimo por maço ou box, que hoje está em R$ 5,00. Tanto o IPI como o preço mínimo estão congelados desde 2016.
Cigarrinhos populares
Dos quatro documentos enviados por representantes da indústria ao GT, o mais extenso é o que foi submetido pelo ETCO: são 123 páginas de um relatório sobre o impacto do contrabando de cigarros na economia, encomendado pelo Instituto à Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Logo na introdução, há um ponto interessante: o texto diz que, apesar do lado negativo do consumo de cigarros, “a existência do cigarro como bem de consumo tem também efeitos positivos, tanto sob o ponto de vista microeconômico (haja vista que a liberdade de escolha do consumidor é um valor normativo importante) e macroeconômico, através da geração de arrecadação para o Estado, empregos e renda”.
Em relação aos tributos, o relatório também diz a que vem ainda nas primeiras páginas, afirmando que as mudanças de política tributária a partir de 2011 fortaleceram o mercado ilegal. Seria então desejável “uma revisão do modelo de políticas tributárias, sem redundar necessariamente em uma redução da carga tributária total”.
O objetivo seria ter cigarros legais mais baratos, que pudessem competir com os ilícitos. “O Grupo de Trabalho existiu exatamente para avançar, sair da caixinha. E por que sair da caixinha? Porque o cigarro brasileiro é altamente taxado. Por um lado isso é natural, a taxação entra em qualquer política antitabagista do mundo, porque o cigarro fica mais caro e o fumante para de fumar. Só que no Brasil isso não tem a menor validade. Por quê? Porque temos nosso vizinho [o Paraguai] com oito fábricas de cigarro”, diz Edson Vismona, diretor-executivo do ETCO e presidente do Fórum Nacional de Combate à Pirataria e à Ilegalidade (FNCP).
O documento cita uma pesquisa do Ibope (hoje Ipec) indicando que a maior concentração de consumo brasileiro está nos cigarros vendidos por menos de R$ 3,49. O relatório conclui que, nas condições atuais, o preço “ótimo” para os cigarros legais competirem com os contrabandeados seria de R$ 3,00 – algo inviável por conta da carga tributária atual. A solução, então, seria que esses cigarros passassem a pagar bem pouco imposto.
Mas, como já apontamos, o documento fala em revisar o modelo de tributação sem necessariamente reduzir a carga tributária total. E como isso seria feito? Por meio da segmentação do mercado em categorias de preço, de modo que, quanto mais caro o cigarro, maior sua carga tributária. O pressuposto é o de que, com isso, a carga tributária total se manteria. Então, as duas principais sugestões são: permitir que haja cigarros legais muito baratos e ter uma tributação progressiva.
De fora para dentro
Já o documento entregue pela BAT Brasil não apresenta dados ou simulações específicos sobre a situação brasileira. A empresa diz ter dois estudos anexados: A economia do comércio ilícito de tabaco na Malásia, produzido pela Oxford Economics para a BAT em abril de 2019; e Relação entre Preços e Elasticidade dos preços na demanda por cigarros, de julho de 2019, encomendado à FTI Consulting. Só este último consta da documentação recebida pelo Joio, mas o primeiro está disponível no site da BAT Malaysia.
Ao contrário do estudo enviado pelo ETCO, esses dois não foram produzidos especialmente para o GT. O primeiro relatório, que trata sobre a Malásia, tem uma linha de raciocínio muito semelhante à usada pela empresa no Brasil: associa o aumento da tributação no país ao aumento do mercado ilegal – e também não se baseia fundamentalmente em fontes oficiais de dados, mas em estimativas da Nielsen e da própria BAT. O relatório ainda alega que a produção nacional de cigarros é importante para a economia do país, e que, devido ao crescimento do mercado ilegal, foram fechadas duas fábricas nacionais (uma da BAT e uma da JTI, a Japan Tobacco International).
O segundo estima que as políticas de preços e impostos de cigarros no Reino Unido haviam atingido um ponto de inflexão. Para isso, o relatório se baseia no modelo da curva de Laffer, que costuma ser usado para justificar a redução de impostos. A ideia básica é que, conforme se aumenta a tributação de um produto, a arrecadação sobe até certo ponto, e depois começa a cair – porque a população deixa de comprar esse produto ou o troca por opções mais baratas.
O texto também afirma que a elasticidade de um produto cresce com o preço e que, como o preço dos cigarros legais aumentou muito no Reino Unido nas últimas décadas, a demanda se tornou elástica (ou seja, começa a cair muito diante de variações no preço). Mas diz que essa elasticidade não aumenta tanto quando se considera o consumo total de cigarros – porque, embora a demanda pelos legais diminua, ela é compensada pelo crescimento da demanda pelos ilegais.
“Isso não é infundado. Não é que nós, que trabalhamos com o controle do tabaco, não pensemos que possa haver mudanças na elasticidade. De fato, há. Só que precisamos pensar: por que isso acontece e em que magnitude?”, questiona Roberto Iglesias. Ele concorda que, quando os preços ficam muito altos em relação à renda, há uma tendência a demanda por eles cair. Mas observa que essa elasticidade também muda quando há aumento da oferta no mercado ilegal. “No caso do Brasil, após o crescimento dos impostos, até 2014 houve queda na venda dos cigarros legais e o mercado ilegal não cresceu muito. A partir de 2015 é que a venda de cigarros ilícitos acelerou. Houve dois fatores para isso: o país passava por uma forte crise econômica – com redução da renda das pessoas – e aumentou muito a oferta de cigarros ilegais”, aponta.
E por que essa oferta cresceu? O ETCO e sua associada BAT Brasil colocam esse aumento definitivamente na conta da tributação. “Nós fizemos até uma campanha que é precisa: ‘O imposto cresce, o crime agradece’. Porque se tiver aumento de imposto, aumenta a competitividade do contrabando. O contrabandista tem mais possibilidades de crescer, porque vai continuar oferecendo um produto barato”, diz Edson Vismona.
Mas Iglesias tem outra avaliação: “Precisamos pensar se o crescimento do contrabando é produto exclusivamente do preço dos cigarros legais, ou se há outro fator que determina isso. O fator determinante não seria a ‘falta de vergonha’?”, questiona, usando bom português. E explica: “Quando eu comecei a estudar o mercado ilegal de cigarros no Brasil, não conseguia comprar esses cigarros no Rio de Janeiro. Era muito difícil, o acesso era restrito, as vendas eram muito escondidas. Mas a partir de 2015 e 2016, eu comecei a ver esses cigarros por toda parte. As apreensões nas fronteiras até aumentaram, mas parece que houve um relaxamento no controle da distribuição no varejo. Assim, o que consegue passar pela fronteira acaba sendo distribuído com muita tranquilidade”.
Dando o contra
O estudo enviado pela Philip Morris foi encomendado à empresa RC Consultores e trata especificamente da política tributária no mercado brasileiro de cigarros.
Os autores estimam que, se o preço mínimo dos cigarros caísse para R$ 3,50, a arrecadação do governo poderia cair R$ 3,2 bilhões. Para compensar essa perda, seria preciso que o mercado legal aumentasse – e muito – seu volume de vendas. Segundo os autores, para recuperar o valor todo, as marcas legais precisariam ganhar 74% do mercado ilegal recuperável (“recuperável” seria a fatia do mercado ilegal que hoje é vendida em postos de venda formais). Mas, como a repartição dos impostos entre o governo federal e os estados é desigual, as perdas afetariam mais negativamente os estados. Para eles não saírem no prejuízo, seria necessária uma absorção de 97% do mercado ilegal recuperável.
O estudo diz ainda que “uma redução nos tributos e, consequentemente, no preço final dos cigarros no Brasil levaria a um aumento do consumo de cigarros, contrariando as políticas adotadas com eficácia nas últimas duas décadas para reduzir o consumo de tabaco no país”.
Também foi avaliada a possibilidade de redução do IPI, zerando a parte variável e mantendo só a parte fixa. Para a parte fixa, foram aventadas duas possibilidades. A primeira, como defendem publicamente o ETCO e a BAT Brasil, é segmentar o mercado, tendo várias faixas de IPI fixo dependendo do preço dos cigarros – os mais baratos pagando menos IPI. O estudo apresentado pela Philip Morris rejeita a proposta, alegando que isso “muda radicalmente a estrutura tributária do cigarro, fazendo com que se torne progressiva, o que não é desejável em um produto em que se busca reduzir o consumo”. Além disso, o texto argumenta que a fixação dos IPI em faixas, algumas inferiores à de R$ 1,50 em vigor hoje, traria “consideráveis prejuízos aos cofres públicos”.
No entanto, os autores veem com bons olhos a possibilidade de ter um único valor de IPI fixo para todos os cigarros, zerando a parte que é proporcional ao preço. Dizem que a ideia “é bem-vinda, na medida em que simplifica a estrutura tributária do cigarro e eleva a regressividade do mercado”.
Batalha de gigantes
Afinal, por que as líderes da indústria do fumo no Brasil discordam em relação à tributação dos cigarros? A chave para entender isso, diz Iglesias, está nas marcas principais de cada empresa e em seus públicos-alvo.
“O principal cigarro da Philip Morris é o Marlboro. No Brasil, ele é um cigarro mais caro e que sempre tem mercado, pois é consumido por pessoas de maior renda”, explica o economista. No caso da segmentação em diferentes categorias de preços, o Marlboro estaria em uma categoria de impostos mais elevados. “Já a BAT tem cigarros que conseguiriam se encaixar em categorias de impostos intermediários, mas que poderiam concorrer com o Marlboro dependendo do tipo de apresentação, por exemplo. Então elas poderiam oferecer concorrência ao Marlboro, mas pagando impostos menores e tendo um preço de venda só um pouquinho menor”, explica, acrescentando que esse poderia ser o caso do Kent, que há alguns anos substituiu o descontinuado Free.
De acordo com Iglesias, a Philip Morris percebeu muito rapidamente que a demanda da BAT Brasil pela segmentação do mercado era uma tática de concorrência. Do mesmo modo, à Philip Morris não interessa a redução do preço mínimo dos maços – embora a empresa até possua um ou outro cigarro mais barato, esse não é seu foco. “Essa é basicamente uma luta travada entre a BAT Brasil e a Philip Morris”, resume o economista.
Isso também ajuda a explicar por que, apesar de ser contra a segmentação do mercado e a redução do preço mínimo, a Philip Morris é favorável a uma mudança específica: zerar a parte do IPI que é proporcional ao preço, deixando apenas a parte fixa. Afinal, é a parte fixa que faz com que os cigarros mais caros paguem, proporcionalmente, menos imposto. “Eles não são tontos. Se pudessem baixar seus impostos, o fariam. O que não querem é ter a segmentação, porque sabem que, nesse caso, estarão perdendo”, arremata Iglesias.
Vismona sustenta que as lógicas de mercado não lhe interessam. “Eu não entendo a lógica de mercado nem sei quem domina o mercado A, B ou C. Não sei quem domina o público de mais alta renda ou de baixa renda. Não acompanho isso, não é meu objetivo. Meu objetivo é apenas combater o contrabando”, afirma. Entretanto, ele preside um instituto que tem a BAT Brasil entre suas associadas – e seu posicionamento se alinha perfeitamente às necessidades mercadológicas dessa empresa.
Perguntado sobre essa coincidência, ele nega que o ETCO esteja defendendo especificamente a BAT Brasil. “Eu defendo a Souza Cruz, defendo a Philip Morris, defendo a JTI. Qualquer produto legal tem que ser protegido, ao contrário do ilegal, que não paga imposto. Vamos falar do joio e do trigo? Esse é o joio, meu papel é combater o joio. Agora, como o trigo se divide, não sei, não me preocupa.”
Ditos e não ditos
E como fica a JTI nessa história? Segundo Roberto Iglesias, a empresa também está de olho em qualquer redução de tributos porque só comercializa cigarros muito baratos, bem perto do atual preço mínimo. “Suas principais marcas, o Winston e o Camel, não são necessariamente baratas no exterior, mas entraram no Brasil a preços muito baixos para penetrarem no mercado. Mas, para isso, a JTI subsidiou esses preços, mantendo margens de lucro pequenas. A empresa quer recuperar sua rentabilidade sem precisar aumentar os preços”, avalia.
O documento enviado pela JTI ao Grupo de Trabalho é bem sucinto: quatro estudos de caso, aparentemente elaborados pela própria empresa, sobre o Equador, Canadá, Montenegro e Suécia. Fávio Goulart e João Marcelo Marins – respectivamente, diretor de assuntos corporativos e comunicação e gerente de relações governamentais –, assinam a carta dizendo que “nós da Japan Tobacco International cumprimentamos e apoiamos totalmente a iniciativa do Ministério de criar o Grupo de Trabalho para analisar objetivamente a relação entre a tributação do tabaco e o crescimento do mercado ilegal”.
O texto diz que os quatro países em questão viram crescer o comércio ilegal de cigarros depois de aumentarem seus tributos, e isso indicaria que “o aumento do imposto sobre produtos derivados do tabaco não é eficaz, uma vez que tem sido repetidamente prejudicado pela atuação do mercado ilegal”.
Mas isso é só uma parte da história, alerta Roberto Iglesias. No caso do Equador, por exemplo, ele diz que de fato houve uma reforma que aumentou os impostos de cigarros no país em meados da última década. Mas o que se viu a partir daí foi, em suas palavras, um “caso de ação estratégica da indústria contra a política de impostos”.
Por lá, o mercado é monopolizado pela Philip Morris, que tem três filiais nacionais. Depois da subida dos impostos, a empresa aumentou seus preços de forma desproporcional. “Houve um aumento brutal do preço de porta de fábrica. A indústria praticou um aumento muito superior ao do crescimento dos impostos. E, ao mesmo tempo, gritava que ia aumentar o comércio ilegal.”
A história fica ainda mais interessante. “Em 2019, quando foi feito um estudo para avaliar o crescimento do comércio ilícito de cigarros no Paraguai, adivinhe quais foram os produtos mais encontrados? A maior parte vinha de subsidiárias da Philip Morris em outros países. Isso significa que a própria empresa estava permitindo que entrassem Marlboros vindos do México e da Colômbia, enquanto aumentava seus preços no Equador”, explica Iglesias.
O caso canadense é outro exemplo de história mal contada, que, segundo o economista, guarda muitas semelhanças com algo que ocorreu no Brasil nos anos 1990. Aqui, tanto a BAT Brasil como a Philip Morris começaram a exportar cigarros para o Paraguai, sem pagar nenhum tributo por isso, num volume muito superior ao do consumo daquele país – e, enquanto isso, aumentavam seus preços no Brasil. “Com o aumento de preços aqui, a tendência da demanda era cair. Como elas fizeram para manter a demanda? Introduzindo cigarros contrabandeados”, diz, explicando: “Elas mandavam cigarros para o Paraguai, e esses cigarros então voltavam para o Brasil sem pagar impostos”.
A coisa eventualmente desandou para o lado das grandes fumageiras. Quando, em 1998, o governo brasileiro impôs um tributo de 150% sobre as exportações de cigarros para a América Latina, o negócio deixou de fazer sentido para elas. Só que já era tarde: haviam pipocado várias fábricas no Paraguai que continuaram mandando seus produtos contrabandeados para cá.
Da mesma forma, diz Iglesias, no Canadá as empresas começaram a exportar cigarros para locais onde havia dificuldade de controle da movimentação dos cigarros: o estado de Nova Iorque, no noroeste dos Estados Unidos, próximo a reservas indígenas. “E, assim como o Paraguai começou a ter fábricas clandestinas, o mesmo aconteceu nessas reservas indígenas, que começaram a fabricar cigarros ilegais.”. Em outras palavras, quem criou o negócio foram as grandes empresas: “Elas se queixam da ilegalidade que inventaram.”
Qualidade dos dados
Algo que chama a atenção quando comparamos os documentos enviados para o GT é a disparidade entre os dados do contrabando mencionados.
O ETCO se baseia em dados do Ibope (hoje Ipec) e diz que o mercado ilegal cresceu substancialmente desde 2011, ultrapassando o legal pela primeira vez em 2018. Naquele ano, teria ocupado uma fatia de 54% do mercado brasileiro (o percentual teria caído para 49% em 2021). A Philip Morris, por sua vez, faz uma média entre os resultados de duas pesquisas: a do Ibope/Ipec e a Empty Pack Survey, conduzida pela MSIntelligence – e conclui que os cigarros ilegais teriam 38,2% do mercado em 2018.
Mas os dados do Instituto Nacional de Câncer (Inca), apontam para um percentual ainda um pouco menor. A partir de informações da Receita Federal, do Ministério da Saúde e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pesquisadores do Inca identificaram que a participação dos cigarros ilegais no mercado brasileiro chegou a 42,8% em 2016, mas depois caiu, ficando em 31,4% em 2018. O relatório contou com a colaboração de Iglesias. “Nossos dados são obtidos por metodologias públicas. A metodologia das pesquisas utilizadas pelo ETCO nunca aparece”, compara Iglesias.
Como mostramos aqui, os argumentos em favor da segmentação do mercado de cigarros e da redução do preço mínimo foram desmontados durante as discussões do Grupo de Trabalho, especialmente a partir das apresentações da Receita Federal e do Inca.
Mas uma fonte que participou do GT e preferiu não se identificar disse ao Joio que no início era fácil se deixar envolver pelas propostas de mudança na tributação. “Se você não tem os dados oficiais, começa a achar a ideia muito interessante. Você ouve que reduzir o preço mínimo do cigarro vai melhorar o problema do contrabando e aumentar a arrecadação. Os dados vêm do Ibope, uma empresa que tinha certo renome no Brasil e que, se você fizer uma pesquisa no Google, vai ver muitos dados batendo. Porque são dados que costumam ser ecoados” diz.
Daí a importância de a Receita Federal e o Inca terem chegado com a lupa. A Receita, especificamente, demonstrou que qualquer redução nos impostos não seria suficiente para deixar os cigarros brasileiros no mesmo preço dos paraguaios. Isso porque eles têm uma margem de manobra muito grande para continuarem sempre mais baratos. “Quando foram apresentados os detalhes, as informações técnicas sobre arrecadação, importação e exportação, o argumento começou a quebrar. Os números não fechavam, entende?”, explica essa fonte. Não era solução, era cilada.