O Joio e O Trigo

Em áudios, executivos do Santander, Itaú e Bradesco dizem ter criado regra da Febraban para frigoríficos

Nas gravações a que o Joio teve acesso, executivo do Santander também sugere pedir ajuda da diretoria do BNDES para vencer edital; banco estatal disse que abrirá investigação interna

“A gente não quer ser visto no mercado como os impulsionadores do que tá acontecendo na Febraban, apesar de a gente saber que a gente é”, disse Leonardo Fleck, líder de Inovação Sustentável do banco Santander, em uma reunião de agosto do ano passado. “Mas o ideal é que a gente não seja percebido dessa forma para não chamar muita atenção negativa para nós. A gente precisa ter esse cuidado.”

Fleck foi gravado durante uma reunião interna do Plano Amazônia – uma iniciativa conjunta criada em 2020 por Itaú, Bradesco e Santander com o objetivo de “contribuir efetivamente para o desenvolvimento sustentável da Amazônia”  – e se referia a uma normativa discutida naquele momento pela Federação Brasileira de Bancos, a Febraban, sobre restrição da concessão de crédito para frigoríficos ligados a desmatamento ilegal. 

Em áudios de reuniões como esta obtidos pelo Joio, executivos do Itaú, Bradesco e Santander alegam paternidade da regra da federação bancária. Os áudios também revelam o plano de influenciar diretores do BNDES para embolsar R$ 15 milhões em um edital do banco. 

Segundo os executivos, a normativa da Febraban, publicada em maio deste ano, teria sido copiada de uma súmula desenvolvida no “Grupo de Trabalho Medida 1: Indústria da Carne e Frigoríficos” do Plano Amazônia. O GT integrado pelos três bancos era responsável por pesquisar potenciais medidas do setor bancário com relação à concessão de crédito para frigoríficos e organizá-las num documento de estratégia comum. 

A redução do desmatamento na cadeia da carne era uma das dez medidas do Plano Amazônia – segundo a plataforma Map Biomas, o agronegócio foi responsável por 96% da supressão de vegetação no Brasil em 2022. Outros eixos da iniciativa, como “bioeconomia” e “culturas sustentáveis”, também tinham seus respectivos GTs e súmulas. 

No Brasil, a Febraban é a entidade responsável por representar as instituições bancárias a nível nacional. Entre suas atribuições está a autorregulação do sistema bancário, com instituição de normas que devem ser seguidas por todas as empresas aderentes.

Em teoria, normativas de autorregulação (SARBs) devem ser primeiro discutidas no Comitê Executivo de Autorregulação da Febraban, onde estão representados 18 bancos, e depois no Conselho de Autorregulação da associação, que tem caráter mais restrito. 

Ao Joio, a Febraban enviou nota em que admite que a súmula do Plano Amazônia foi “uma das referências consideradas para a elaboração do normativo”, assim como outros protocolos voltados ao setor da pecuária, mas disse que a norma seguiu o rito previsto no estatuto da entidade. Clique aqui para ver a resposta completa. 

Procurados, Itaú, Bradesco e Santander não se manifestaram. Os citados Leonardo Fleck, Christopher Wells e Silvia Chicarino do Santander; Guilherme Treu, do Itaú; Fabiana Costa e Gustavo Acra do Bradesco; e Aline Aguiar, do Rabobank, tampouco responderam aos pedidos de comentários enviados por e-mail e LinkedIn.


“Quase um copia e cola”

Segundo dizem os executivos nos áudios obtidos pela reportagem, a normativa teria “nascido” no Plano Amazônia e era considerada uma entrega do grupo. 

É o que explicou Guilherme Treu, coordenador de estratégia ESG do Itaú, em uma reunião de maio de 2022, quando as tratativas com a federação bancária já haviam começado e a súmula, se transformado em uma minuta consultiva enviada pela Febraban aos demais bancos. 

“A Febraban já está discutindo a autorregulação. Vocês devem ter recebido a consulta, que foi baseada na nossa súmula”, afirmou. “Aí eu acho que a gente fecha essa evolução [da] medida 1 [do Plano]. Ela nasce aqui, mas a gente leva o crivo pra todo mundo adotar a nível Febraban. Eu encerraria o papo ali. A gente nasceu [a medida] e entregou.”


A súmula elaborada por Itaú, Bradesco e Santander previa que até 2025 os frigoríficos atendidos pelos bancos deveriam implementar sistemas de rastreamento de gado que permitissem zerar a aquisição de animais criados em áreas desmatadas ilegalmente. Antes disso, em 2023, deveriam publicar compromissos públicos nesse sentido.

É exatamente o que instituiu a normativa SARB 26/2023, da Febraban, em maio desse ano – ainda que sem prever consequências em caso de descumprimento. 

A semelhança entre os dois documentos foi ressaltada em um diálogo entre Christopher Wells e Silvia Chicarino, respectivamente líder global e superintendente de risco socioambiental do Santander.

Àquela altura, em agosto, a Febraban já estava pautando a normativa em suas instâncias internas, onde ela sofria resistência do Banco do Brasil – instituição com a maior carteira de clientes na agropecuária brasileira. 

Os executivos do Plano Amazônia especulavam que, além do medo de perder clientes, o BB resistia por motivos políticos, uma vez que o governo federal de Jair Bolsonaro era avesso a qualquer medida de contenção do desmatamento. A resistência do banco estatal poderia, então, resultar no afrouxamento de medidas previstas na súmula do Plano Amazônia.

“Vou falar uma coisa perigosa”, disse Wells em uma reunião de agosto do ano passado. “Se a gente pegar o texto da Febraban, adaptar ele para a nossa súmula, que é quase um copia e cola, e divulgar como do Plano Amazônia [a gente] mostra que o que vier da Febraban veio depois. E se houver algum afrouxamento […] fica bom pra nós.” 

Chicarino então respondeu: “Eu não vejo problema algum porque isso aqui, antes de ser da Febraban, é desse grupo aqui. A gente tem um compromisso com isso. Com ou sem Febraban.” 


“Não tem nenhum holofote sobre nós”

As gravações mostram que os integrantes do Plano também discutiram o vazamento de um rascunho da normativa da Febraban pelo jornal Valor Econômico, em julho do ano passado, e se preocupavam com possíveis repercussões negativas à imagem dos bancos envolvidos. 

  • Silvia Chicorino, superintendente de sustentabilidade do Santander: “nessa linha vou fazer uma pergunta: aquela notícia no Valor [Econômico] ela ecoou, deu algum ruído interno?”
  • Christopher Wells, diretor global de sustentabilidade do Santander: “para os nossos detectores, não. E vocês, Itaú, Bradesco, viram alguma repercussão?”
  • Gustavo Acra, analista de ESG do Bradesco: “daqui do nosso lado, a gente também sentiu que não, não teve tanto prejuízo quanto no primeiro momento a gente achou, né? Não nos procuraram. Até acho que alguém foi procurado, mas o posicionamento foi que, como não é o Plano Amazônia, qualquer posicionamento deveria vir da Febraban. Porque não tem nenhum holofote sobre nós. Querendo ou não, foi sobre a Febraban e todos os bancos de uma forma geral. Então a gente não teve nada aqui do nosso lado, não.”   

“Aí é Cade na hora”

Outra preocupação do grupo era não ser caracterizado como cartel, o que explica o segredo em torno das “negociações” com a Febraban. O tema é discutido em uma conversa de junho de 2022 com uma representante do banco holandês Rabobank para prospecção de “boas práticas” no financiamento de frigoríficos.

Christopher Wells: “mas aí que tá, nós não podemos atuar como cartel.” 

Aline Aguiar (Rabobank): “na hora de abordar o cliente? 

Christopher Wells: “exatamente. E na verdade, essa conversa que a gente está tendo, você está chegando no limite das coisas que podemos conversar. Os detalhes do que o Bradesco, Itaú, Santander… nós não compartilhamos, nós não alinhamos. Por exemplo um pequeno [frigorífico] que trabalha com nós três e nós marcamos um call [chamada de vídeo], ai é Cade na hora [Conselho Administrativo de Defesa Econômica, responsável por fiscalizar formação de cartéis].” 


“Ajuda a gente aí”

Em um dos áudios, Fleck, do Santander, propõe que os bancos integrantes do Plano Amazônia participem de um edital de blended finance – financiamento não reembolsável de iniciativas com impacto social ou ambiental positivo – do BNDES, em conjunto com a Fundação CERTI, uma organização catarinense de pesquisa e desenvolvimento tecnológico. 

A proposta que seria submetida pedia R$ 15 milhões ao banco. Para obter resultado favorável, o executivo do Santander sugeriu pedir ajuda ao presidente da instituição. 

“Tem que […] alinhar com as equipes internas para poder dar OK de aparecer nosso nome lá na proposta que tá indo pro BNDES. Eu tô interagindo bastante com o BNDES, com o Léo Ceron [então consultor da presidência do banco estatal], com as equipes deles lá que estão tocando isso. Até tive uma interação com o [Gustavo] Montezano, [então presidente do BNDES], e a gente vai ter uma agenda com ele em Brasília, nós Santander Institucional, e se a gente concordar em entrar eu vou dizer ‘olha, estamos com uma proposta com os três bancos, ajuda a gente aí’. [Vou] usar a nossa influência. Vocês também, os contatos que vocês [têm].”

Fabiana Costa, gerente de sustentabilidade do Bradesco, respondeu: “Com certeza, os nossos COs [diretores] têm um relacionamento ótimo com eles [BNDES], então dá até pra puxar uma agenda depois.”

“Com essas duas entregas, essa e a da Febraban, eu se fosse conselheiro do plano estaria super satisfeito”, classificou Fleck. “Acho que [são] dois golaços de nível estrutural setorial, saindo fora do bowl [escopo], digamos assim, do que a gente costuma fazer.” 

Procurado pelo Joio, o BNDES respondeu que sua diretoria de compliance solicitará a abertura de uma auditoria interna para apurar se houve irregularidade ou favorecimento no edital, embora os bancos do Plano Amazônia não tenham sido contemplados. “Caso a auditoria constate algum tipo de ilegalidade, o Banco tomará as medidas legais cabíveis de responsabilização contra eventuais envolvidos”, diz a nota enviada pelo banco.

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