O Joio e O Trigo

Empresa de carbono anuncia projeto em terras quilombolas sem conhecimento e aval de parte da comunidade

Ainda sem regulamentação, mercado de carbono preocupa Ministério Público, que vê riscos e indícios de assédios, falta de transparência e violações ambientais em contratos

Em dezembro de 2022, Maria das Graças da Silva Pereira, moradora da comunidade Rio Campompema, no município de Abaetetuba, no Pará, recebeu uma mensagem de WhatsApp. Nela, foi informada que o nome de sua comunidade, onde vivem 400 pessoas, constava no site de uma empresa que faz projetos de mercado de carbono. “Ficamos confusos, porque nunca tínhamos ouvido falar na empresa nem nunca fomos procurados por ela. Ficou todo mundo em choque.” 

No site da tal empresa, a Amazon Carbon, constava, até o início tarde do dia 27, o “Projeto Arquia”, justamente o nome da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo das Ilhas de Abaetetuba (Arquia), que compreende 10 comunidades quilombolas do município. De acordo com o texto na página, “a Arquia e a Amazon Carbon acreditam que a geração de renda por meio dos ativos verdes evita o desmatamento e consequentemente minimiza os impactos socioambientais, climáticos e a biodiversidade”. 

No texto, entre os participantes da iniciativa constavam as seguintes comunidades: São Alto, Baixo Itacuruçá, Campompema, Genipaúba, Acaraqui, Igarapé São João (Médio Itacurucá) Arapapu, Rio Tauaré-Açu, Arapapuzinho, Rio Ipanema, compreendendo uma área de 9.076 hectares de terra.

Na manhã do dia 27, enviamos mensagem de solicitação de posicionamento para a empresa via site, e, por mensagem de Whatsapp, avisamos do envio. Em resposta, informaram que não há projetos da Amazon Carbon com a Arquia: “Ficou apenas nas conversas com os líderes. Não conseguimos avançar nem nos debates. Por isso não está mais no site”, disseram. No entanto, quando informamos que o projeto seguia na página, assim como um vídeo de divulgação no YouTube, ambos foram imediatamente apagados.

A reportagem mandou as seguintes perguntas à Amazon Carbon: 

1- No site da empresa constam as seguintes comunidades como participantes do projeto: São Alto, Baixo Itacuruçá, Campopema, Jenipaúba, Acaraqui, Igarapé São João (Médio Itacuruçá), Arapapu Rio Tauaré-Açú,  Arapapuzinho, Rio Ipanema. No entanto, em audiência pública, moradores de várias das comunidades afirmaram que não foram consultados e que não assinaram nenhum contrato com a empresa.  Elas foram consultadas? Todas assinaram o contrato? Quando? 

2- Se sim, poderiam me enviar uma cópia?

3- Como foi feito o processo de consulta às comunidades que têm o nome no projeto?

4- De acordo com o contrato, como e em quanto a comunidade será remunerada?

5- Quando o projeto entrará em vigor?

Após o projeto ter sido apagado da página da empresa, enviamos a pergunta: “Logo após contato por WhatsApp, o link do projeto foi apagado da página. Poderiam explicar o motivo, por favor?”

Por email, a Amazon Carbon respondeu: “não foram identificados projetos nesse território, o que pode ser facilmente confirmado no próprio site da certificadora Verra. A informação lá presente sustenta a inexistência desses projetos nas áreas mencionadas.” A Verra é a maior certificadora de créditos de carbono do mundo.

Imagem: Reprodução/Amazon Carbon

Muitos moradores das comunidades afirmam que não estão de acordo com o projeto, não foram consultados e sequer sabem que os nomes de onde moram estão no site da empresa, já que dizem não terem firmado a parceria. “No nosso assentamento ninguém assinou esse contrato”, afirma Maria das Graças. 

A informação é confirmada por outros moradores. Alex de Souza Maciel, do Quilombo Alto Itacuruçá, também afirma ter se surpreendido ao descobrir que o seu território estava na página da comercializadora de carbono. Segundo ele, os moradores não foram consultados nem assinaram o acordo. “O nome da comunidade foi colocado sem nosso consentimento. Hoje, a maioria das pessoas das comunidades sequer sabe o que é esse projeto”, explica. 

Mesmo entre as comunidades que já ouviram falar sobre o projeto, “como a Genipaúba e a Tauaré-Açu, a maioria é contra”, diz Alex, ao Joio.

Esta reportagem inaugura a nova editoria do Joio sobre colapso climático. Acompanharemos a agenda do clima e investigaremos o que se apresenta como solução para combater as causas do aquecimento global. 

Consulta às comunidades

Quem é entusiasta dos projetos de carbono é Isaías Rodrigues, que foi presidente da Arquia até final de outubro deste ano. No site da empresa que comercializa carbono, constava um vídeo de divulgação no qual ele fala, na condição de presidente da associação, que as comunidades quilombolas vivem em carência muito grande em relação à saúde e à educação. 


“O projeto da Amazon Carbon, essa parceria que está sendo construída junto com a Arquia, a gente espera que as comunidades quilombolas possam realmente olhar para a natureza e usar isso a seu favor. A Amazon Carbon traz essa possibilidade, de nós usarmos o que nós temos, o que é bom para nós manter nossa relação com natureza e gerar renda.” 

Ele diz, ainda, que o “projeto de crédito de carbono da Amazon Carbon que está sendo implementado está sendo discutido dentro das comunidades, através de reuniões e debates. […] É um projeto que tem sua eficiência, porque ele não vai construir nada, vai ajudar para que a gente possa ao mesmo tempo viver e preservar. E está sendo bastante aceito dentro das comunidades”.

De acordo com moradores das comunidades quilombolas, em 2018 se iniciaram as visitas do presidente da associação e de representantes da empresa às comunidades, que se intensificaram durante a pandemia de Covid 19. “Mas, pelo menos na minha comunidade, o projeto e o contrato nunca foram apresentados”, denuncia Alex de Souza Maciel. “E ninguém sabe se o presidente da associação assinou ou não o contrato.”

O tema foi discutido durante audiência pública realizada em Abaetetuba, no final de outubro, para debater sobre mercado voluntário de carbono. Convocada pela Promotoria Estadual de Justiça Agrária, a audiência pretendia discutir possíveis violações de direitos humanos, fundiários e socioambientais por projetos que possam estar afetando terras públicas e coletivas no Pará. 

O encontro foi realizado a pedido da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará, a Malungu, que denunciou que comunidades em todo o estado estavam sendo assediadas por empresas que desenvolvem projetos de crédito de carbono.

Entenda o beabá dos projeto de carbono

Mercado de carbono: Mecanismo que surgiu em 1997 com a intenção de reduzir a emissão de gases do efeito estufa para países desenvolvidos.

Créditos de carbono: Cotas de emissão de gases do efeito estufa que podem ser compradas e vendidas por governos e empresas.

Mercado regulado: Gerido por governos para cumprir metas de redução de emissões estabelecidas pelo país.

Mercado voluntário: Participam empresas que compram créditos de carbono para compensar suas emissões ou revender os créditos a outras empresas.

Legislação: O Projeto de Lei 412/2022, que busca regulamentar o mercado de carbono no Brasil, foi aprovado em outubro no Senado e seguiu para apreciação na Câmara dos Deputados.

Contrato

Durante a audiência, o então presidente da Arquia, Isaías Rodrigues, disse: “Que fique bem claro que não existe nenhum contrato dentro do território da Arquia.” 

“Se não tem contrato, por que tem um vídeo falando sobre o projeto?”, questiona Queila Couto, representante jurídica da Malungu. A advogada conta que ela e Flávia Santos, também advogada da organização e moradora de comunidade quilombola, foram convidadas em 2021 para participar de uma reunião com a Arquia e a empresa, para apresentação do projeto de carbono. Uma das coisas que incomodou ambas foi que o projeto foi todo apresentado em inglês. Outra, que informaram que o prazo do contrato, de 30 anos, era inegociável. “Se tem contrato de vigência inegociável, não interessa às comunidades”, pontua Couto.

Com o passar das semanas, começaram a chegar denúncias de que estavam ocorrendo reuniões da empresa com comunidades e que, ao final, apresentavam-se atas que não condiziam com o conteúdo das consultas. Diante da situação, as advogadas pediram uma reunião com a coordenação da Arquia. No dia do encontro, um representante da empresa estava presente.  

“Se formos nas dez comunidades da Arquia, as pessoas vão falar que não entendem o que é crédito de carbono. Como vou incluir minha comunidade num contrato como esse?”, questiona a advogada. “As comunidades têm autonomia para negociar contratos, mas quando estiverem informadas e não tiverem dúvidas.”

Flávia Santos, advogada da Malungu e moradora da Comunidade Quilombola do Rio Genipaúba, afirma que, durante o período em que as comunidades foram abordadas pela empresa, houve assédios e violação à consulta prévia, livre e informada – procedimento previsto pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. 

Junto com a Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Marinhas (Confrem) e a Terra de Direitos, a Malungu publicou uma uma nota técnica no início de novembro com o objetivo de orientar as comunidades, reforçar o direito à consulta prévia e indicar a possibilidade de judicialização para anular contratos “que não condizem com a realidade da comunidade”. Ela explica que quando o direito à consulta não é respeitado, quando as comunidades são enganadas, “temos a possibilidade de pedir a nulidade desses contratos”. 

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No dia 26 de março de 2022 houve uma reunião da associação com a comunidade de Genipaúba, na qual a presidência da Arquia teria informado que o contrato de crédito de carbono excluía o direito à consulta prévia.

Moradores da comunidade do Rio Genipaúba registraram uma ata informando que não queriam participar do projeto. Além disso, enviaram um ofício à coordenação da Arquia, datado de 7 de fevereiro de 2022, onde reiteram essa posição. 

“É no mínimo contraditório que na plataforma da empresa tenha um vídeo com representante da associação falando que moradores aceitaram um projeto quando tem uma ata falando que somos contra a nossa inserção”, critica a advogada Flávia Santos. “O direito à consulta é legítimo e deve ser respeitado. O chão é nosso, as decisões também são nossas.”

Em 28 de outubro, houve uma eleição da Arquia e uma nova coordenação foi eleita. A nova coordenadora é Mayara Abreu, da comunidade quilombola Ipanema. A coordenação tem a expectativa de ajuizar uma ação pedindo a anulação do contrato com a Amazon Carbon, caso se confirme que ele existe.

Ao Joio, moradores das comunidades da Arquia contaram que, há mais ou menos um mês, drones sobrevoam os territórios, dia e noite, o que tem deixado as pessoas em estado de alerta. “O monitoramento tem sido sitemático”, dizem. “Embora não seja possível afirmar que há relação com o projeto, acaba coincidindo com a chegada do tema nas comunidades”, afirmam. Os moradores afirmam que irão protocolar a denúncia junto ao Ministério Público Estadual.

Corrida das empresas

O Projeto de Lei 412/2022, que busca regulamentar o mercado de carbono no Brasil, foi aprovado em outubro no Senado e seguiu para apreciação na Câmara dos Deputados. De acordo com o texto do PL, deve ser prevista uma cláusula contratual para “indenização aos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais por danos coletivos, materiais e imateriais, decorrentes de projetos [de carbono]” e que seja cumprida a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. 

O texto ainda prevê repartição justa e equitativa dos recursos gerados, com depósitos em contas específicas para a gestão dos projetos. Mas, enquanto o mercado não está regulamentado, comunidades indígenas e quilombolas estão expostas a abusos e assédios cometidos por empresas de crédito de carbono, na assinatura de contratos, por exemplo. 

Os casos de Abaetetuba fazem parte do mercado voluntário de carbono, do qual participam empresas que compram créditos de carbono para compensar suas próprias emissões ou revender os créditos a outras empresas. Há, ainda, o mercado regulado, gerido por governos para cumprir metas de redução de emissões obrigatórias do país.

A Amazon Carbon seria uma agente do mercado voluntário. O registro da empresa figura em nome de Francisco Nascimento Farias, também proprietário de lojas de departamento e de materiais de construção em cidades do interior do Pará. No site, a Amazon Carbon se apresenta como “uma organização privada que acredita que para defesa, conservação e preservação da Amazônia, é necessário a geração de renda”.

A empresa oferece atendimento por WhatsApp e uma avaliação quase instantânea “dos ativos verdes de sua propriedade”, com representantes comerciais em cinco estados do Norte, além de São Paulo. “Somos uma plataforma de investimentos coletivos, que apoia a criação de projetos de crédito de carbono, em busca de um ideal coletivo”, complementa o site. Apesar do discurso de grande empresa, o capital social da Amazon Carbon é de apenas R$ 200 mil. 

De acordo com Ione Nakamura, promotora de Justiça da 1ª Região Agrária, que organizou a audiência, exatamente pelo fato de o mercado voluntário ser recente e não estar regulamentado, existe uma “corrida” das empresas. “E meu questionamento principal é: qual é a liberdade que essas comunidades estão tendo para saber se estão fazendo um bom negócio?” 

E, como não existe parâmetro, “fica difícil de saber se estão sendo consideradas na sua diversidade, no seu tempo de compreensão, de entendimento sobre como isso impacta o seu território, não só para os presentes como para as futuras gerações”, afirma. Por conta da ausência de clareza sobre as regras, ela acredita que há uma grande possibilidade de existirem muitos equívocos.

Em entrevista ao Joio, Nakamura explica que, juridicamente, o território quilombola é uma propriedade privada coletiva – a única modalidade de propriedade privada coletiva que existe na legislação. Além dos assentamentos agroextrativistas, explica, “o maior investimento dessas empresas desenvolvedoras tem sido nas áreas quilombolas, no estado do Pará, por serem áreas grandes. Então as empresas começaram a olhar para esses territórios como áreas de expansão e de implementação desse mercado, e as comunidades têm sido muito procuradas”. O Pará tem a quarta maior população quilombola do país, com 135.033 pessoas, ficando atrás de Minas Gerais, Maranhão e Bahia. 

A procuradora relata que brigas internas, a exemplo do que se deu no caso da Arquia, estão entre os principais problemas registrados. “Na audiência pública ficou muito claro que há brigas internas causadas pelas propostas apresentadas pelas empresas. Isso gera uma instabilidade, gera também um conflito aqui na região trazido por eles.” 

Sobre o caso de Abaetetuba, ela aponta as divergências internas sobre o assunto. “Vi comunidades que não aceitaram [o projeto], comunidades que aceitaram e comunidades que estão discutindo. É preciso observar as comunidades que já assinaram, ver se realmente teve discussão, ver qual é a experiência que eles estão se propondo a fazer, se dão conta de compreender todo esse cenário, estão dispostos a arriscar, porque também eu vou respeitar a autonomia da comunidade. Mas eu preciso saber se realmente está tudo certinho da parte deles”, relata. 

Os que discordam, diz, avaliam que o posicionamento do então presidente da associação em favor do projeto é precipitado, “porque entendem que a concordância não é unanimidade”. 

Realmente, afirma, há uma questão de legitimidade quando se fala de povos e comunidades tradicionais. “Não basta só o presidente concordar, isso tem que ter realmente um consenso. O conflito ficou muito evidente para mim”, aponta. Ao final da audiência, ficou decidido que o Ministério Público irá pedir esclarecimentos à Arquia e à Amazon Carbon sobre a ausência de consulta e divulgação da anuência das comunidades no site da empresa.

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Consulta livre, prévia e informada

O aspecto mais preocupante, portanto, é se realmente está havendo consulta e se são consultas livres, prévias, informadas, porque é um assunto complexo. “Todas as comunidades precisam ser informadas. Não é só a liderança, só a diretoria. Então, isso leva um tempo para se compreender a informação, para se avaliar, principalmente se essa é a melhor proposta”, pondera.

A procuradora acredita que em alguns casos as comunidades não estão tendo condições de se apropriar dos temas para tomar uma decisão, “porque são comunidades diferentes, que têm as suas vulnerabilidades sociais, inclusive de organização”, relata. “E às vezes parece que as empresas se aproveitam dessa situação.” 

Um caso que se tornou conhecido ocorreu em Portel, no oeste do Pará. No total, cinco empresas brasileiras e três estrangeiras foram denunciadas por uso irregular de terras públicas e por ausência de consulta às populações que residem nos locais onde foram vendidos créditos de carbono.

A procuradora relata que chegaram a oferecer cesta básica “e coisas mínimas para buscar se aproximar da comunidade para obter esse consentimento. Não me parece ideal voltar àquela ideia do colonizador de 500 anos atrás de trocar ouro por espelhinho, espelhinhos”. Os casos ganharam projeção e houve o cancelamento dos contratos. 

Em julho deste ano, o Ministério Público do Pará e o Ministério Público Federal elaboraram uma nota técnica com recomendações a respeito da proteção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais diante do mercado voluntário de carbono. A nota foi feita após a constatação da falta do direito à consulta livre, prévia e informada, problemas com transparência e “negociação de créditos de carbono em terras públicas, ilegalmente apropriadas por terceiros, em aproximação ao conceito socialmente construído de ‘grilagem de terras’”.

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