Texto inicial, que está em consulta pública a partir de hoje, 12, ressalta que publicidade da indústria do tabaco trabalha para aumentar o consumo entre crianças, adolescentes e jovens adultos
A indústria do tabaco segue ávida para liberar os cigarros eletrônicos de diferentes tipos para o público brasileiro, mas, ao que tudo indica, não será desta vez. O texto-base da consulta pública aberta nesta terça-feira, 12, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que terá duração de 60 dias, aponta para o sentido contrário: mais restrições, inclusive com campanhas de conscientização dos riscos à população em geral e formação especial dos agentes de segurança e fiscalização para conter a entrada ilegal do produto no país e as vendas pela internet.
O diretor-presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, em relatório apresentado no dia 30 de novembro, defendeu a proibição dos Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEFs). Ele argumentou que é falso o discurso alarmista, estimulado pela indústria para tentar a liberação, de que há descontrole sobre o consumo no Brasil, principalmente entre crianças e adolescentes
Barra Torres utilizou como referência dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE), mostrando que apenas 2,8% dos adolescentes brasileiros entre 13 e 17 anos fizeram uso de algum desses equipamentos. O número é mais baixo do que em outros 60 países que produziram levantamentos semelhantes.
O relatório tomou como base, para reforçar a necessidade de mais restrições e até da proibição no Brasil, um caso ocorrido nos Estados Unidos, no estado de Massachusetts, primeiro daquele país a proibir os cigarros eletrônicos. A medida foi tomada em 2019, depois de um surto de Evali (sigla em inglês de doença pulmonar causada por cigarros eletrônicos), que causou 2.807 internações e 68 mortes, conforme dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças, órgão oficial estadunidense . A maioria delas de adolescentes e jovens adultos. A própria doença já coloca sob suspeita a teoria da redução de danos (em relação ao cigarro com filtro) defendida pela indústria.
Pesquisas apontam, ainda, que os sais de nicotina usados em alguns desses dispositivos têm alto potencial de causar dependência. E, mais do que isso, existe o risco do “uso dual”: na Itália, por exemplo, 85,4% dos usuários de cigarros eletrônicos também são consumidores frequentes do cigarro convencional, o que multiplica os riscos de saúde a que são expostos.
O diretor-presidente da agência apontou a diferença entre o discurso institucional e a prática de marketing das empresas. Enquanto vendem a ideia de uso como substituição de consumo para pessoas adultas que já são dependentes de cigarros convencionais, fazem atividades para atrair novos fumantes entre pessoas que nunca tiveram contato com o tabaco, servindo de porta de entrada para o consumo.
O relator cita formatos e sabores diferentes e promoções dos produtos em festas, redes sociais, contratação de influenciadores digitais, patrocínio a equipes de Fórmula-1, sorteios de viagens e feiras, e festas de demonstração, experimentação e venda de produtos, como sinal da busca pelo público adolescente e jovem.
Entre lobbies e sabotagens
Representantes das três principais empresas do setor que atuam no Brasil, a Philip Morris, a Japan Tobacco International (JTI) e a British American Tobacco (antes chamada Souza Cruz) apresentam argumentos em painéis da Anvisa sobre os DEFs desde 2018, mas todos foram refutados por 800 estudos nacionais e estrangeiros revisados pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
A indústria, porém, não está armada apenas com argumentos, como fez questão de explicar nos painéis da Anvisa a chefe do secretariado da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT), da Organização Mundial de Saúde (OMS), Vera Luiza da Costa e Silva. Ela afirma que jamais havia presenciado estratégias tão agressivas como as que a indústria usa atualmente para vender os DEFs.
Vera conta que foi procurada por uma fundação financiada pela indústria do tabaco para gravar um vídeo de apoio aos produtos e alerta quanto ao mau uso da ciência pelo setor. Há, por exemplo, “pesquisas científicas” financiadas pelas corporações para atrair novos consumidores e garantir lucros. “Os interesses da indústria do tabaco não se alinham com os interesses da saúde pública”, diz.
Essa, entretanto, não foi a única demonstração de poder e ousadia da indústria. No dia da leitura do relatório do diretor-presidente da Anvisa, a British American Tobacco e o Estúdio Folha organizaram um evento paralelo, em forma de seminário e a favor da regulamentação dos cigarros eletrônicos no Brasil. O Estúdio Folha é a divisão de material patrocinado do jornal Folha de S.Paulo. No caso, pela BAT.
Os principais argumentos utilizados pela empresa para defender a liberação são a necessidade de regulamentação e proteção contra “o mercado ilegal, que não gera receita em impostos para o país e não é fiscalizado”, e uma suposta redução de danos em relação ao consumo do cigarro convencional. Ambos os argumentos são rebatidos pelo relatório da Anvisa, com base nas pesquisas e informações coletadas com órgãos internacionais e em outros países.
Uma das palestrantes do evento da Folha foi a farmacêutica Alessandra Bastos Soares, ex-diretora da Anvisa e hoje consultora da BAT. Um caso típico de porta giratória, quando a pessoa usa da experiência obtida dentro da esfera pública para o benefício posterior dos interesses de clientes privados. A profissional não tinha experiência na vida pública antes de ser nomeada para o cargo em 2017, no governo presidido por Michel Temer (MDB), e permaneceu na agência até 2020. Ela é executiva de negócios do escritório de advocacia Tavares de Propriedade Intelectual desde 2021 e presta serviços para a corporação do tabaco.
Alessandra já havia participado de um evento financiado pela BAT com o mesmo conteúdo, no jornal Valor Econômico, no ano passado, e de outros dois portais: Poder 360 e Metrópole. Ela também dá entrevistas para outros veículos de comunicação, como a CNN Brasil, para defender os interesses da empresa. A revista Veja também publicou um texto da Abril Branded Content, outra divisão de conteúdo patrocinado, sobre o assunto. Dessa vez, sem citações a Alessandra.
E o lobby, obviamente, vai além do que é espalhado pela mídia corporativa. A senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), candidata à Presidência da República em 2022, fez um pronunciamento na mesma semana em que o relatório de Barra Torres foi lido. Em 29 de novembro, a parlamentar defendeu o projeto de lei da qual é autora, datado de 17 de outubro de 2023, que pretende “regulamentar a comercialização e a importação de cigarros eletrônicos”.
A proposta, que fala em regulamentar e fiscalizar, na verdade, derruba a proibição da Anvisa em vigor no Brasil. Em fala a favor do PL 5008/2023, Soraya usa os mesmos argumentos da indústria. “No Brasil, a proibição tem, exatamente, esse efeito: cria um ambiente em que cada um faz o que quer. Basta jogar no Google e procurar ‘comprar cigarro eletrônico’. Nós estamos falando (dados ainda de 2019) de R$ 5 bilhões em impostos, que são perdidos e que poderiam estar gerando recursos para financiarmos o SUS”, disse. A aprovação do projeto seria uma forma de atropelar a decisão da agência antes mesmo de ela ser ratificada.
A senadora apontou a liberação do cigarro eletrônico como uma resposta ao contrabando. “São jovens e são adultos que estão usando produtos contrabandeados, falsificados, que vêm de milícias, de comércios clandestinos, mas que tomaram as ruas, lojas e locais de todo o país com um ar de legalidade que não existe e que faz vítimas na nossa população”, afirmou.
O discurso é muito semelhante ao que é feito pela indústria do tabaco contra a política de preço mínimo do cigarro convencional no Brasil, em defesa de uma flexibilização, com o argumento de combate aos produtos que chegam ilegalmente do Paraguai. Um jogo de cartas repetidas.
Sabe-se o que esse tipo de mensagem quer evitar: a taxação e as restrições a produtos oriundos do tabaco, cujo consumo se quer reduzir, por ser até hoje uma das maiores causas de problemas de saúde da população brasileira e também para os cofres públicos, a exemplo dos impactos econômicos diretos na saúde pública e na Previdência Social, devido à redução da vida ativa de quem adoece pelo uso do fumo.
Em realidade, restringir e tributar desestimula o uso e/ou leva recursos ao Estado, por meio da arrecadação, para bancar o prejuízo que o cigarro causa, como afirma o economista Alan Towersey, auditor da Receita Federal, em reportagem de Raquel Torres para o Joio.
Para Mariana Pinho, coordenadora do Projeto Tabaco da ACT-Promoção da Saúde, o teor da consulta e do relatório de Barra Torres estão no sentido esperado, porque seguem as recomendações da área técnica da Anvisa. Ela lembra que os DEFs não são parte da política de redução de danos e que já existem tratamentos eficazes para abandonar o fumo, oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
A presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, Margareth Dalcolmo, lembra que os DEFs seguem uma tradição da indústria do tabaco de apresentar novos produtos que tornariam o hábito de fumar menos prejudicial à saúde. “É mais uma falácia, assim como foram, em outros momentos, o cigarro com filtro e o cigarro light”, aponta.
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