Nas mãos do mercado, produção de alimentos prioriza soja, que tem financiamento, subsídios e venda garantidos. No segundo ano, governo Lula projeta nova versão da política de abastecimento, enquanto evita contrariar agronegócio
Prioridade no financiamento. Estímulo à agroecologia e à agricultura familiar. Criação de assentamentos. Compra para alimentação escolar. Recomposição dos estoques públicos. Fortalecimento de cooperativas locais. A lista de medidas à disposição para incentivar a produção de arroz, feijão e mandioca é grande. Mas, por enquanto, o que o trio-chave do prato brasileiro pode fazer é torcer para a soja dar errado. O mercado garantido do grão que tomou conta do país tem se consolidado, ano a ano, como uma ameaça maior à alimentação saudável.
No fim de 2023, três decretos em torno da alimentação foram celebrados por organizações da sociedade. Eles instituem a Política Nacional de Abastecimento Alimentar (PNAAB), a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional nas Cidades e a disposição de diretrizes para a promoção da alimentação adequada e saudável no ambiente escolar. Um avanço, mas, por enquanto, o que se tem são linhas gerais depois de um longo ano de expectativas e tentativa de remontar o que foi destruído durante a gestão de Jair Bolsonaro.
Inicialmente, os decretos seriam assinados durante a 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, mas o presidente Lula não compareceu. Uma passagem simbólica de um governo que havia eleito o combate à fome como prioridade.
Tampouco o presidente fez menção às mais novas políticas em suas páginas do X, antigo Twitter, ou do Instagram, onde suas postagens são assíduas. Naquela semana, o trio de políticas de combate à fome perdeu espaço na timeline do presidente para o Dia do Marinheiro, as reuniões do G20 e o convite das princesas para ele comparecer à Festa da Uva em Caxias do Sul.
Pudera que todos os problemas de insegurança alimentar, falta de acesso à alimentação saudável e altos preços de alimentos no país estivessem sanados com três rubricas presidenciais. Mas ter política de abastecimento ainda não significa ter um plano. A política institui diretrizes e ideais, mas é preciso um plano consistente para definir ações práticas, programas e orçamentos mínimos para viabilizá-los. A partir do decreto, forma-se um comitê que tem 180 dias para apresentar uma proposta de plano, o que teremos só em meados de 2024.
A primeira diretriz da PNAAB é abrangente e resume um sistema necessário para alimentar um Brasil inteiro. Prevê a “promoção de sistema integrado de abastecimento alimentar que engloba produção, beneficiamento, armazenagem, transporte, distribuição, comercialização e consumo, com vistas a promover a soberania e a segurança alimentar e nutricional”. Pela sua complexidade é que vários grupos sociais de diferentes realidades regionais gostariam de ser ouvidos.
“Em maio e junho participamos, eu e outros acadêmicos, das discussões de diretrizes. Havia uma expectativa de avançarmos para pensar os instrumentos da política. Mas, depois, essa participação diminuiu”, conta Paulo Niederle, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Sociologia das Práticas Alimentares (SOPAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Em meados de 2023, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) solicitou ao governo que passasse pelo colegiado todo o debate sobre a construção da PNAAB.
“Nós fomos chamados para ouvir as propostas sobre a política em meados de 2023. Levamos ponderações e depois não mais nos chamaram. Me falaram que o plano ia ser lançado na conferência, mas como, se a gente nem teve acesso ao texto?”, questionou Anderson Amaro Silva dos Santos antes do anúncio, dirigente do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e conselheiro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). “O diálogo com o Estado brasileiro está assim: temos espaço para falar, mas a ressonância do que falamos não está sendo a contento”, completa.
As demandas são muitas, dizem os consultados pelo Joio, porque o sistema alimentar abrange questões ainda não digeridas pelo Brasil, como a reforma agrária e os incentivos massivos de produção e distribuição de alimentos pela agricultura familiar. Muitos programas de assistência técnica no país foram descontinuados. Os grandes centros varejistas, como as redes de supermercados nacionais e estrangeiras, dominam a tabela dos preços finais ao consumidor, sem horizontes robustos de alternativas. Os três decretos vislumbram uma “alimentação adequada e nutricional” para todos, mas os números atuais e as projeções futuras apontam para um caminho na contramão da política que saiu do forno nesse verão.
Menos comida, mais commodity
A opção política brasileira das últimas décadas nos levou para uma posição que insistimos em sustentar. É como se o Brasil fosse uma casa, em que os donos do lado de dentro passam fome, e os animais confinados lá fora têm prioridade no suprimento de comida. Futurista que era, George Orwell deve ter imaginado o Brasil atual para escrever A Revolução dos Bichos. Enquanto uma massa de brasileiros raciona alimentos em território nacional, as granjas de porco na China trituram nossa soja abundante, e em crescimento.
O governo até comemora uma recuperação da safra de arroz e feijão mas, no longo prazo, o fundo do prato é ainda mais fundo.
Há 10 anos, na safra 2013/2014, a soja ocupava 30,1 milhões de hectares do Brasil. De lá pra cá, a leguminosa se espraiou pelo território nacional e alcançou os 43,8 milhões de hectares. Na próxima década, chegará aos 55,8 milhões, segundo projeções da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o que significa um aumento de 85% em 20 anos.
O crescimento exponencial da soja é um sonho longínquo para os produtores de alimentos para humanos no país. Os consumidores que têm no arroz e feijão, e ainda na mandioca, a base da cultura alimentar brasileira, ficam na segunda ordem de prioridade da produção agrícola.
A colorida e preta safra de feijão foi cultivada em 3,3 milhões de hectares há 10 anos. Ao invés de aumentar, já que crescemos em 6,5% a população brasileira no período entre os últimos dois censos demográficos, baixamos a parcela de terra que separamos para cultivar feijão. Chegamos aos 2,7 milhões de hectares, uma queda de 18%. E baixaremos mais. A previsão da Conab para a próxima década é haver uma redução de até 48% na área do feijão em 20 anos.
O par da principal proteína vegetal do brasileiro, o arroz soltinho, está se desprendendo cada vez mais da nossa cultura produtiva e alimentar. De 1,4 milhão de hectares plantados na safra de 2023, devemos ter redução de dois terços da área na próxima década.
Será que a tecnologia no campo, que resulta em maior produtividade das lavouras em menores espaços de cultivo, salvará o nosso arroz com feijão? Pelas projeções, não dá para papar essa conversa facilmente.
Considerando um intervalo de duas décadas, a última que passou e a próxima que virá, teremos baixado nossa produção de feijão em 15,3%. No mesmo período, a produção de arroz terá caído quase 20%. Mas os porcos podem ficar despreocupados: a base da sua ração terá um aumento vertiginoso da oferta, de 97,6%.
“Hoje, para financiar uma lavoura de feijão, que é um alimento básico, você paga 4% de juros. Para financiar a soja é 5%, que é commodity. Só que para o produtor é muito mais fácil vender soja que feijão. Na hora de fazer o cálculo, por causa de 1% você escolhe plantar soja”, indica Anderson Santos.
Um pé de soja e um pé de feijão têm estruturas parecidas, o que também favorece o mercado da soja.
“Quando o preço do feijão cai muito, o agricultor mais tecnificado vai para a soja. O agricultor familiar de áreas maiores troca fácil um pelo outro”, explica Walter Belik, fundador do Instituto Fome Zero e professor de Economia da Unicamp. Segundo Belik, sem incentivo de preço e garantia de compra domésticos, não tem como competir com o mercado internacional da soja.
Com o avanço da soja pelo país, principalmente para áreas sensíveis de proteção ambiental, como a Amazônia e o Cerrado, o Brasil alcançou uma posição que causa frenesi em quem olha apenas para a balança comercial produtiva, mas ignora a realidade da fome no país.
Entre os países em desenvolvimento, o Brasil está no topo do pódio entre os mais dependentes de commodities. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas, que fixou um índice para ranquear os mais dependentes, estes países possuem em média, ao mesmo tempo, menor capacidade de desenvolvimento de tecnologias.
As suntuosas máquinas agrícolas que circulam nos comerciais das multinacionais John Deere, Case e outras ainda fazem a cabeça do agricultor familiar médio, que pode ter propriedades de até quatro módulos fiscais, o que em algumas regiões do Brasil chega aos 400 hectares. Mas, para o pequeno agricultor produzir, este tipo de estrutura não resolve o problema de produção em territórios coletivos, como quilombos e assentamentos, ou mesmo em áreas particulares menores ou de terrenos irregulares.
“A gente não tem mais condição de estar no campo produzindo só na enxada. É preciso ter tecnologia avançada para a pequena agricultura e a realidade camponesa”, argumenta Anderson Santos. Segundo o dirigente do MPA, este acesso também deveria passar pelo Estado, com incentivo de crédito subsidiado para aquisição de equipamentos. Ele cita comunidades camponesas da China com cerca de 5 mil habitantes que têm tecnologia para plantar e colher em pequena escala: “É possível ser feito no Brasil, mas falta vontade política e decisão.”
Enquanto a China investe em tecnologia para a pequena agricultura, também compra um terço dos produtos exportáveis do Brasil. Entre os poucos manufaturados que produzimos, o minério de ferro e outros itens, a soja foi responsável pela maior fatia (16%) dos bens exportados pelo país em 2023.
Entre as diretrizes da PNAAB, que deve ser regulamentada em 2024, estão o “fortalecimento da produção de alimentos saudáveis pela agricultura familiar, urbana e periurbana e por empreendedores familiares rurais”, além da proposição de “políticas de fomento, fiscais, tributária, regulatórias e creditícias para ampliar a produção e oferta de alimentação saudável e adequada”.
Partindo do contexto social e produtivo que o Brasil vive hoje, o Joio ouviu duas opiniões que sempre aparecem juntas.
A primeira é que o país possui e retomou grandes políticas de incentivo à produção de alimentos e de combate à fome. Entre elas estão o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Cisternas, este último importante para viabilizar água para a produção em áreas de escassez ou irregularidade no abastecimento de água.
A segunda é que o país não é o mesmo dos governos Lula I e II, que criaram tais políticas, o que sugere que velhas receitas não são suficientes para resolver questões atuais.
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A expectativa de queda também cai sobre uma das heranças alimentares indígenas. A mandioca terá redução das lavouras em 17,5% na próxima década, enquanto a produção deve baixar 12%.
Com desincentivo para produzir, o preço do quilo da mandioca para o consumidor final foi às alturas em 2022, com cerca de 70% de aumento. Os efeitos das mudanças climáticas são uma das causas, mas o pagamento ao produtor é outro. É a velha regra da sobrevivência: quando o preço pago ao produtor cai muito, troca-se de cultura na safra seguinte na tentativa de arcar com as contas.
As hortaliças e os legumes ficam expostos aos mesmos impactos. Em outubro de 2023, o preço médio do quilo do tomate saiu das Ceasas por R$ 4,73, valor 30% mais caro que o praticado no ano anterior. Nos últimos dois anos, entre 2021 e 2023, o preço da alface também subiu na mesma ordem, em 31,5%.
Em 2023, o governo brasileiro soltou alguns créditos para incentivar a produção de alimentos. O Plano Safra da Agricultura Familiar foi de R$ 71,6 bilhões para a safra 2023/2024, o maior volume desde a criação da modalidade de crédito.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também liberou um aporte de R$ 336 milhões para agricultores familiares dos estados da Amazônia Legal. Camponeses dos assentamentos da reforma agrária, mulheres, povos indígenas, comunidades quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais têm prioridade na chamada pública, que não é reembolsável e vai até abril de 2024. O projeto visa a comprar alimentos saudáveis e nutritivos das comunidades camponesas e destiná-los às escolas da região amazônica, além de investir na melhoria da estrutura produtiva.
Mas, se há algum investimento para a agricultura familiar que entrega produtos frescos em circuitos curtos de comercialização, a distribuição massiva e nacional de produtos não perecíveis está prejudicada.
Nos últimos anos, os estoques reguladores de preços, que mantêm o agricultor médio plantando arroz e feijão, seguem ladeira abaixo. As consequências médias são os preços altos ao consumidor final, o que resulta em diminuição do consumo e, logo, em queda do potencial nutritivo. Afinal, produtos ultraprocessados têm preços atrativos em relação aos alimentos de verdade, inflacionados por falta de políticas públicas eficientes. Já o ápice do impacto foi visto na pandemia, quando mesmo autossuficientes em alimentos, boa parte da população do país passou fome.
“O Brasil não tem estoques reguladores. Isso responde a várias perguntas sobre por que nossos preços são altos, por que fomos tão afetados com a guerra na Ucrânia e a Covid-19. Porque não conseguimos, mesmo podendo, absorver choques externos pela via de mercado. Essa é uma política que tem que estar no Plano Nacional de Abastecimento”, indica Walter Belik, da Unicamp.
Mas 2023 passou e não temos nem sinal do retorno da política de estoques. Desde 1987, foi o primeiro ano em que o arroz não foi produto de compra pública para esta regulação. Para o feijão, faz mais tempo que a política deixou de funcionar, há seis anos.
O Joio questionou a Conab sobre políticas em operação para garantir a produção de alimentos estocáveis, como arroz e feijão. Segundo nota enviada pela companhia, o retorno da operação de estoques estratégicos depende da regulamentação da PNAAB, que deve acontecer até abril. A Conab ainda afirmou que mantém a Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) para arroz e feijão, embora o Joio tenha apurado que a compra desses grãos está paralisada no país. A íntegra da nota na íntegra pode ser lida aqui.
Longo caminho da comida
No interior do Rio Grande do Sul, os agricultores familiares começaram a notar, em 2014, um desperdício de combustível, mão de obra e tempo. “Chegava um caminhão com metade da capacidade de carga para descarregar alimentos, e quando esse estava saindo, outro caminhão igual estacionava na mesma escola. Por que não entregamos na mesma viagem?”, conta Bruno Engel Justin, o jovem coordenador da RedeCoop, uma associação que reúne 50 cooperativas de agricultores familiares de várias regiões gaúchas.
Essa cena de dois caminhões meio vazios era comum nas entregas de alimentos do PNAE. Desde então os cooperados se organizam em rede, trocando alimentos frescos e beneficiados entre pontos distantes do estado em até 400 quilômetros.
“Só assim foi possível que municípios como Lagoa Vermelha e Sarandi participassem de uma chamada pública de Porto Alegre”, exemplifica Bruno. Um pavilhão de armazenamento operado pelos produtores, entre pequenos agricultores e assentados da reforma agrária, organiza a logística entre municípios.
O exemplo de organização de distribuição de alimentos é orgânico, mas poderia ser incentivado por políticas públicas. O oitavo objetivo da PNAAB menciona a distribuição por circuitos locais e regionais de produção, destacando a necessidade de medidas que organizem o armazenamento e a conservação de alimentos. O fortalecimento de iniciativas populares de abastecimento alimentar está entre as premissas da política, porém não explicita como o governo pretende estimular essas redes.
A política de abastecimento também menciona que devem ser “priorizados alimentos in natura e minimamente processados”. Mas não há consumo de alimentos saudáveis sem manejo de alimentos perecíveis e que são produzidos, em sua maioria, pela agricultura familiar.
O PAA e o PNAE têm um ponto forte nesse processo, porque os projetos aprovados pelo programa preveem distribuição rápida e regional, em que grandes custos com armazenagem, refrigeração ou logística são atenuados.
Mas a distribuição de alimentos ainda é super concentrada no país. A extensão continental brasileira conta com 23 centrais de abastecimento, as chamadas Ceasas, que viabilizam a logística de frutas, legumes e verduras por atacado. Seus preços variam conforme a distância que os caminhões percorrem das áreas de produção às centrais, as despesas de funcionamento e a oferta e demanda de produtos. Um terço da distribuição de alimentos nacional é feita pelas centrais de São Paulo e Minas Gerais, ambas concentradas na região sudeste do país.
Para Walter Belik, da Unicamp, as Ceasas têm um status de autoridade. “Assim como temos as autoridades monetárias, como o Banco Central, o Ministério da Fazenda, o Banco do Brasil, as Ceasas são nossas ‘autoridades alimentares’. Se você tiver as autoridades coordenadas em uma política, a coisa funciona”, diz.
Por pouco as principais Ceasas do país não ficam totalmente de fora dessa política de Estado. A Ceagesp, de São Paulo, e a Ceasaminas, de Minas Gerais, estavam contempladas no Plano Nacional de Desestatização da administração de Jair Bolsonaro. Empresas privadas definiriam a gestão e o preço para o abastecimento de alimentos básicos, não fosse o cancelamento do processo. Entregues à iniciativa privada, as Ceasas deixariam o status de “autoridades alimentares”, uma vez que visariam ao lucro sobre o pleno acesso.
Mas é preciso que o governo avance no modelo das Ceasas, que é da década de 1960.
“Precisamos pensar em sistemas descentralizados, redes mais horizontalizadas, não para competir com as Ceasas, mas para estabelecer modelos paralelos e ramificados”, defende Paulo Niederle, da UFRGS.