Ministério do Meio Ambiente admite ver “sentido” em exigência do agro para ficar de fora, mas pede que setor “repense”. Agropecuária é principal responsável pelas emissões do Brasil
A expectativa de uma aprovação rápida da regulação dos mercados de carbono no Brasil deu lugar a incertezas: este ano, o Senado não registrou qualquer movimentação no projeto de lei, que agora aguarda a nomeação de um relator para abrir uma nova etapa de debates em plenário. O que é certo é que a bancada ruralista deve continuar a dar o tom da discussão.
Em outubro, a Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado aprovou por unanimidade o projeto depois de a relatora da matéria, a senadora Leila Barros (PDT-DF), fazer um acordo com a bancada ruralista. O acordo levou à exclusão do agronegócio das obrigações previstas no futuro Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). Logo em seguida, em dezembro, a Câmara dos Deputados aprovou uma nova versão, com uma série de alterações, o que devolveu a tramitação aos senadores.
O argumento usado foi de que não existem formas para medir a emissão de carbono de atividades agropecuárias e que os principais mercados de carbono do mundo não incluem agricultura e pecuária na regulação. Como a maioria das emissões vêm do rebanho bovino, argumenta Shingueo Watanabe, pesquisador sênior do Instituto Talanoa, não há formas precisas de calcular a quantidade de emissões de cada propriedade.
A exclusão do agronegócio do projeto foi alvo de críticas de grupos da sociedade civil, já que a agropecuária responde por 73% das emissões, de acordo com pesquisa realizada pela plataforma Sistema de Estimativa de Emissão de Gases Estufa (SEEG), divulgados em outubro passado pelo Observatório do Clima. Esse alto percentual está relacionado a questões inerentes à atividade agropecuária, como as emissões decorrentes da criação de gado, e a características do setor no Brasil, como o desmatamento e as mudanças no uso da terra.
Emissões do agro
Fonte: Plataforma Sistema de Estimativa de Emissão de Gases Estufa (SEEG)
Outra vitória do agro
No entanto, quando o projeto seguiu para a Câmara, o agro ganhou um benefício adicional. O texto final do projeto, costurado pelo deputado Aliel Machado (PV-PR), permite que fazendeiros possam gerar créditos de carbono por meio da manutenção de Área de Preservação Permanente (APP), de reservas legais e de áreas de uso restrito, algo que já são obrigados a fazer legalmente, pelo Código Florestal. Os críticos ao dispositivo criado argumentam que a proposta traz para o mercado créditos que não têm adicionalidade, pois manter a reserva legal e APP são obrigações dos produtores.
“A gente vai ter que ter muito cuidado com quais atividades serão autorizadas a gerar crédito”, afirma, em entrevista ao Joio, Stela Herschmann, especialista em política climática do Observatório do Clima.
“É muito comum ver o discurso do agronegócio sobre sua sustentabilidade, bravatas de que é o agro mais sustentável do planeta, citando apenas obrigações legais como se fossem parte dessa sustentabilidade. Não se pode permitir que as fazendas que mantêm vegetação nativa por obrigação legal usem isso como um fator gerador de crédito”, afirma a especialista em clima.
O Código Florestal, aprovado em 2012 pela própria bancada ruralista, prevê índices de preservação que variam de acordo com o bioma, mas que, independentemente disso, são uma obrigação legal.
Para ela, o projeto oficializa o “faroeste de carbono florestal” no país. “A ganância dos ruralistas, além de não levar a lugar nenhum, já que ninguém comprará esses créditos, cria ruído num PL que estabelece um instrumento para cumprir suas metas climáticas.”
“Nasce apequenado”
O projeto regula as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) de empresas que emitem acima de 10 mil toneladas ao ano e cria o sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE). Esse sistema funciona por meio do modelo de cap and trade, aos moldes do mercado europeu. Ou seja, prevê-se que o governo estabeleça um teto – cap – de gases de efeito estufa que empresas podem emitir. O limite é dividido nas Cotas Brasileiras de Emissões (CBEs) e a quantidade de CBEs com a qual cada empresa contará por um determinado período de tempo. Assim, as empresas poderão comercializar as CBEs entre si com o objetivo de se manter abaixo do teto.
As empresas que emitem entre 10 mil e 25 mil toneladas de carbono ao ano devem respeitar as determinações de monitorar e informar suas emissões. Acima disso, as empresas devem realizar a conciliação de emissões, ou seja, ter um plano para reduzi-las. Caso não cumpram, no PL há previsão de multa de até 5% do faturamento da empresa, assim como suspensão parcial ou total da atividade. A criação do sistema estava prevista desde 2009, na Política Nacional sobre Mudança Climática, mas não havia sido instituída.
Para a analista do Observatório do Clima, “quando se cria um mercado de carbono num país que deixa de fora o segundo setor que mais emite gases de efeito estufa, está se criando um mercado que já nasce apequenado. É bastante problemático”.
Parte da solução
Ao Joio, Ana Toni, secretária nacional de Mudanças Climáticas do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, disse que “eles o [agro] têm alguma razão” em querer ficar de fora do projeto de mercado de carbono. (Confira a íntegra da entrevista com a secretária do MMA).
“Quando se olha para as experiências de mercado de carbono no mundo, são 28 países que têm mercado de carbono. Somente dois [Austrália e Nova Zelândia] consideram a área de agricultura”, aponta. “Não é surpresa que o agro tenha preferido estar fora. E a segunda questão é que talvez eles tenham também razão em dizer que as metodologias de medição do crédito de carbono para a integridade na área de energia, ela não é muito consolidada na área do agro. Entretanto, no caso brasileiro, a gente sabe que o agro é um grande contribuidor das emissões brasileiras. Então eles deveriam fazer parte da solução também. E talvez mais do que em países onde a agropecuária é menor.”
Sobre as alterações feitas no texto na Câmara, a secretária acredita que “um dos grandes problemas foi a mistura de um mercado de carbono regulado com o mercado de carbono voluntário. Tentou-se, no projeto de lei, colocar ambos como se não houvesse diferença. E acho que isso é um problema”, avalia.
Existem dois tipos de mercado de carbono. Um deles é o mercado voluntário, do qual participam as empresas emissoras, estabelecendo metas auto impostas de redução de emissões e que buscam créditos de carbono para compensar as emissões de poluição que já foram realizadas. Os mercados regulados ou compulsórios são geridos pelos Estados. Ou seja, por meio de uma legislação, o próprio Estado define as metas de redução para as fontes emissoras e pode, também, estabelecer uma série de mecanismos de compensação.
As discussões em torno da criação de um mercado regulado de carbono no Brasil vêm de longa data, mas se avolumaram nos últimos anos, em meio a um novo boom de negociações. O crescimento se deu especialmente após o Acordo de Paris, definido em 2015 no âmbito da Conferência das Partes, conhecida como COP.
O debate no Congresso teve como ponto de partida a apresentação do PL 528, em 2021, de autoria do deputado Marcelo Ramos (PL-AM). Ao longo do tempo, o texto proposto foi se transformando, passando por diversas revisões, em paralelo ao surgimento de outras propostas, até que se chegou ao PL 182/2024, que atualmente se encontra no Senado Federal.
“Trata-se de um texto mais robusto em comparação às propostas discutidas no passado, e que em geral traz regras e informações que proporcionam uma maior segurança jurídica à sua aplicação. Entretanto, sob o aspecto legal, alguns pontos da redação ainda trazem incertezas sobre como deverão ser aplicados na prática e merecem um olhar mais analítico”, avalia Juliana Marcussi, Consultora Sênior em Mercados de Carbono da Laclima, organização de advogados de mudanças climáticas na América Latina, e advogada em direito das mudanças climáticas, direito ambiental e práticas ESG.
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Faça parteRuralistas precisam ser enquadrados
Outro pesquisador que demonstra preocupação com a retirada do agro é o engenheiro florestal Carlos Pantoja Ramos, doutorando do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares da Universidade Federal do Pará (INEAF/UFPA).
“Já está evidente que o agronegócio precisa ser responsabilizado por tudo que tem feito em termos de emissão de gases de efeito estufa. Faço um destaque para a atuação do agro no Cerrado, no Matopiba, que é campeão de queimadas. O agro precisa sim estar dentro do sistema brasileiro de emissões, ele precisa ser enquadrado”, diz.
Para Maureen Santos, coordenadora da organização social FASE – Solidariedade e Educação, ao se deixar de fora do projeto o agro e a pecuária, acaba-se excluindo o setor principal que justificaria para alguns se ter um sistema como esse para pensar numa transição setorial de redução de emissões.
No final do ano passado, o Grupo Carta de Belém, do qual a FASE é integrante, publicou um documento intitulado “Parecer dos Povos sobre a Proposta de Adoção de um Sistema de Cotas e Comércio de Poluição no Brasil”, no qual afirmam, entre outras coisas, que a proposta legislativa não convence em relação à sua capacidade para proteger o meio ambiente e o clima, além de garantir os direitos socioambientais e à terra/território de povos indígenas, comunidades tradicionais e camponesas.