Prometida como “a melhor Coca-Cola de todas”, versão zero registra aumento de quase 30% nas vendas. Mas, longe do discurso de “novo normal”, bebidas podem aumentar o risco de várias doenças
“A melhor Coca-Cola de todas”, promete a campanha de marketing da marca. Zero açúcar, zero caloria e, supostamente, com o mesmo sabor da original. Até as embalagens se tornaram mais parecidas a partir de 2021: o preto predominante da zero ganhou a tradicional cor vermelha – e distinguir uma da outra na prateleira do mercado ficou cada vez mais difícil. O segredo por trás dos refrigerantes sem caloria é o uso de adoçante – ou edulcorantes, termo que aparece nas embalagens.
A versão sem açúcar virou a aposta principal para impulsionar as vendas da marca. Em 2021, o CEO James Quincey prometeu: a versão zero puxaria a empresa para o crescimento. E eles apostaram alto para isso. Em 2018, a Coca original cedeu seu tradicional espaço à irmã zero nas propagandas de Natal. Investiram ainda em campanhas para atrair atletas e um público mais ligado aos esportes. Em 2023, nos Estados Unidos, as equipes da Coca Zero iniciaram uma busca pelo “melhor torcedor da história” entre as equipes universitárias de futebol americano.
Os esforços deram certo. Só na América Latina, a Femsa (empresa mexicana que distribui grande parte do refrigerante na região) registrou um aumento de 15% no volume vendido de Coca Zero no último ano. Segundo o último relatório financeiro da empresa, “no Brasil, a Coca Zero surgiu como a opção preferida entre os consumidores”. Em 2023, os brasileiros tomaram 515,9 milhões de litros de Coca Zero – um aumento de 28,9% em relação ao ano anterior. Vale lembrar que esta é apenas uma das engarrafadoras do sistema Coca-Cola no Brasil. A Solar, que domina o mercado no Nordeste, apresentou crescimento de 38% nas vendas da linha de “baixas calorias” no último trimestre de 2023.
A tentativa da indústria de afastar a pecha de vilã da saúde vem por motivos financeiros: o consumo de refrigerantes despencou dos anos 1990 para cá. Entre 2007 e 2018, segundo o Ministério da Saúde, os brasileiros cortaram pela metade o consumo dessas bebidas. Nos EUA, um dos maiores mercados destes produtos, o consumo per capita de refrigerantes caiu de 172 litros por ano para 111 litros, na última década.
E as agências reguladoras trabalham para reduzir ainda mais o consumo. A exemplo da política adotada no Chile, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou, em 2020, a obrigatoriedade de alertas de alto teor de gorduras saturadas, açúcar e sódio nas embalagens por aqui. Os rótulos começaram a mudar em 2022. Países como França, Noruega, México e Portugal criaram impostos extras sobre essas bebidas – o governo brasileiro enviou, recentemente, como parte da regulamentação da reforma tributária uma proposta semelhante para aumentar os tributos sobre refrigerantes.
A batalha da comunidade científica contra o consumo dessas bebidas é pela saúde. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o hábito de tomar refrigerante está intimamente relacionado às altas taxas globais de sobrepeso e obesidade, que atingem quase 2 bilhões de pessoas, e que são responsáveis por problemas cardiovasculares (principal causa de morte no mundo). Só para se ter ideia, uma lata de Coca-Cola de 330 mL já carrega mais açúcar do que um consumo diário moderado recomendado pela OMS: 35 gramas.
Daí veio a jogada da indústria: substituir o açúcar pelo adoçante. Zero caloria, zero culpa no consumo, zero responsabilidade das marcas pelas altas taxas mundiais de obesidade, desenvolvimento de diabetes e doenças cardiovasculares. Mas não é bem por aí – muito menos saudável, como alguns especialistas (a Coca, inclusive, já enfrentou um escândalo, após financiar estudos para minimizar a influência de bebidas açucaradas na obesidade) .
Os malefícios da Coca Zero
Em agosto do ano passado, a OMS colocou o aspartame, um dos edulcorantes mais utilizados em refrigerantes, na lista de produtos “possivelmente cancerígenos”. Isso significa que existe um limite máximo de consumo seguro. No caso do aspartame, o órgão recomenda até 40 mg por quilo corporal. Segundo três estudos avaliados pela OMS, esse aditivo tem potencial de causar um tipo de câncer no fígado.
Meses antes, em maio, o mesmo órgão também publicou uma diretriz contrária ao uso de adoçante no controle da obesidade e na redução de risco ao desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis. A recomendação se baseia em estudos que apontam o oposto do que prometem os adoçantes: ganho de peso e maior propensão ao desenvolvimento de diabetes tipo 2.
“A indústria nada de braçada, porque é muito difícil fazer esses estudos. Precisaríamos isolar o efeito, fazer uma avaliação com ensaio clínico. Você precisaria colocar um grupo de pessoas num local fechado, dar a elas uma determinada quantidade de produtos, e nada para outro, e avaliar, depois de um tempo, se a pessoa desenvolveu ou não determinada doença”, explica Daniela Canella, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, da USP, e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
“Mas como você vai fazer isso com seres humanos? A gente faz com animais, por isso o pressuposto de que é prejudicial. Aí a indústria diz que, como não existem estudos com humanos, é provável que não tenha o mesmo efeito, o mesmo tipo de câncer. Nenhum comitê de ética aprovaria um estudo desse tipo, de longo prazo, com humanos”, completa.
O que a ciência já sabe
Em 2020, uma revisão de estudos feita por pesquisadores da Universidade do Sul da Austrália, com mais de 5 mil adultos, descobriu que os consumidores de produtos à base de adoçantes artificiais ganharam mais peso do que os outros. Por dois motivos: a segurança do uso de alimentos lights ou diets os estimulava a comer mais; e uma alteração na microbiota intestinal, que levaria ao ganho de peso.
Um estudo mais recente da Universidade Harvard, de 2023, associou três adoçantes artificiais a um risco maior de acidentes cardiovasculares (AVC) e doenças cardíacas: aspartame, acessulfame de potássio e sucralose – os dois primeiros estão presentes na fórmula da Coca Zero. A equipe da pesquisadora Teresa Fung recebeu detalhes diários da dieta de 100 mil voluntários ao longo de nove anos, além de histórico médico, estilo de vida e hábitos de saúde. Cerca de 40% dos participantes consumiam até 42 mg por dia de adoçante. Segundo o estudo, esse grupo apresentou um risco 9% maior de doenças cardiovasculares e 18% maior de derrame.
Outro problema com o uso de edulcorantes é a mudança no paladar. Nos últimos anos, fortaleceu-se a tese de que o excesso de ingestão de alimentos doces vicia o cérebro – e faz com que nosso organismo prefira o consumo destes produtos, em detrimento de outros. “Quando você substitui o açúcar pelo edulcorante, você continua trazendo o sabor doce para o paladar. Não existe uma tentativa de se habituar com o não doce, apenas substitui um pelo outro, então, no longo prazo, você continuará em busca desse sabor”, explica Mariana Ribeiro, analista de pesquisa do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec).
Há ainda associações entre desenvolvimento de alergias e maior risco de câncer pela presença de corantes, principalmente uma substância comum tanto nos refrigerantes de cola, quanto em biscoitos: o caramelo 4. “Vários países proíbem o uso deste corante, mas no Brasil ainda é liberado. Ele tem especificamente um potencial de risco para o desenvolvimento de câncer. Mas as alergias, no geral, estão muito relacionadas ao consumo de corantes”, afirma Canella.
Por último, a presença de ácido fosfórico pode ainda causar redução de absorção de cálcio pelo organismo. “De forma simples, é possível dizer que o fósforo impacta na absorção de cálcio. Então o consumo excessivo pode dificultar essa absorção. Mas o fato é que a substituição do açúcar não traz nenhum benefício, não há nenhum nutriente nesses refrigerantes, eles continuam sendo um ultraprocessado”, explica Luisa Gazola Lage, do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP.
“Entre os ultraprocessados, os refrigerantes são muito emblemáticos, porque não faziam parte da alimentação até pouco tempo. E eles não agregam em absolutamente nada! Não podemos nem dizer que não fazem mal, porque as evidências mostram o contrário. Os sucos naturais têm mais calorias, mas pelo menos têm nutrientes. Para cortar calorias, tomem água”, complementa Canella.
Se em adultos, os riscos de toxicidade preocupam, com crianças pode ser ainda pior. “A quantidade de consumo de edulcorantes considerada segura vale para todas as faixas etárias, mas e o público infantil? As crianças são proporcionalmente menores, então existem questionamentos sobre esse dado de toxicidade entre elas”, afirma Ribeiro.
Vale lembrar que recentemente foi publicada a revisão mais ampla feita até aqui sobre evidências científicas associadas ao consumo de ultraprocessados. Os pesquisadores encontraram uma associação com 32 agravos de saúde, incluindo diabetes, enfermidades cardiovasculares e morte prematura.
“Doenças crônicas se desenvolvem a longo prazo, de forma silenciosa, então, qualquer coisa que afete o desenvolvimento das crianças pode ser irreversível. Isso acontece não só pelo consumo dessas substâncias, mas também pela substituição de alimentos saudáveis por elas. E é uma fase de formação do hábito alimentar – e esses são alimentos hiper palatáveis. As crianças vão preferi-los no lugar de coisas saudáveis”, complementa Gazola.
“Tem edulcorante também na gelatina, no biscoito, então é difícil hoje estimar se as pessoas estão consumindo uma quantidade segura ou não.”
Daniela Canella, pesquisadora do Nupens
Saída pelo rótulo
A indústria de refrigerantes se defende com o argumento de que o uso de adoçantes está abaixo do máximo recomendado pela OMS. De fato, uma latinha de 350 ml de Coca, por exemplo, tem 42 mg de aspartame, 52,5 mg acessulfame de potássio, e 94,5 mg de edulcorante ciclamato de sódio – os três são adoçantes artificiais. Até chegar aos limites estabelecidos pela organização, uma pessoa precisaria tomar dezenas de litros de refrigerante zero por dia.
O problema é que os edulcorantes não estão presentes apenas nos refrigerantes. “Tem edulcorante também na gelatina, no biscoito, então é difícil hoje estimar se as pessoas estão consumindo uma quantidade segura ou não. A legislação define a quantidade de cada alimento, então essa combinação com outros produtos é uma dificuldade para entender o potencial de toxicidade na alimentação”, diz Canella.
É por isso que o Idec, durante o debate sobre a nova rotulagem, defendeu o estabelecimento de alertas também para a presença destes aditivos, como aconteceu na Argentina e no México recentemente. À época, a Anvisa afirmou não haver evidências suficientes de que os adoçantes pudessem ser nocivos. A agência não levou em conta, porém, que o alerta para açúcares poderia levar a uma substituição massiva por adoçantes, como se deu no Chile.
“A agenda regulatória da Anvisa deste ano prevê a discussão sobre edulcorantes. Como eles não são nutrientes, aparecem numa regra de rotulagem geral. Com essa justificativa o alerta sobre edulcorantes não passou”, conta Ribeiro. As outras duas pesquisadoras ouvidas pelo Joio também mencionaram a importância em criar alertas sobre a presença destes aditivos.