Em cinco anos, as buscas na internet pela palavra “proteína” dobraram. Influenciadores estimulam consumo muito mais alto que o recomendado por órgãos de saúde, e num país que tem abundância de alimentos
A proteína é um macronutriente dotado de superpoderes. Vive dias de glória, enquanto as gorduras e os carboidratos atravessam uma longa e persistente crise de imagem. Paradoxalmente, ocupa também o centro da tensão entre alimento e meio ambiente nas discussões sobre o futuro do sistema alimentar. Hoje é o elo fundamental da mais importante relação agro-exportadora da balança comercial brasileira.
Entender e esboçar uma arqueologia do saber a respeito das proteínas tornou-se imperativo na medida em que o tema vem ocupando um espaço cada vez maior em nossa rotina como um projeto que cobre sistemas alimentares.
É bom deixar claro, antes de seguir adiante, que esse texto não pretende defender ou condenar o consumo de proteína animal. Também é importante ter em mente que se você está preocupado em saber quantos gramas de proteína há em um filé, no ovo ou em uma porção de grãos, é bem provável que faça parte do grupo de brasileiros que ainda exercem escolha sobre o que comer.
Na versão plant based ou na promessa da carne cultivada, as fontes alternativas de proteína para muitos podem representar esperança nas discussões sobre o futuro dos sistemas alimentares.
Na perspectiva dos hábitos, protagoniza as recomendações para quem busca ganhar massa muscular, conquistar hipertrofia ou está em processo de emagrecimento. No vai-e-vém das dietas, a proteína sai ilesa.
Também é a aposta da indústria de alimentos em um cenário pós-glutidas, as canetas que vêm sendo utilizadas para o tratamento da obesidade (Ozempics e afins). Entre os (vários) efeitos indesejados dessa nova geração de medicamentos, está a perda de massa muscular.
É a razão de existir de um mercado que em poucas décadas se tornaria bilionário, o de whey protein, impulsionado, em grande medida, pela necessidade de dar destinação a um excedente da produção leiteira dos Estados Unidos e a disseminação de um way of life em que se espera do corpo a eficiência máxima e dos alimentos, funcionalidades.
Todas essas questões foram aparecendo de forma transversal em muitas das reportagens e pesquisas que venho fazendo no Joio. E transbordaram também para minha vida pessoal desde que incluí atividade física de forma mais consistente em minha rotina.
Os algoritmos fizeram o seu papel: entre variados modismos no cardápio das redes, venho sendo bombardeada com receitas de bolos, tortas, pão, pudins, mousses protéicos; top cinco alimentos ricos em proteína; recomendações sobre consumo diário e a recente trend “o que eu como em um dia” em que, quase sempre, lá está ele, o whey.
Fora das redes, no mundo offline, as mais variadas versões de whey protein e outros suplementos alimentares ocupam um espaço cada vez maior, paredes inteiras muitas vezes, nos empórios que vendem temperos e alimentos à granel, um modelo de comércio comum no Rio de Janeiro, de onde escrevo.
Não é por acaso que lojas de produtos naturais tenham incluído em seu portfólio whey e uma variedade de suplementos alimentares até pouco tempo atrás voltados ao universo fitness, ainda que de natural eles não tenham nada.
A palavra proteína passou a ganhar ares de uma virtude sine qua non nas discussões sobre saúde, atividade física, emagrecimento e hábitos alimentares. E a estampar rótulos de novos ultraprocessados, ultrapassando os limites do universo maromba em barrinhas e bebidas prontas em mercados e até farmácias.
É curioso pensar que a proteína parece ser tanto o problema, quanto a solução dependendo do prisma de análise. Nessa discussão, alguns consensos podem ganhar contornos distintos, podendo servir, digamos, a diferentes senhorios.
Um protagonismo que se renova
Longe de ser um modismo, a obsessão com a proteína é um elemento que se renova e se adapta com o passar do tempo, desde que este macronutriente ultrapassou os limites da Química para adentrar na então jovem ciência da Nutrição, há mais ou menos 150 anos.
Papel importante neste processo teve um cientista e empresário alemão, Justus Von Liebig, considerado o pai da ciência nutricional moderna. Ele foi responsável, entre várias invenções, por dois produtos que revolucionaram a indústria de alimentos: o primeiro substituto para o leite materno e o extrato líquido de carne.
Este produto evoluiu para a carne enlatada, até hoje presente nos supermercados e na “culinária” inglesa. Falamos mais detalhadamente sobre Liebig no episódio em O Império da Proteína, no Prato Cheio.
“As crenças sobre a carne se enquadravam perfeitamente em ideologias de superioridade cultural, racial e nacional – e o conceito de proteína estabeleceu uma aparente base científica para estas crenças”, contam Blaxter e Garnett, autores de Primed for power: a short cultural history of protein. Em um contexto de expansão da força de trabalho, escassez de alimentos e urbanização, cientistas da época buscavam respostas para questões como: o quanto um operário ou soldado deveria comer para obter rendimento máximo com custo mínimo?
É neste contexto que a carne, a bovina especificamente, passa a ser vista entre as proteínas como a de melhor qualidade, atrelada à ideia de força física e superioridade. Uma alegação renovada mais de cem anos depois de forma espantosamente eficaz com o marketing do whey protein, com a diferença de que no século 21 os ideais de força muscular parecem ter se estendido ao corpo das mulheres.
A preocupação com um suposto déficit no consumo de proteína atingiria seu auge na década de 1950, em mais um exemplo do papel ambíguo que as guerras exerceram sobre os sistemas alimentares. Estabelecer padrões nutricionais foi a primeira missão da FAO, fundada em 1945 como braço da ONU para a Agricultura e Alimentação. Esses padrões também serviriam de base para a produção agropecuária e a indústria de alimentos.
“Houve primeiro a ideia de que em alguns países existia uma deficiência de proteína, países da África Central, que consumiam apenas banana, mandioca, coisas que eram calóricas e tinham baixo teor de proteína. E aí vem o nome de uma doença que é popular em alguns países da África, o kwashiorkor”, conta Jaime Amaya Farfan, professor aposentado e hoje colaborador da Faculdade de Engenharia de Alimentos, da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp.
“E se criou o conceito de que a proteína era o centro da desnutrição e isso não é verdade. As proteínas ganharam um halo de dignidade celestial. Depois isso ficou conhecido como protein fiasco, a grande desilusão da proteína. Porque se viu que os compostos dos produtos vegetais, ou seja, frutas, legumes, hortaliças e etc., eram tão importantes para uma boa saúde quanto as proteínas”, explica Farfan, que participou de duas das reuniões promovidas por FAO e OMS, já nos anos 2000, e dedicou toda a vida a pesquisar as proteínas.
Os hábitos de populações do Sul Global só passaram a ser levados em consideração pelo grupo de cientistas que periodicamente se reuniam para discutir esses padrões a partir dos anos de 1970. Ao longo de praticamente cem anos, as pesquisas sobre consumo mínimo recomendável para a manutenção da saúde tomaram por base hábitos de populações que tinham alto consumo de carne.
Com o avanço do conhecimento sobre nutrição e a complexidade da interação dos alimentos com o nosso organismo, há alguns anos o padrão mínimo de consumo de proteínas vem se mantendo estável, entre 0,6 e 0,8 grama por quilo de peso corporal.
Muito abaixo do que recomendam influenciadores fitness e nutricionistas patrocinados por fabricantes de whey e outros suplementos. “Você não é obrigado a consumir whey. O que é importante você fazer? Calcular a quantidade certa de proteína pra você. Os estudos dizem que 1,2 grama vezes o quilo corporal é pra saúde e qualidade de vida. Se você tem fins de performance, massa muscular, a partir de 1,6 grama por quilo de peso corporal. Se é atleta, 2 gramas para fins de hipertrofia”, aconselha Renato Cariani, o rosto mais conhecido da Growth, a mais famosa marca de suplementos do Brasil.
Proteína pra quem?
No aplicativo da Growth, a recomendação de proteína que recebi após escolher o vago objetivo de “emagrecer” foi de 192 gramas diárias, em uma dieta de 1744 calorias totais. Isso representa 3,8 vezes o teto da recomendação da OMS (cerca de 50g) para uma pessoa com o meu peso.
“Vemos pessoas consumindo excesso de proteína, tanto de carnes, quanto de whey. É comum no fisiculturismo consumir três gramas, três gramas e meio. São casos que não deviam ser usados como bom exemplo. Por várias razões. Uma delas é a alteração da microbiota intestinal e a inflamação sistêmica, condição que pode levar a um problema crônico. Diria que 1,5 grama por dia, por quilograma, já chegou ao máximo. E não deveria ser uma condição de consumo permanente nesses níveis”, avalia o professor Farfan.
É evidente que apenas com alimentos é muito difícil bater um patamar que contraria o próprio apetite. Em condições normais de saúde, ainda é o nosso melhor guia.
A combinação do imperativo da praticidade com a falta de informação renova a crença do déficit protéico em quem provavelmente já consome proteína suficiente. E fez crescer um mercado gigantesco em torno desses produtos. Falamos sobre isso no episódio O Milagre do Whey, no Prato Cheio.
A ironia é que a inovação que o whey representa esteja talvez longe daqueles que efetivamente poderiam se beneficiar de um aporte adicional de proteína, o que nos leva a refletir para quem ou quais interesses o avanço científico na indústria de alimentos tem servido.
Como explicar, por exemplo, a lógica da linha Nutrem, da Nestlé, vendida como suplemento para adultos acima de 50 anos e idosos composto basicamente por leite ou composto lácteo e açúcar?
“Tomo whey de segunda a sexta porque o tempo que eu tenho pra comer no lanche da tarde é tão pequeno que não consigo mastigar um sanduíche pronto, quem dirá comer algo mais elaborado”, relatou um de nossos seguidores da página do Joio no Instagram, em um eloquente exemplo da lógica por trás desses produtos e da própria indústria de ultraprocessados.
Em cinco anos, o interesse por proteína nas buscas na internet dobrou no Brasil. O mesmo aconteceu com a palavra whey e com buscas sobre o quanto tem de proteína em alimentos como ovo ou bife. Um indicador de que os hábitos alimentares dos brasileiros ainda se baseiam em comida de verdade? Talvez.
E é aqui que o primeiro consenso – o do déficit de proteínas – passa por um turning point narrativo importante na direção de outro consenso: a preocupação com o consumo se transfere para a produção. Teremos proteína suficiente para alimentar uma população que cresce e se urbaniza a passos largos?
Projeções que indicam a necessidade de produzir mais proteína se fundamentam no aumento da renda e em processos de urbanização. E são o principal argumento por trás de investimentos vultosos, inclusive de grandes frigoríficos, como a JBS, nas proteínas alternativas, sejam de base vegetal ou cultivada em laboratório – esta ainda marcada por mais dúvidas do que certeza.
O problema é que essas estimativas se baseiam em um consumo alto e bastante desigual entre regiões do mundo, entre países e suas populações, e apostam em mudanças nos padrões alimentares, variando conforme o nível de desigualdade e o lugar que se ocupa no tabuleiro geopolítico global.
O Brasil é um exemplo notável dessas contradições, ocupando lugar de destaque no consumo e também protagonismo na produção, em carne ou grãos exportados que vão ser convertidos em proteína animal.
Estamos em terceiro lugar, atrás apenas de Estados Unidos e Argentina, entre os maiores consumidores de carne (bovina, suína e de frango) entre 35 países estudados por OCDE e FAO. No entanto, o cálculo dos dados per capita talvez não seja capaz de capturar as profundas desigualdades em um país de proporções continentais e realidades muito diferentes quando o assunto é alimentação.
Nesse sentido, para a esmagadora maioria da população brasileira o significado do consumo de carne passa longe da discussão sobre saúde, sobre o futuro dos sistemas alimentares ou mesmo sobre as questões éticas relacionadas ao bem-estar animal.
Não por acaso, a picanha voltou ao debate político e foi um dos motes da campanha que levou Lula de volta ao poder, em 2022.
E foi um certo incômodo com a cobrança direcionada ao Brasil e à China que levou a pesquisadora Mariana Hase Ueta a desenvolver sua pesquisa sobre o tema. Doutora em sociologia pela Unicamp, investigou as percepções a respeito do consumo e impacto ambiental do consumo de carne no Brasil e na China.
“Foram dois países em que cresceu muito o consumo de carne. Quando a gente fala de alimentação e carne, esses dados nunca vêm sozinhos, eles nunca vêm avulsos. Ao longo de três gerações, houve uma melhora no consumo e nos padrões de vida dessas populações”, explica. Aspectos culturais, afetivos e o significado da mobilidade social que o consumo de carne pode representar apareceram tanto lá, quanto cá nos relatos colhidos por Mariana, que deu à tese o título “O Sabor da Prosperidade”.
Ler a sua pesquisa me fez lembrar de uma cena que jamais saiu da minha cabeça. Em 2018, participei de uma ação de voluntariado no Refettório Gastromotiva, um projeto que serve diariamente refeições gratuitas feitas por chefs a partir de doações de alimentos. Naquela noite, havia 92 pessoas no salão, gente que morava nas ruas, outras apenas aparentavam não ter o que jantar em casa. As refeições saíam da cozinha empratadas, em série, e nós, os voluntários, aguardávamos em fila para servir. Pude observar a frustração no rosto de muitos quando perceberam que o menu daquela noite não tinha carne, embora estivesse muito gostoso e completo do ponto de vista nutricional.
Muitos devoraram ali mesmo uma bolsa grande de frutas doadas pelo projeto, mesmo após terem feito uma refeição completa.
Discutir o paradoxo da proteína e o futuro do sistema alimentar necessariamente passa por mudanças em nossa dieta. Mas isso requer também vislumbrar um novo cenário em que cozinhar as próprias refeições não seja um fardo pesado demais. E isso está longe de responsabilizar os indivíduos por falta de tempo. Ou pelo consumo de carne.
“A China, nos anos 50, viveu a grande fome. Muitos morreram porque não tinham acesso à alimentação. Quando a gente olha o consumo de carne da China hoje, é muito fácil falar que aumentou. Sim, graças a Deus. É pra celebrar”, conclui Mariana.