O Joio e O Trigo

Demanda europeia por carne sem desmatamento pressiona Brasil a aprimorar monitoramento de animais

, especial para o Joio

País discute novo modelo de rastreabilidade da cadeia bovina, e sociedade civil exige rastreio socioambiental do gado

Em breve, o Brasil conhecerá as novas bases que irão pautar o tema da rastreabilidade na cadeia bovina no país. Ou seja, o que iremos saber sobre a origem da carne que é consumida aqui, comprada nos mercados e açougues, e, também, enviada para outros países. Os animais estão com as vacinas em dia? A fazenda onde nasceram e cresceram desmatou a floresta ou empregou mão de obra escrava? Essas são algumas das perguntas que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) pode – ou não – exigir que os produtores rurais respondam. 

No início de maio, o Ministério criou um grupo de trabalho para apresentar sugestões sobre o tema. O projeto deve ser concluído no início de agosto. Em seguida, a pasta irá apresentar as diretrizes que irão reger o mercado bovino, com potencial para impactar os mais de 200 milhões de animais do rebanho nacional, além da vida do consumidor aqui e lá fora. Como pano de fundo da mobilização do Ministério está uma nova legislação da União Europeia (UE), o Regulamento para Produtos Livres de Desmatamento, segundo o qual a importação de produtos agropecuários será autorizada apenas caso tenham sido produzidos em áreas que não foram desmatadas depois de 31 de dezembro de 2020. A lei passa a valer em dezembro deste ano.

Rastreabilidade bovina

Ferramenta que garante informações sobre parte do trajeto de um bovino  até a chegada à mesa do consumidor, bem como dados relativos à saúde do animal e à vacinação. É uma espécie de mapa da vida do gado, e atualmente tem informações sobre a última  etapa do percurso, mas não necessariamente sobre sua origem.

Ferramenta que garante informações sobre parte do trajeto de um bovino  até a chegada à mesa do consumidor, bem como dados relativos à saúde do animal e à vacinação. É uma espécie de mapa da vida do gado, e atualmente tem informações sobre a última  etapa do percurso, mas não necessariamente sobre sua origem.

Atualmente, o Brasil conta com dois sistemas de rastreio de animais. Um deles é o Sisbov, sigla para Serviço Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos. Seu grande símbolo é o brinco plástico, aplicado nos animais três meses antes do abate e que contém informações sobre vacinas e outros dados de saúde do boi. 

Esse sistema foi criado em 2002, como consequência de pressões feitas pela UE em um contexto de surgimento de casos da doença da vaca louca (ou Encefalopatia Espongiforme Bovina). Isso levou ao aumento da preocupação com a origem dos animais e com as questões sanitárias envolvendo toda a cadeia produtiva.

“A adesão ao sistema é facultativa, sendo obrigatória apenas para os produtores que buscam exportar carne ou animais vivos para mercados que exigem alguma rastreabilidade sanitária”, explica Lisandro Inakake, gerente de cadeias agropecuárias da organização não governamental Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora). Atualmente, o país conta com 1.400 fazendas cadastradas no Sisbov. “Cerca de 10% desse número possui o ciclo completo de produção, do desmame ou nascimento até o fim, e não apenas nos últimos três meses de vida do animal”, diz.

Lisandro é o único integrante da sociedade civil dentre os 13 integrantes do grupo de trabalho sobre rastreabilidade no Ministério da Agropecuária. Ele foi  indicado pela Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável, associação que reúne mais de 60 organizações envolvidas na cadeia da pecuária, desde atores do setor financeiro, indústria, pecuária e sociedade civil. Entre os participantes, estão gigantes como a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (ou CNA, entidade patronal que representa os produtores rurais), a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec) e a Associação Brasileira de Frigoríficos. 

Precisão

Existe algum consenso dentro do grupo de trabalho para que o rastreio dos animais seja feito de forma individual, e não por blocos. A identificação individual garante mais precisão na rastreabilidade, enquanto que nos blocos ou lotes os animais podem ser misturados ao longo de sua trajetória. Porém, os prazos para a implementação da medida, sua obrigatoriedade e o momento da aplicação do brinco, se no nascimento ou após a primeira mudança de fazenda, ainda estão em discussão. 

A CNA, por exemplo, quer um prazo de oito anos para que os produtores se adequem às novas medidas a serem anunciadas pelo Mapa. “É necessário tempo para se discutir e prazo adequado para implementação, para que não se coloque os produtores na ilegalidade”, afirmou João Paulo Franco, coordenador de Produção Animal da CNA, ao Globo Rural. Essa data-limite, no entanto, é considerada ampla demais por integrantes da sociedade civil que trabalham com o tema. 

Outro ponto em debate é a possível universalização do sistema para todo o rebanho nacional – incluindo o que é consumido no mercado interno e que responde por mais de 70% do total da carne produzida.   

“Nós defendemos que haja brincagem individual e obrigatória do gado, e que no mínimo haja o monitoramento socioambiental e sanitário dos animais”, explica Lisandro. 

Em março, a Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável apresentou uma proposta de rastreio para o Mapa. O texto previa que ele fosse “universal, obrigatório e socioambiental”. Mas a CNA não endossou essa proposta por se opor à obrigatoriedade e ao monitoramento socioambiental da produção para o mercado interno.

O monitoramento sanitário do gado permite acompanhar seu estado de saúde geral, bem como verificar dados relativos à vacinação. Já o monitoramento socioambiental daria acesso a informações da propriedade onde o animal foi criado: se desmatou a floresta, se a fazenda utilizou mão de obra escrava e se tem multas e embargos ambientais. 

Mas esse segundo ponto, o rastreio ambiental, implicaria a integração do Sisbov com outros bancos de dados, e o acesso a outras informações dos produtores, segundo setores da sociedade civil.

Um desses bancos seria o da Guia de Trânsito Animal, ou GTA, o outro mecanismo de rastreio em vigor. Trata-se de um documento emitido pelas agências estaduais de controle sanitário animal, onde constam informações como vacinas, última origem e destino do lote de animais. Ou seja, com ela é possível obter alguma informação sobre a última propriedade por onde o gado passou antes de chegar ao seu destino final. 

Mas apenas a GTA seria um mecanismo insuficiente de rastreio ambiental, porque ela também pode ser usada para “lavar” bois criados em fazendas irregulares, uma vez que o documento não diz nada sobre a trajetória do animal desde que nasceu, apenas a sua última viagem. Sendo assim, o gado criado ilegalmente dentro de uma terra indígena, por exemplo, pode ser vendido para uma segunda fazenda regularizada, e, desta, para o frigorífico, como ocorreu na Terra Indígena Apyterewa, no Pará. 

Existem outros bancos de dados que podem ser integrados caso o Governo opte por adotar a rastreabilidade socioambiental. “Seria possível saber se a fazenda de origem do boi desmatou a floresta de forma ilegal, se existem embargos ou multas do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] aplicados à propriedade ou até mesmo se foram registrados casos de trabalho escravo em seus limites”, explica Maycon Nuremberg Schubert, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que estuda a cadeia da carne. 

Para que isso ocorra, seria necessária, por exemplo, a integração com o Cadastro Ambiental Rural, o CAR. Trata-se de um documento autodeclaratório e obrigatório para propriedades rurais. Ele foi criado em 2012, para atender às exigências do Código Florestal, e busca integrar informações ambientais sobre a fazenda, como, por exemplo, as suas Áreas de Preservação Permanente, Reserva Legal e áreas de florestas ou vegetação nativas remanescentes. Além disso, nesse cadastro constam os limites geográficos da propriedade.

Mas, mesmo o CAR também tem seus limites em termos de eficiência no rastreio ambiental. Por ser autodeclaratório, “existem municípios que têm três vezes sua área total registrada em propriedades rurais”, diz Maycon. “Isso ocorre porque há muita grilagem e sobreposição de cadastros”, explica. Além disso, quando um CAR é cancelado por estar em uma área protegida, como terra indígena ou uma unidade de conservação, o produtor rural pode iniciar um novo processo de cadastro, com um novo número.

Rastreabilidade sanitária

Informações sobre a saúde do animal: vacinas, peso, histórico de doenças.

Rastreabilidade socioambiental

Informações sobre a fazenda onde o animal nasceu e por onde passou antes de chegar ao frigorífico: dados sobre desmatamento na fazenda, multas e embargos ambientais, irregularidades fundiárias, uso de trabalho escravo em seus limites.

A pressão da União Europeia

O Regulamento para Produtos Livres de Desmatamento, da União Europeia, valerá para todos os biomas brasileiros, e se aplicará a áreas “que possuam 10% de cobertura de árvores de até 5 metros de altura”. A normativa não faz distinção entre desmatamento legal e autorizado ou ilegal, ponto que foi alvo de críticas de produtores brasileiros.

A nova legislação europeia tem potencial de impactar 34% das exportações brasileiras, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento. “A exigência da UE é que o rastreio seja na origem, logo após o nascimento do animal na fazenda. Logo, das 1.400 fazendas cadastradas no Sisbov, só 140 estariam em dia com a nova regulamentação do bloco”, diz Lisandro, do Imaflora. 

Em setembro de 2023, o Brasil e outros países afetados apresentaram uma queixa à Organização Mundial do Comércio (OMC) contra o que chamou de “protecionismo verde” da UE. Segundo o Governo brasileiro, as medidas criadas pelo bloco são uma estratégia para dar um verniz ambiental ao protecionismo europeu – em especial, da França. O presidente francês, Emmanuel Macron, já se manifestou diversas vezes de forma favorável à legislação. Não existe um prazo para que a OMC decida sobre o caso.

As preocupações do Governo do Brasil se justificam pelo tamanho e importância desse mercado para a balança comercial. Em 2023, as exportações do agronegócio brasileiro bateram recorde, totalizando um saldo de US$ 165,55 bilhões (cerca de R$ 860 bilhões), aumento de 4,8% em relação a 2022, de acordo com dados oficiais. Os principais produtos exportados foram soja e carne.

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Gado e desmatamento 

Apesar da discussão sobre um possível protecionismo europeu, o protagonismo dos rebanhos na destruição da floresta é evidente. “A pecuária é a atividade que mais está associada ao desmatamento da Amazônia. Ela expande a fronteira agrícola na floresta”, afirma Paulo Barreto, pesquisador associado do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia). “Ou seja, essas áreas de floresta que são vulneráveis à grilagem acabam sendo uma ótima forma de ganhar dinheiro, porque a grilagem torna possível a pecuária de baixo custo em áreas onde ela não existiria.” A pecuária responde por 77% da área desmatada da Amazônia no Brasil e nos países vizinhos entre 1985 e 2022, segundo levantamento do MapBiomas publicado em dezembro de 2023.

Um estudo do Imazon publicado em novembro de 2023 aponta que “a pecuária ainda pode levar à derrubada de mais 3 milhões de hectares de florestas entre 2023 e 2025 caso não sejam adotadas medidas mais efetivas de fiscalização, como a rastreabilidade de todos os animais desde o nascimento”. Isso equivaleria a uma área 20 vezes maior que o município de São Paulo.  

No rastro do gado (dados da pecuária)

234,4 milhões de animais
• Responsável pelo desmatamento de 77% da área desmatada da Amazônia
• Sem fiscalização, 3 milhões de hectares de florestas podem ser derrubadas entre 2023 e 2025
US$ 10,84 bilhões em exportações em 2023

Mas existem divergências na sociedade civil com relação à eficiência do rastreio sanitário e socioambiental para evitar o desmatamento e outras violações de direitos. “Em nossas pesquisas, nós observamos o gado junto com a soja, pois entendemos que existe um complexo do agronegócio aí, são duas cadeias produtivas que, no caso da Amazônia, são muito difíceis de separar”, explica Marcela Vecchione, professora e pesquisadora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará.

Isso porque, de acordo com Vecchione, é preciso levar em conta que “apesar de boa parte da produção de soja brasileira ser exportada para a China, outra parte significativa é usada internamente, para servir de ração animal bovina, suína e de aves”. Essa interação entre as duas cadeias, gado e soja, não é levada em conta nos modelos de rastreio em discussão pelo Mapa.  

“Ainda que haja algum rastreio socioambiental, você vai olhar para o brinco do boi, mas não olhará para a ração desse boi, que pode vir de soja de área desmatada. E tudo isso compõe o produto: a carne empacotada é o boi, mas também é a ração, a terra, a água, e o agrotóxico que está na soja. Uma série de coisas que não serão vistas no monitoramento”, afirma.

Também existe um outro ponto que o rastreio socioambiental não contempla. “Onde estão as terras mais conservadas do ponto de vista da sociodiversidade? São as terras indígenas e áreas dos povos tradicionais, dos quilombolas, das comunidades de fundo de pasto e extrativistas”, explica Elielson Silva, professor da Universidade Federal Rural da Amazônia. Assim, a demarcação e titulação de territórios tradicionais seria uma das maiores vacinas contra o desmatamento e outras violações de direitos. 

A organização MapBiomas produziu ao longo dos últimos anos uma série de estudos que reforçam essa tese. Um deles, publicado em 2021, apontou que entre 1985 e 2020 as terras indígenas (TIs) foram as áreas mais preservadas do Brasil. Outro, de 2023, mostrou que nos últimos 38 anos esses territórios perderam menos de 1% de sua área de vegetação nativa, enquanto em áreas privadas o desmatamento foi de 17%. “Mas o que acontece é que temos uma situação grave no Brasil, de déficit de reconhecimento de direitos étnicos e territoriais. Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário, nós temos 598 TIs no país a serem demarcadas”, diz Elielson.

Pecuária pode desmatar mais 3 milhões de hectares de florestas entre 2023 e 2025, diz estudo. Foto: Felipe Werneck/Ibama

O rastreio na prática

Alguns pecuaristas se adiantaram às possíveis mudanças na política de rastreamento bovino e já se adaptaram às exigências do mercado. É o caso de Mauro Lúcio de Castro Costa, que possui cerca de 2.500 cabeças de gado na fazenda Marupiara, em Tailândia, Pará. “Eu trabalho com identificação animal desde os anos 2000. Todos os meus animais são numerados e brincados”, explica. 

Além disso, desde 2015 Costa iniciou um programa, em parceria com uma empresa, “para saber a origem dos animais, dos fornecedores diretos e indiretos”. A ideia era identificar fornecedores em cujas fazendas houvesse desmatamento ilegal ou trabalho escravo. Após realizar a checagem, o produtor descobriu que tinha “20% dos fornecedores em não conformidade, e isso equivalia a 40% do meu rebanho”. Além de deixar de adquirir dessas fazendas, Costa também se dedicou a “trabalhar pelo retorno delas para o mercado legal, ou seja, adequando-se ao Código Florestal e à legislação vigente”.  

O pecuarista aponta alguns custos “ocultos” de implementar o rastreio socioambiental. “O brinco em si custa R$ 6 por cabeça, não é algo inviável mesmo para pequenos produtores. Mas há um outro valor que se paga também. Teve um caso em que eu iria comprar animais de um vizinho, com o valor de frete pequeno. Mas não pude comprar dele porque ele tem problema de desmatamento. Então, tive de comprar de um fornecedor mais longe, e 100 quilômetros a mais na distância do frete custa R$ 20 ou R$ 30 adicionais por cabeça”.

De acordo com Costa, o retorno financeiro de aplicar o rastreamento socioambiental é zero. “Não me traz benefício junto ao frigorífico, não me agrega valor. Mas é como se eu tivesse um seguro, uma proteção”, diz. Apesar disso, ele é entusiasta da medida: “É uma espécie de custo Brasil, e quem traz esse custo para nós é o desmatador. Esse cara é que traz esse custo financeiro e de imagem. O quanto a imagem do pecuarista que está dentro da lei é prejudicada pelo que desmata? Precisamos ter consciência de que esse cara é prejudicial para o meu negócio, para o meu futuro”. 

A questão dos custos para implementação do rastreio que será determinado pelo Mapa ainda é uma incógnita, mas existe a possibilidade de que haja algum tipo de subsídio para que o pequeno produtor rural se adeque às novas regras. “Para a implementação desse novo modelo de rastreio, talvez seja necessário um estímulo político, um subsídio, seja via incentivo financeiro ou isenção fiscal. Isso ajudará o produtor a entrar no sistema ao amortecer um pouco os custos”, diz Lisandro.

A rastreabilidade é uma espécie de mapa da vida do gado. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil.

O TAC da Carne

Outra ferramenta de rastreio existente no Brasil desde 2009 foram os Termos de Ajuste de Conduta da Carne, conhecidos como TAC da Carne. Voltados para o mercado interno, são acordos firmados entre o Ministério Público Federal (MPF) e os frigoríficos para evitar a compra de animais criados em áreas desmatadas, sem licença ambiental, terras indígenas e onde tenha sido flagrado trabalho escravo. 

Os acordos preveem uma série de auditorias nos frigoríficos para determinar qual a origem dos animais abatidos. Inicialmente, o TAC da Carne era válido apenas no Pará, mas posteriormente foi ampliado para outros três Estados da Amazônia Legal.

Um dos gargalos da iniciativa, no entanto, está no fato de que até o momento o foco é exclusivo nas compras diretas feitas pelos frigoríficos, deixando de fora os fornecedores indiretos – ou seja, excluindo os fornecedores dos fornecedores. O MPF promete incluí-los no próximo ciclo de auditorias, que deve ser realizado em 2024. 

Sem o monitoramento dos indiretos, também abre-se a possibilidade para a lavagem de gado. A prática ocorre quando bois criados em áreas desmatadas ou irregulares são enviados para fazendas legais próximas, e, então, vendidos para os frigoríficos. Assim, o animal irregular entra na cadeia produtiva de forma limpa. 

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