Foto: André Borges/Agência Brasília

Mais cara e menos saudável: alimentação escolar perdeu 42% do poder de compra nos últimos 14 anos

Levantamento da Observatório da Alimentação Escolar indica que Pnae funciona com um déficit de R$ 4,2 bilhões; organização recomenda reajuste automático a partir do IPCA

No extremo noroeste do Brasil, São Gabriel da Cachoeira (AM) tem 28% de seus 51.795 moradores matriculados nas 227 escolas da rede pública. A cidade, que também tem o maior percentual de população indígena do país, enfrenta um desafio diário assim que toca o sinal de mais um início de período escolar: pensar em formas de garantir a alimentação, decisão que, muitas vezes, também pode influenciar no calendário escolar. 

“No contexto em que vivemos, se o professor já sabe que não vai ter merenda, ele não tem outra escolha, precisa suspender a aula, pois isso também afeta no rendimento dos alunos. E, quando eles não suspendem, sabemos que os alunos também não vão para a aula. Temos situações críticas de evasão e de queda no desempenho porque não estamos conseguindo garantir a alimentação escolar”, lamenta Cenaide Lima, membro da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e presidente do Conselho de Alimentação Escolar (CAE) em São Gabriel da Cachoeira.    

A situação na cidade não é uma exceção: nos últimos dez anos, o poder de compra da alimentação escolar diminuiu na rede pública de ensino, com um rombo que chega a bilhões. É o que conclui um estudo lançado nesta quinta-feira pelo Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), que analisou a série histórica da inflação dos alimentos e comparou com os reajustes realizados para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) entre 2010 e 2024. Além do levantamento, o ÓAÊ lança uma campanha para sensibilizar a sociedade sobre a importância de correção dos valores. 

Segundo o estudo, o orçamento do Pnae deveria ter sido reajustado para R$ 9,9 bilhões, quase o dobro dos R$ 5,7 bilhões atuais. Para o cálculo, a organização utilizou como referência o grupo Alimentos e Bebidas do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), parâmetro que também defende que seja adotado para o reajuste do programa público.

“Poderíamos indicar várias recomendações que ainda sabemos que não são unanimidade, já que temos um país com realidades muito distintas, então apontamos o IPCA porque é a inflação que todo brasileiro sente no bolso no dia a dia”, explica a coordenadora do ÓAÊ, Mariana Santarelli, também integrante da FIAN Brasil. 

Distribuição desigual 

No Brasil, a alimentação escolar na rede pública de ensino acontece a partir de um subsídio: o governo federal realiza repasses aos municípios por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), mantido pelo MEC e que coordena o Pnae. Municípios e estados devem complementar o custo da alimentação. 

No entanto, a contribuição federal não tem acompanhado o crescimento de matrículas na educação básica – desde 2010, o aumento foi de 7,7%. Ao mesmo tempo, a cesta básica também ficou mais cara, com uma alta de 210% em 17 capitais brasileiras – de R$ 211,12 para R$ 654,79, segundo dados do Dieese. 

Pela conjuntura atual, o déficit da alimentação deveria ser pago por estados e municípios, uma tarefa impossível de ser cumprida para muitos territórios, conforme avalia Santarelli

“Temos municípios que simplesmente não arrecadam o valor mínimo necessário para completar a compra da alimentação escolar, esses municípios não conseguem garantir o cofinanciamento, que muitas vezes só pode ser alcançado por cidades maiores e com uma arrecadação rica. Não é a situação da maioria”, explica. 

Em São Gabriel da Cachoeira, Cenaide Lima acompanha a luta pelo reajuste há três anos. Ele comemora que já houve mudanças, mas que só o preço per capita por aluno indica que os avanços estão longe de alcançar a realidade. 

Assessora executiva e de pesquisa do ÓAÊ, Débora Olímpio também destaca que, diante do encarecimento dos alimentos, o poder público pode encontrar alternativas diversas para repensar a garantia de refeições completas e saudáveis, como a agroecologia – o que falta é interesse político. 

“É uma pauta que tem que entrar como parte prioritária dentro dos governos, porque a alimentação é um direito, um direito humano, um direito que está previsto dentro da Constituição. Temos uma política de alimentação que já foi exemplo para outros países, competência técnica para encontrar caminhos”, avalia. 

Para alunos de escolas quilombolas e indígenas (realidade de boa parte do ensino em São Gabriel), o valor diário da merenda é de R$ 0,86 por aluno, conforme indica o site do Pnae. Segundo cálculos que Cenaide fez com o apoio de uma equipe técnica do CAE, o valor deveria ser de R$ 9,76 per capita. Ao todo,a diferença do valor adequado para a rede municipal de São Gabriel da Cachoeira chega a um déficit de R$ 18 milhões por ano.

“Eu sempre digo para eles que na lei a proposta é bonita, o que está escrito está bonito, mas dá vergonha de falar o valor per capita do aluno, quando estamos nos referindo ao repasse federal”, reclama. 

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Projetos também sugerem reajuste automático

O site do Congresso Nacional apresenta cerca de 120 projetos de alteração da lei do Pnae (Lei 11.947/09). Entre eles está o PL 2754/23, da senadora Teresa Leitão (PT), que fixa um reajuste automático dos valores no Pnae com base na inflação de alimentos e bebidas medida pelo IPCA. 

“Estamos todo dia na porta do governo pressionando por mudança, mas também sabemos que o movimento se fortalece com a adesão de quem passa por isso no dia a dia: a tia da alimentação, a diretora da escola, que realizam milagre todo dia para vencer o preço da inflação e tentar garantir uma refeição minimamente adequada. São elas que podem ajudar a convencer que alimentação escolar não é um subtópico, é uma prioridade”, destaca Mariana.

A reportagem procurou o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para entender como as reinvidicações pelo reajuste do Pnae estão influenciando o monitoramento sobre o programa, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem. 

Perguntamos: 

1) Há projetos de lei em trâmite que defendem um reajuste automático, a partir de um índice como referência, no caso o IPCA. De que forma as sugestões chegam ao FNDE? 

2) Há outras propostas em avaliação para um acompanhamento mais sistemático do poder de compra da alimentação escolar? Quais? 

3) Cidades brasileiras vivem realidades muito variadas, o que tem causado uma desigualdade em relação ao repasse de valores, com municípios que não podem arcar, da mesma forma que outras, o valor que não é coberto pelo subsídio federal. De que forma o governo federal pretende responder a esse desafio?

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