Fabricante norte-americana de cigarros eletrônicos discutiu quais narrativas usar para convencer países fumicultores – como o Brasil – que vapes seriam positivos às suas economias, mas estimativas da empresa previram menos 2,6 milhões de empregos até 2045 devido à queda na demanda pelo fumo em folha
Executivos da fabricante de cigarros eletrônicos Juul estimaram que a expansão global de seus dispositivos poderia prejudicar fumicultores e discutiram como convencer países produtores de fumo de que vapes seriam positivos às suas economias, apesar de estatísticas internas desanimadoras para o campo, mostram documentos da empresa de 2019 obtidos pela Truth Tobacco Industry Documents (TTID), da Universidade da Califórnia, e revisados pelo Joio.
Uma das estimativas preliminares da empresa era que, enquanto a produção de cada maço de cigarros requer cerca de 22 gramas de fumo em folha, um pod de nicotina líquida extraída do tabaco usaria por volta de 0,9 gramas, 24 vezes a menos. Com isso, o avanço no uso de vapes poderia impulsionar a queda na demanda pela folha de fumo.
Além disso, levantamentos internos da Juul previram quase 2,6 milhões de empregos a menos na fumicultura a nível mundial até 2045 pela queda no consumo de cigarros tradicionais, enquanto a indústria de vaping geraria ínfimos 23 mil novos empregos na fumicultura no período. Esses números contradizem o lobby do vape no Brasil, que convenceu setores do governo federal e até fumicultores de que a liberação traria benefícios à agricultura familiar, como já mostrou o Joio.
O Brasil é o terceiro maior produtor de tabaco do mundo, atrás de China e Índia, respectivamente, e o maior exportador global da folha desde 1993. O país abastece principalmente os mercados chinês e europeu. Segundo a Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), pelo menos 138 mil famílias produziram fumo na safra 2022/23, número que decai ano a ano. No total, o setor gerou 552 mil empregos diretos no campo e 40 mil na indústria, de acordo com a entidade.
Em janeiro deste ano, por exemplo, em meio à fase de consulta pública da atual resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre os dispositivos eletrônicos, fumicultores influencers apoiados pela indústria do cigarro mobilizaram agricultores a se manifestarem com um texto pronto, dizendo que a manutenção da proibição dos vapes impediria “a geração de renda para os produtores de tabaco e empregos na cidade, além de não gerar arrecadação de impostos”. A agência definiu, em abril, não só manter, como ampliar a proibição.
O repositório completo da Universidade da Califórnia pode ser consultado aqui. A partir desse arquivo, revisamos cerca de dez documentos que mostram como a Juul pretendia encarar a contradição entre o avanço no uso de cigarros eletrônicos, a queda nos índices de fumantes tradicionais e a sustentabilidade da fumicultura.
Tabaco para extrair nicotina
As estimativas desanimadoras para o campo foram consideradas um ponto frágil aos planos de expansão global da empresa em conversas entre executivos da Juul em abril de 2019. “O sucesso comercial da entrada da Juul em novos mercados vai substituir o tabaco produzido localmente por nicotina fornecida globalmente”, escreveu por e-mail um dos ex-executivos, Jed Cullen, responsável pelo desenvolvimento estratégico e corporativo da empresa, no contexto de uma discussão sobre “previsões para nicotina líquida e folha de tabaco”.
“Pode haver um argumento em separado de que estamos estimulando a demanda global pela folha no processo, mas meu senso é que o fumicultor médio perderá no longo prazo conforme canibalizamos o consumo de cigarros comburentes”, avaliou Cullen. Na conta, a empresa levou em consideração tanto a redução da demanda pela matéria-prima quanto o avanço do uso de vapes entre tabagistas.
Na época, a empresa estava preocupada em como cigarros eletrônicos poderiam enfrentar a oposição de governos e agricultores diante da expansão global que projetava, sobretudo no mercado asiático, mas também em outros países fumicultores, como o Brasil, que não foi diretamente mencionado nas mensagens da Juul sobre o assunto revisadas pelo Joio.
“Um dos maiores desafios que vamos enfrentar na região da Ásia-Pacífico, e em outros lugares, é medo/oposição de ministérios do comércio, relações exteriores, e indústria, que acreditam que, ao se substituir cigarros, logo a fumicultura, vamos impactar negativamente suas economias”, antecipou por e-mail a ex-diretora de políticas públicas globais da Juul, Heather Shapiro, no início de abril de 2019.
Shapiro perguntou à equipe da marca quais seriam as projeções de demanda do volume de folhas de fumo necessárias para se produzir um pod, de modo que os números pudessem subsidiar o lobby nesses países. Os dados da equipe da Juul, no entanto, estimaram que um pod com líquido de nicotina requer cerca de 24 vezes menos folhas do que um maço de cigarros normal.
Os números partiram de uma “estimativa aproximada” que teve como base o fumo bidi indiano, que é mais rico em nicotina do que a folha de cigarros tradicionais. “É um bom ponto de partida, mas algumas importantes diferenças entre bidi e tabaco devem ser levadas em consideração antes disso [os dados] ser generalizado”, disse Cullen.
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“Narrativas” sobre nicotina e fumicultura
Na época, os cigarros eletrônicos da marca usavam líquidos de sais obtidos de nicotina farmacêutica, a mesma usada em pesticidas ou remédios à base da substância, reduzida a partir do pó de tabaco e de folhas usadas nesses cigarros indianos. Mas a produção da Índia era considerada incapaz de atender aos projetos de expansão global da empresa
“Estamos explorando alternativas de longo prazo, tanto sintéticas como a extração da folha natural, mas nenhum dos dois processos existe em uma escala comercial hoje em dia”, respondeu a Shapiro o ex-diretor de suprimentos globais da empresa, Jeff Ludwin.
Com isso, a Juul negociava tanto com potenciais fornecedores de nicotina extraída do fumo em folha, como a norte-americana Universal Leaf (UTC), que também atua no Brasil, quanto com a startup britânica Zanoprima, que produz a substância de forma sintética, no laboratório.
Em maio de 2019, a equipe da Juul preparou um documento chamado “Storyline da Extração de Nicotina” com o objetivo de avaliar duas “narrativas envolvendo a relação entre nicotina e fumicultura”, considerando a opção de uso da extração da folha em escala global para a venda dos vapes da marca.
Uma dessas narrativas de lobby, cujo público-alvo seriam mercados “com fumicultura e tabaco de alta qualidade de onde planejamos adquirir” – o que poderia incluir nações como o Brasil – foi resumida como “Juul vai precisar de fontes de folhas de tabaco de alta qualidade, o que vai ajudar a aliviar impactos da queda do uso do tabaco tradicional”.
A ideia, no entanto, esbarrou nos números ínfimos de novos empregos previstos até 2045, segundo o próprio levantamento: apenas 23 mil mundialmente, enquanto a perda de empregos prevista pela queda no consumo de cigarros no período estava na casa dos 2,6 milhões.
A outra narrativa seria direcionada para “todos os outros mercados que planejamos entrar que têm um lobby do tabaco significativo”, em que a Juul garantiria, por exemplo, apoio a fumicultores que precisarem abandonar o cultivo. Segundo os documentos, o plano era adquirir folhas de fumo de apenas um ou dois mercados regionais com o objetivo de suprir sua cadeia de produção global, sendo um deles a Filipinas, país do Sudeste asiático.
300 dólares o quilo da nicotina sintética
A preferência pela Filipinas pode ter partido de uma sugestão da UTC, que mencionou o país, ao lado do Brasil, como um dos melhores candidatos de uma perspectiva de “distribuição e eficiência” para a cadeia de suprimentos da empresa de vapes, conforme um e-mail trocado entre Ludwin, executivo do setor na Juul, e o vice-presidente de vendas da Universal Leaf, Ted Broome.
“Considerações cautelosas estão sendo dadas aos custos da folha produzida para a extração e onde a maior parte das oportunidades viáveis existem”, disse Broome. “As Filipinas e o Brasil ainda são candidatos muito confiáveis e oferecem as melhores oportunidades/alternativas de uma perspectiva de custo”, explicou, dizendo que o objetivo da UTC era “produzir variedades ao menor custo possível para a extração local e sua destilação final nos Estados Unidos”.
Uma das planilhas de custos da marca obtidas pela TTID, já em 2019, indica que a extração da nicotina da folha ou do pó do tabaco era comercialmente mais vantajosa que a produção sintética, ainda que faltasse escala para ambas.
Os orçamentos feitos pela Juul estimavam um custo entre 120 e 275 dólares para o quilo da nicotina da folha contra uma larga variação entre 300 a 5 mil dólares da produzida em laboratório, a depender do fornecedor. Enquanto o uso da substância extraída do fumo poderia custar entre 0,8 e 1,8% do valor total de um pod, o valor correspondente da sintética poderia girar entre 2 e 25%.
Hoje, cinco anos depois, o uso de substâncias produzidas em laboratório nos vapes já avança a passos grandes. Em 2022, um estudo da Universidade de Stanford encontrou mais de 98 marcas sendo vendidas nos EUA que diziam usar nicotina sintética e serem “livres de tabaco”. Esses produtos iam desde gomas com a substância até líquidos e vapes.
Além disso, em maio deste ano, a Reuters reportou que cigarros eletrônicos contrabandeados para os Estados Unidos, país onde vapes são legais, mas que enfrenta fortes problemas com o comércio ilícito do produto, estão usando novos sintéticos análogos à nicotina, sem que existam dados sobre a segurança desses compostos.