País tem mais cabeças de gado do que habitantes, e projeções apontam para crescimento, mesmo em meio à discussão sobre colapso climático. Representantes da sociedade criticam bancada ruralista e falta de planos do governo Lula
Hoje, somos 212,6 milhões de brasileiras e brasileiros, número que nos coloca entre os países mais populosos do mundo. Mas, por aqui, há uma quantidade ainda maior de gado. O rebanho bovino alcançava, em 2023, 238,6 milhões de cabeças, o maior da série histórica iniciada em 1974 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ou seja, no Brasil tem mais boi do que gente.
Mais do que isso: enquanto o crescimento da população humana dá sinais de arrefecimento, a população bovina segue em franca expansão. O país é o maior exportador de carne bovina do planeta e o segundo maior produtor, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.
Mas quais são os impactos ambientais dessa atividade produtiva tão importante para a economia nacional e da própria existência de um rebanho tão imenso? Inúmeros.
Se, globalmente, a principal contribuição para o efeito-estufa vem da queima de combustíveis fósseis, no Brasil o maior emissor é o desmatamento – causado, principalmente, por atividades agropecuárias.
O aquecimento global e as mudanças climáticas decorrentes dele têm como causa principal o acúmulo de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera. Entre estes, os que mais contribuem para esse efeito são o dióxido de carbono e o metano – o primeiro representa mais de 70% das emissões.
Por que estamos falando
sobre produção de carne e clima
Para alguns ou muitos leitores do Joio, a informação de que o Brasil tem mais boi do que gente não é novidade. E nem que somos os maiores exportadores de carne do mundo. Mesmo assim, resolvemos fazer uma reportagem reunindo dados existentes sobre a relação entre cadeia da carne versus colapso climático, pois acreditamos que, para avançar em debates mais profundos que trataremos daqui por diante, como redução de consumo e de rebanho, a possibilidade de a pecuária ser sustentável e as políticas de enfrentamento às emissões, precisávamos de um texto-base para nos situar.
De acordo com um relatório do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima, lançado em novembro de 2023, as mudanças de uso da terra – que causam a devastação de todos os biomas brasileiros – foram responsáveis pela emissão de 1,12 bilhão de toneladas brutas de gás carbônico, ou 48% do total nacional. Na sequência, vem a agropecuária, com 617 milhões de toneladas, ou 27% das emissões brutas do país. Somando-se as emissões por desmatamento e outras mudanças de uso da terra com as do setor agropecuário, conclui-se que a atividade agropecuária responde por 75% de toda a poluição climática brasileira.
A pecuária, especificamente, é a grande responsável pela emissão de gás metano. “Por ser um animal ruminante, durante a digestão ele expele o metano via arroto, principalmente. Dentro do setor agropecuário, 66% das emissões de metano nacionais vêm da fermentação entérica do gado”, explica Renata Potenza, especialista em clima da organização não governamental Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora). Só em 2022 foram emitidos pelo gado de corte 409,5 milhões de toneladas de gases de efeito estufa.
“Esse gado produz emissões de algumas maneiras. A primeira delas é pela sua existência em si, no processo digestivo. Mas o gado também é muito utilizado na grilagem de terras no Brasil. Temos uma pecuária que é utilizada na prática de roubo de terra pública”, afirma Márcio Astrini, Secretário-Executivo do Observatório do Clima, rede da sociedade civil que atua no debate climático.
Além disso, diz, falta um aproveitamento melhor da área da pecuária, como o manejo de pastagem, que consiste em medidas para obter uma produção maior de leite e carne por área, sem prejudicar o capim e o solo. Ou seja, é a administração entre a necessidade de as plantas se desenvolverem e a necessidade de os animais se alimentarem. Por fim, ele afirma que no Brasil há um baixo aproveitamento de áreas de pecuária que já estão desmatadas e foram abandonadas.
A contribuição da cadeia da carne para o colapso climático também ocorre por causa da quantidade de água utilizada na produção. Um estudo da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) calcula serem necessários, em média, 15 mil litros de água para se produzir um quilo de carne bovina.
“Não há sistema alimentar que possa sobreviver quando ele demanda essa quantidade de água para obter um quilo de carne”, afirma o historiador Luiz Marques, professor livre-docente aposentado e colaborador do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp). “A quantidade de calorias que se precisa investir, por exemplo, por meio do tamanho da ração animal para se obter um quilo de carne é muito maior do que a caloria que existe dentro de um quilo de carne.”
Um levantamento do MapBiomas (iniciativa que usa imagens de satélite para analisar dados sobre o uso da terra) divulgado no começo de outubro mostra que mais de 90% das áreas desmatadas na Amazônia entre 1985 e 2023 tiveram como primeiro uso a pastagem.
O aumento foi de mais de 363% nestes 39 anos, passando de 12,7 milhões para 59 milhões de hectares. Em 2023, os pastos ocupavam 14% da Amazônia. De acordo com o monitoramento, na área chamada de Amacro – região que inclui trechos dos estados de Amazonas, Acre e Rondônia – a expansão foi ainda maior: um crescimento de 11 vezes, que ocasionou a perda de quase toda vegetação nativa.
Produção de carne e efeitos climáticos
238,6 milhões
de cabeças de gado
Brasil é o maior exportador
de carne bovina do mundo
Agropecuária é responsável pela emissão de
617 milhões de
toneladas de CO2
No setor agropecuário,
66% das emissões de metano nacionais
vêm do arroto do boi
Para se produzir
1 kg de carne bovina
é necessário usar, em média,
15 mil litros de água
Mais de 90%
do desmatamento
da Amazônia
é para abertura de pastagem
Fonte: FAO, IBGE, MapBiomas, Observatório do Clima
Como reduzir as emissões?
Ainda que no Brasil exista muita emissão ligada à pecuária, há, também, inúmeras possibilidades de reduzi-la, explica Astrini, do Observatório do Clima. “Temos muita tecnologia consolidada e políticas públicas desenhadas nesse setor. Só que isso não é implementado”, lamenta.
“Hoje, são pouquíssimos os agricultores ou os empresários que têm acesso, por exemplo, a um Plano Safra ou a tecnologias desenvolvidas por órgãos públicos, como a Embrapa. Precisamos democratizar o acesso à tecnologia, como desenvolvimento de pesquisas e aplicação de extensão rural [serviço de educação continuada para o meio rural]”, diz.
Para Renata Potenza, “não é preciso reinventar a roda” no que diz respeito à redução das emissões, sobretudo de gás metano. “Temos de usar todo conhecimento e estratégias que já existem, implementá-los e dar escala. Acho que esse é um dos grandes desafios do momento”, opina
Uma das propostas, afirma, é o abate precoce do rebanho. Hoje, no Brasil, a média de vida de um bovino é de 36 meses. No entanto, ela explica que há estudos que afirmam que é possível fazer o abate mais cedo. “Obviamente, considerando todas as questões sanitárias e de bem-estar, ao se reduzir esse tempo para 30 meses, há um ganho enorme de redução de emissões de metano. Quanto antes [o gado] for abatido, menos metano vai emitir. É uma estratégia que a gente vem fomentando para que seja uma política nacional ou que pelo menos seja incorporada no plano ABC+”, diz, referindo-se ao Plano Setorial para Adaptação à Mudança do Clima e Baixa Emissão de Carbono na Agropecuária 2020-2030.
A representante do Imaflora também defende como uma medida de redução das emissões a recuperação de pastos degradados. “No país, há milhões de hectares com algum nível de degradação.” Pastagens degradadas são áreas onde o solo perdeu a capacidade de produzir plantas para alimentar o gado. Hoje, de acordo com o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, o país tem entre 90 e 100 milhões de hectares de pastagens degradadas.
Outra proposta é a rastreabilidade bovina, ferramenta que acompanharia a trajetória dos animais do nascimento ao abate, podendo verificar o cumprimento de normas sanitárias e ambientais e atestar se a carne é segura e livre de desmatamento. No entanto, sua implementação está atrasada. “Na verdade, ela só não saiu do papel por conta de um atraso maior do que o atraso de datas, que é de mentalidade do setor no Brasil. É um setor que acha que rastrear o desmatamento significa rastrear a produção”, diz Márcio Astrini.
De acordo com ele, “se não existisse desmatamento, a rastreabilidade não seria necessária. Ela é importante para se evitar que o consumidor pague um produto que vai financiar a destruição de florestas”, aponta.
Hoje, há um plano de rastreabilidade bovina que está sendo elaborado por um Grupo de Trabalho instituído em maio deste ano pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA). No entanto, sua composição preocupa organizações por abrigar majoritariamente pessoas ligadas ao setor agropecuário, seja no governo federal, seja em entidades empresariais, e não conta com a participação dos órgãos ambientais do governo ou de instituições da sociedade civil que atuam na área socioambiental.
Como parte do Acordo de Paris, tratado global de 2015 sobre mudanças climáticas, o Brasil se comprometeu a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa em 43% até 2030 (atualizado para 53% no ano passado) e a zerar as emissões líquidas – diferença entre as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e a quantidade de gases removidos da atmosfera – até 2050. A NDC, uma meta governamental, foi criada no âmbito do acordo. Em agosto deste ano, o Observatório do Clima apresentou uma proposta de NDC com um conjunto de metas para o enfrentamento das mudanças climáticas.
A pecuária regenerativa, conjunto de práticas e processos agropecuários que buscam recuperar os solos e restaurar sua biodiversidade, é uma das iniciativas capazes de diminuir as emissões, acredita o secretário-executivo do Observatório do Clima. “Ela está no nosso plano NDC [Contribuição Nacionalmente Determinada] como um dos fatores para ajudar a redução das emissões.”
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Redução de consumo e rebanho
Dada a urgência em combater o aquecimento global, parte da sociedade civil defende que iniciativas de mitigação das emissões não são suficientes se não forem acompanhadas de um plano para a redução do consumo de carne bovina, que deveria começar em casa. É uma medida desafiadora, pois, de acordo com dados da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (ABIEC), o mercado interno é o grande consumidor de carne bovina produzida no país.
Em 2022, 71,48% da produção nacional foi consumida pelos brasileiros, com um consumo per capita de 36,73 kg por habitante. Dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) mostram que a produção deve chegar a 101,9 milhões de toneladas neste ano, um aumento de 7,1% em relação a 2023. A empresa pública estima ainda que a disponibilidade interna da carne no país é de 21,12 milhões de toneladas.
“Depende de nós diminuir radicalmente a nossa ingestão de carne bovina”, afirma Luiz Marques, que aponta para a necessidade de uma profunda mudança no sistema alimentar do país. “Hoje, o Brasil é o maior exportador de soja, sobretudo para a China. E a soja é praticamente um alimento destinado à ração animal. Então, é claro que nós temos o nosso sistema alimentar baseado em proteínas animais. Quando o Brasil exporta 100 milhões de toneladas de soja para um país como a China, que dista mais de 10 mil quilômetros daqui, imagina a quantidade de emissões de gases de efeito de estufa?”.
O professor defende que o sistema alimentar seja baseado em nutrientes vegetais e autossuficiente, ou seja, que o produtor esteja muito perto do consumidor. O historiador cita o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) como modelo agrícola do país. “É o melhor. O MST tem um plano de produção agrícola próxima do consumidor, sem uso de agrotóxicos, sem monocultura e com geração de renda de trabalhadores”, pontua.
“Nós vamos precisar reduzir o consumo de carne no planeta”, reforça Márcio Astrini. Para ele, isso deve ser feito por meio de transformações na forma de produção de alimentos, como a aproximação entre produtor e consumidor: “Precisamos fazer uma revolução dentro do sistema de produção de alimentos e de cadeias alimentares no país e no mundo inteiro”. A proposta de NDC do Observatório do Clima defende que as políticas climáticas do Brasil devem incluir ações destinadas a reduzir a demanda por alimentos cuja produção resulte em altas emissões de gases de efeito estufa.
“É recomendável, ainda, que o governo brasileiro estabeleça uma rede nacional de pesquisa para avaliar os custos ocultos do sistema alimentar e que esse processo, incluindo critérios de justiça climática e equidade, possa então criar subsídios para avaliar caminhos de transição e a redução da demanda por alimentos cuja produção resulta em altas emissões de gases de efeito estufa, especialmente produtos de origem animal”, diz o texto.
Número de bois vai crescer
O desafio da redução das emissões ligadas à pecuária ocorre também diante do cenário em que, de acordo com as projeções do governo federal, a tendência é que o rebanho brasileiro aumente até 2035. “Nas nossas projeções, é o único setor, inclusive, que aumenta as emissões no Brasil. Os setores de energia, uso da terra, desmatamento, resíduos e indústria diminuem. O da agropecuária é o único que aumenta, principalmente por conta do aumento do rebanho bovino”, diz Astrini.
Ele diz que uma redução é possível com a ajuda da tecnologia. No entanto,“de nada adianta se no carpete do Congresso o setor agropecuário continuar tendo a atitude que tem: o Brasil, de acordo com os projetos de lei que eles apresentam lá, será um Brasil sem floresta, sem pampa, sem Pantanal, sem lei, rio, biodiversidade, sem nada. A proposta deles é arrasar com todo e qualquer resquício de natureza ou de meio ambiente”.
Recentemente, o agro teve uma vitória ao conseguir o adiamento da entrada em vigor de uma legislação da União Europeia (UE). O Regulamento para Produtos Livres de Desmatamento (EUDR) autoriza a importação apenas daquilo que não foi produzido em áreas desmatadas. A lei passaria a valer em dezembro deste ano, mas os ministros Carlos Fávaro (Agricultura e Pecuária) e Mauro Vieira (Relações Exteriores) enviaram uma carta ao bloco solicitando o adiamento. Em nota, o Observatório do Clima disse que o pedido dos ministros “sabota a liderança climática do Brasil”. “No momento em que temos a maior parte do território brasileiro afetada pela fumaça de queimadas em quase todos os biomas, é lamentável que a implementação da EUDR seja adiada”, afirma, no texto, Dinamam Tuxá, Coordenador Executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).