O Brasil faz parte da negociação junto a outros países-membros da ONU, mas ainda precisa criar e implementar políticas nacionais que limitem a produção e regulamentem a destinação dos resíduos plásticos
Nem precisa ir a uma praia ou reparar nas canaletas das ruas para ser encarado pela poluição plástica. Ela está em casa, nos produtos guardados nos armários e nas geladeiras, nas roupas feitas com tecidos sintéticos, nas embalagens dos cosméticos. Mas essa é a poluição que podemos ver e tocar. O plástico, fragmentado em micro e nano partículas, é quase uma entidade em sua onipresença. O material está na água que bebemos, no ar que respiramos e dentro do organismo humano e de outros animais.
Um estudo da Oceana, publicado em outubro, mostra que o Brasil despeja aproximadamente 1,3 milhão de toneladas de resíduos plásticos no oceano por ano. Isso representa cerca de 8% de todo o plástico que chega aos mares globalmente, fazendo do país o líder em poluição plástica na América Latina e o 8º maior poluidor do mundo.
A poluição plástica, no entanto, não começa lá na ponta, com o descarte inadequado. Por essa razão, pela primeira vez há um esforço global, liderado pelo Programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUMA), em firmar compromissos sobre todo o ciclo de vida dos plásticos. Espera-se que o Tratado Global contra a Poluição Plástica traga resoluções desde a produção dos materiais, a partir da extração de petróleo, até o gerenciamento dos resíduos, passando pelos químicos adicionados e pelos tipos de plástico e de uso.
As negociações começaram em 2022, com cinco encontros semestrais marcados para elaboração e ajustes no texto. A proposta é que o documento seja juridicamente vinculante, o que significa que todos os países signatários deverão colocar em prática políticas públicas de regulação do ciclo de vida do plástico. Em caso de descumprimento, pode haver sanções internacionais, inclusive comerciais.
A quinta sessão do Comitê de Negociação Intergovernamental (INC-5), prevista para ser a última rodada de negociações, vai reunir os países-membros da ONU na Coreia do Sul no fim de novembro. O texto atual, discutido durante o INC-4 em abril, no Canadá, ainda possui diversos pontos de conflito entre os países, especialmente os grandes produtores de petróleo e aqueles que mais sofrem com a poluição, como as nações insulares, ilhas que recebem boa parte dos resíduos plásticos do mundo, levados pelas correntes marítimas.
“Obviamente, os países produtores não querem nenhuma regulamentação. São os países produtores de petróleo, mesmo, que tampouco aceitam regulamentação dentro das Convenções do Clima. Temos os países do Golfo, a Rússia, a China, por exemplo, dizendo que a produção está fora do escopo do tratado”, explica Ana Rocha, diretora do programa global de plásticos da Aliança Global para Alternativas à Incineração (GAIA).
Os países estão divididos pelo nível de ambição no tratado. De um lado, os produtores de petróleo e aqueles com indústrias químicas muito fortes. De outro, está a High Ambition Coalition (coalizão de alta ambição), idealizada por Ruanda e Noruega, e que inclui os países que mais sofrem com a poluição plástica, como o bloco africano e as nações insulares, e outros que querem sanções fortes contra o plástico.
O Brasil não faz parte de nenhum dos blocos e está no “centrão” das negociações. A posição governamental tem sido a favor de um tratado universal, em que o texto seja aprovado por consenso entre todas as partes.
“Não tem como ter um tratado universal se a gente quiser ter algum nível de ambição e que realmente regulamente a produção. Tem uma probabilidade de nem todos os países ratificarem a princípio, especialmente os produtores. Isso não é necessariamente ruim, dá para ter um tratado em que os outros países do mundo o ratifiquem e os mecanismos de financiamento sejam desenvolvidos para ajudar nessa implementação. E, com o tempo, a gente tenha regulamentação comercial que crie o incentivo e a barreira necessária para que os países produtores acabem aderindo ao tratado”, avalia Ana Rocha.
Em entrevista ao Joio, Maria Angélica Ikeda, diretora do departamento de meio ambiente do Ministério de Relações Exteriores (MRE) e negociadora-chefe do Brasil para o Tratado Global dos Plásticos, afirmou que o Brasil quer um “acordo sério, robusto e concreto”.
“Estamos em um ambiente em que o Brasil assume obrigações e não se nega a isso. Mas também vamos precisar de financiamento para isso. Defendemos um mecanismo de financiamento que seja solidário com países em desenvolvimento e que, entre esses, dê atenção aos mais pobres, como os países insulares”, disse.
“Não podemos cobrar uma implementação concreta do acordo se não dermos apoio. Eles vão precisar de capacitação e terão que criar seus planos nacionais para implementar o acordo e a legislação. Aliás, é uma coisa que nós também vamos ter que fazer aqui no Brasil”, completou.
Para Lara Iwanicki, gerente de campanhas e advocacy da Oceana no Brasil, a esperança é que o tratado dê o pontapé que está faltando ao país para regular a produção, o uso e o descarte do plástico. “Se o Brasil tivesse políticas públicas consolidadas, em fase de implementação, o nosso posicionamento seria muito mais progressivo. A gente sentaria em um outro lugar na mesa”, aponta.
“Temos a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que exige a logística reversa das embalagens, e isso não está implementado. Há a promessa de um decreto de logística reversa de plástico desde que o governo atual começou, que era uma coisa que vinha desde o governo Bolsonaro, e esse decreto nunca saiu. A logística reversa das embalagens é importante para, no mínimo, termos menos disponibilidade dessas embalagens no ambiente.”
A lei que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) foi sancionada em 2010. Ela prevê logística reversa e responsabilidades compartilhadas entre fabricantes e o poder público sobre o ciclo de vida dos produtos. No artigo 32, a lei diz que “as embalagens devem ser fabricadas com materiais que propiciem a reutilização ou a reciclagem”. Pouco saiu do papel desde então, e a indústria segue fabricando toneladas de plásticos descartáveis.
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E os acordos internos?
Uma vez assinado um tratado internacional, cada país precisa criar políticas internas de regulação para colocar o acordo global em prática no seu território. No Brasil, o texto precisa ser ratificado pelo Congresso e depois podem vir leis, portarias e decretos que tratem de temas inclusos no compromisso. Isso já foi feito para outros tratados, como o Acordo de Paris e o Protocolo de Montreal.
Além do MRE, a comitiva brasileira no INC inclui representantes de outros ministérios, como do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) e da Saúde (MS). No entanto, os interlocutores da sociedade civil ouvidos pelo Joio afirmam que nem sempre o Brasil pareceu ter uma posição unificada nas rodadas de negociação.
Durante um seminário sobre o tratado em Brasília, em outubro, Carlos Fonseca, coordenador-geral da assessoria especial de assuntos internacionais do MMA, disse que o país está formando um posicionamento único. Segundo ele, não se pode perder de vista que o acordo tem o objetivo de reduzir a poluição plástica e que o Brasil, como maior produtor de plástico da América Latina, é também o maior gerador de resíduos.
“O reflexo disso é que a gente tem hoje um volume acumulado de poluição plástica no oceano que não faz sentido trabalhar a nível nacional para resolver. O custo total que se estima para limpar o oceano na situação atual é de cerca de 150 bilhões de dólares, e não dispomos desse recurso. Então, precisamos trabalhar de outra forma. A gente precisa fechar a torneira”, pontuou.
No mesmo evento, Rodrigo Zerbone Loureiro, diretor de programa da secretaria executiva do MDIC, afirmou que o país precisa ter uma estratégia clara de onde quer chegar e os caminhos que vai percorrer. Assim, os investidores poderão se munir de informações sobre quais produtos químicos serão proibidos, por exemplo, e fazer escolhas de negócios mais favoráveis ao meio ambiente.
“Sob o ponto de vista do MDIC, entendemos que, por serem setores muito estratégicos (indústria química e de transformação do plástico), a gente precisa abordar por diversos mecanismos. Seja por mecanismos regulatórios ou de incentivos”, disse.
A adaptação de uma indústria bilionária e influente é um desafio anunciado no Brasil. De acordo com um relatório da Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast), o faturamento do setor em 2023 foi de R$ 123 bilhões. As corporações são maioria desse mercado produtor, respondendo pela fatia de 67,2%. Nesse meio, estão as gigantes Braskem e Ambipar.
Figurões do petróleo e da indústria
O lobby da indústria não é novidade em negociações de tratados internacionais, tampouco durante a discussão de projetos de lei nacionais, como é o caso do PL 2524/2022, que propõe regulamentar uma economia circular do plástico no Brasil e ainda aguarda votação no Senado. No caso do Tratado Global dos Plásticos, representantes das indústrias petroquímicas e produtoras de plásticos têm grande interesse em influenciar as tratativas.
“Os lobistas têm acesso direto aos negociadores. A gente viu lobistas da indústria química sinalizando para diplomatas que estavam lá negociando, indicando que tinham mandado mensagens para o celular da pessoa. De forma escancarada, no meio da negociação”, conta Lara Iwanicki, da Oceana.
Uma análise do Centro de Direito Ambiental Internacional (CIEL, na sigla em inglês) contabilizou a participação de 196 lobistas da indústria petroquímica durante a quarta rodada de negociação, em abril. Um aumento de 37% em relação aos 143 lobistas registrados na etapa anterior, em novembro de 2023.
É de se esperar que o interesse da indústria cresça conforme as negociações avançam. Com o texto do acordo sendo lapidado, as mudanças propostas pelo tratado passam a preocupar grupos como ExxonMobil, BASF e a brasileira Braskem. As empresas do setor tentam reforçar o caráter “salvador” do plástico, apelando para seu uso na saúde e seu papel na economia dos países. A tecla em que batem com frequência é a de fortalecer a reciclagem, sem mexer na produção.
Somam-se às indústrias petroquímica e produtora de plásticos as suas principais consumidoras, no que tem sido chamado de “business coalition” (coalizão de negócios). Quem se apresentou como líder da coalizão foi a PepsiCo, mas no grupo também figuram Coca-Cola, Danone, Kraft Heinz, Mondeléz e Nestlé, só para citar as indústrias alimentícias. Há também varejistas da moda, conglomerados de supermercados, fabricantes de cosméticos e muito mais na lista de apoiadores.
Hoje, apenas 9% do plástico global é reciclado, inclusive porque é mais barato fabricar e comprar um produto novo do que reciclar. “Tem muito mais plástico sendo produzido do que qualquer capacidade de gerenciamento de resíduos pode gerenciar”, destaca Ana Rocha, da GAIA.
E a produção do polímero, por si só, prejudica os ecossistemas com a extração do petróleo e de outros compostos, como o sal-gema, matéria-prima utilizada na produção de plástico tipo PVC. Vale lembrar que a extração de sal-gema foi a causa do colapso de minas da Braskem em Maceió, no fim de 2023. Mais um desastre socioambiental para a conta do país.
“Diminuir a produção de plásticos é evitar que novos desastres, como o de Maceió, aconteçam”, defende Rafael Eudes, embaixador do Break Free From Plastic e integrante do comitê gestor da Aliança Resíduo Zero Brasil. Ele aponta que outra questão importante, que deveria constar na versão final do tratado, é a rastreabilidade das substâncias químicas presentes nos plásticos.
Uma possibilidade seria obrigar que os fabricantes listem os aditivos e suas quantidades, e que essa informação possa ser acessada pelo consumidor final em um QR Code ou aplicativo. Assim, você saberia ao que está sendo exposto ao consumir determinado produto.
“Se você pegar uma garrafa de plástico agora, você não sabe quais aditivos químicos estão presentes e em que concentrações, se são cancerígenos ou não, se são disruptores endócrinos… simplesmente não tem essa informação. E transferir essa responsabilidade para a sociedade civil organizada e para os pesquisadores é extremamente desonesto”, avalia Rafael.
“Quanto menos a gente sabe, mais difícil e mais caro é para a ciência entender que substâncias químicas estão naquele plástico que foi encontrado causando poluição”, completa.
A resposta ao problema da poluição plástica, portanto, deve ir além da reciclagem e regular todo o ciclo de vida do material. No entanto, se negociadores do setor privado forem as vozes dominantes à mesa, há grandes chances de o mundo sair da discussão com um tratado suavizado e com pouca chance de avanços na política interna e externa.