Pressão do agronegócio e hegemonia do ensino da agricultura convencional também estão por trás de fechamentos de bacharelados e tecnólogos na área
A estudante de agroecologia Daniele Mereb descobriu a existência do seu curso superior depois de uma frustração. Ela estava cursando computação em outra universidade quando se viu programando tecnologia para o agronegócio em troca de créditos de disciplinas.
“Já peguei projeto de desenvolvimento de drones agrícolas com mão de obra de estudantes. Isso acontece com muita regularidade e eu entrava em choque com muitas dessas questões”, lembra.
O choque a fez pensar na trajetória rural de sua própria família, formada por ex-agricultores empurrados para a periferia de Pelotas (RS) pelo avanço de grandes propriedades rurais na região. “Fui percebendo que tinha algo que minha família fazia e que poderia ser retomado. Deu um estalo”.
Ela largou a graduação e conheceu o bacharelado em Agroecologia da Universidade Federal do Rio Grande (Furg). “Foi certeiro, agregou muito no que eu quero construir, pensar soberania alimentar, ter proximidade com agricultores familiares”.

Dois anos após a decisão, porém, o curso, que foi criado em 2014, está ameaçado. A previsão é que seja substituído, a partir de 2027, por um curso de agronomia.
Embora a ideia seja que o novo curso se chame “Agronomia com ênfase em agroecologia”, Mereb alerta que a mudança, proposta à revelia dos estudantes, pressupõe a inclusão de uma grade de disciplinas voltadas à formação para o modelo de produção do agronegócio.
“Vai acabar atrapalhando o que deveria ser o foco do curso. Vai colocar mecanização, irrigação, coisas que exigem uma padronização da agricultura e da pecuária. E não é isso que a gente quer. A gente quer entender como funcionam essas ferramentas, mas dentro do escopo da agroecologia”, afirma.
O caso da Furg não é isolado. Diferentes universidades do país estão avaliando o fechamento de seus cursos de Agroecologia, bem como a substituição por cursos de Agronomia. O processo já aconteceu com outros bacharelados de agroecologia, como Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), que era o mais antigo do país. Em 2021, ele foi transformado em um bacharelado em “Agronomia com ênfase em agroecologia”.
No entanto, como revela a ex-professora do curso na UEPB, Rita de Cássia Cavalcante, a agroecologia em questão está longe de ser enfatizada. “Os estudantes estão vendo que a perspectiva é a do agro com veneno, outra dimensão ideológica”.
Segundo Cavalcante, que é pedagoga e deixou o curso após a mudança, e segue como professora de Pedagogia da UEPB, o processo foi fruto de uma “disputa de território” dentro da universidade.
“A maior parte dos professores são filhos do agro, tem essa relação. E o que tem acontecido nacionalmente [com outros fechamentos de cursos] também é pressão do agronegócio”, denuncia.
Ela afirma que já esperava o fenômeno de “efeito dominó” do caso da UEPB em outras universidades. Além do curso em questão, outros dois cursos superiores em agroecologia foram fechados na Paraíba desde então: um na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), e outro na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Diante dessa conjuntura, graduandos em agroecologia pelo país estão apreensivos. O Joio acompanhou plenárias que contaram com a presença de estudantes desses cursos durante o 13º Congresso Brasileiro de Agroecologia, que ocorreu em outubro, na cidade de Juazeiro (BA).
Em uma delas, a assistente social Tereza Cristina Coelho Matos, aluna do curso de Agroecologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI), relatou “dificuldades na manutenção do curso”, além do fechamento de outro curso superior de agroecologia, esse do Instituto Federal do Piauí (IFPI).
Matos enxerga o movimento como um “cercamento nas universidades para a produção de conhecimento que favorece o agronegócio”.
As justificativas institucionais por trás do fechamento dos cursos superiores em agroecologia são complexas, mas têm um denominador em comum: as barreiras para a atuação profissional dos formados.
A profissão de agroecólogo não é regulamentada, o que, segundo parte dos professores, estudantes e egressos ouvidos pelo Joio, tem refletido na dificuldade de inserção profissional, principalmente em cargos públicos concursados.
Agroecologia X Agronomia
A Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) define a agroecologia como uma ciência, um movimento político e uma prática social, que articula diferentes áreas de conhecimento para desenvolver sistemas agroalimentares socialmente e ambientalmente sustentáveis.
Os cursos superiores em Agroecologia são relativamente recentes no Brasil: o primeiro, da UEPB, foi fundado em 2007. Nas últimas duas décadas, porém, eles se espalharam pelo país.
Atualmente, são 57 cursos vigentes, distribuídos em 19 estados brasileiros, sendo 46 cursos tecnológicos, dez bacharelados e uma licenciatura.
Nesses 20 anos, porém, outros dez cursos foram criados e já extintos. Além disso, em alguns estados, principalmente no Centro-Oeste do país – região dominada pelo agronegócio – nunca foram abertos cursos superiores de agroecologia.
Cursos superiores de Agroecologia no Brasil

Em oposição, os cursos de agronomia e de ciências agrárias estão entre os mais antigos do país, alguns datando do final do século 19. Por décadas, esses cursos foram voltados à formação da elite ruralista.
A partir da Revolução Verde, a relação entre esses cursos e os interesses de corporações da recém-criada noção de “agronegócio” se acentuou. Os cursos de Agronomia passaram a receber financiamento constante de empresas do setor, além de hospedá-las dentro das próprias universidades.
Mas a resistência a esse modelo de produção do agro, chamado de “convencional”, também floresceu dentro dos próprios cursos. É o que explica o ex-presidente da ABA, e professor de agroecologia no Instituto Federal do Pará (IFPA-campus Castanhal), Romier da Paixão Sousa.
“A formação em agroecologia começa de maneira não institucionalizada, na tentativa não só de se fazer denúncias, mostrando os impactos ambientais e sociais do agronegócio, mas também de trazer anúncios de tecnologias sociais que são capazes de produzir alimentos em quantidade suficiente e em qualidade muito superior do que o atual modelo convencional consegue fazer”.
A partir dos anos 1980, a crítica ao pacote da monocultura regada a veneno para exportação, já protagonizada por movimentos sociais campesinos, passou a ganhar espaço dentro das universidades. À época, o termo “agricultura alternativa” unia professores, grupos de estudos e núcleos de pesquisa críticos ao modelo convencional.
Somente na década seguinte esse contraponto passou a ser institucionalizado por meio de disciplinas inseridas nas grades curriculares dos cursos de agronomia.
Em 1998, em resposta a reivindicações de movimentos populares, foi criado o Programa Nacional de Educação da Reforma Agrária (Pronera), voltado à formação superior de assentados da reforma agrária. Com o programa, um ensino mais completo em agroecologia passou a ser formalizado dentro das universidades.
Desde então, a formação institucional em Agroecologia no Brasil se capilarizou pelas universidades: além dos cursos superiores, ela ocorre em disciplinas, grupos e núcleos de pesquisa dos cursos de Agronomia e de diferentes áreas do conhecimento, além de ser contemplada pelo ensino técnico e no ensino de pós-graduação.
Entretanto, essa formação segue contra-hegemônica, como explica o ex-presidente da ABA. Em paralelo, o agronegócio tem se organizado cada vez mais também para “monitorar e fazer ações na área da formação”, analisa Sousa.
Com a difícil correlação de forças, a abertura de cursos superiores em Agroecologia passou a ser encarada justamente como uma estratégia de disputa do ensino convencional na Agronomia – que além de mais antigo, segue liderando com folga as ciências agrárias no Brasil: atualmente, há cerca de 400 cursos de Agronomia em todo o país.
Sete disciplinas de cana-de-açúcar
Para o agrônomo Eduardo Guatimosim, Chefe de Divisão de Transição Agroecológica no Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), a substituição de cursos por “Agronomia com ênfase em agroecologia” pode até ser “bonita, do ponto de vista teórico”. Ele opina, porém, que na prática os cursos seguem ensinando a “agronomia clássica”.
Na prática, os projetos pedagógicos de cursos de Agronomia são bastante distintos dos de Agroecologia, esses últimos mais interdisciplinares e baseados na concepção freiriana e multidisciplinar do diálogo de saberes. Guatimosim resume essas diferenças:
“O curso de agronomia é muito focado na produtividade e parte de um sistema reducionista do ponto de vista da complexidade do sistema agrícola. O profissional formado pelos cursos de agroecologia tem um enfoque mais holístico, mais genérico, em certa medida, mas que consegue perceber a necessidade e a importância do meio ambiente, das relações ecológicas do agroecossistema”, afirma.
Uma importante distinção entre as áreas está na organização da grade curricular. Os bacharelados em Agronomia costumam ter disciplinas separadas pelos tipos de alimentos cultivados, como explica Fernanda Ticianelli de Castro, agroecóloga formada pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde também há um tradicional curso de Agronomia.
“Os cursos de Agronomia são muito focados nas grandes culturas e grandes escalas. Em determinada região, a grade tem até sete disciplinas só sobre cana-de-açúcar. Em outra, sete disciplinas sobre café”, ilustra.
Já nos cursos de Agroecologia, a grade curricular não costuma ser dividida pela lógica da monocultura. A experiência do Bacharelado em Agroecologia da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) exemplifica bem a questão.
Por lá, a própria ideia de uma grade curricular tradicional é rompida, e o que existe é uma “trajetória curricular”. Os estudantes têm apenas uma disciplina, com carga horária de 495h, por semestre.

O curso também segue a metodologia da pedagogia da alternância, que o divide em dois tempos: o tempo-escola, uma semana do mês na qual os estudantes têm aulas no campus, localizado em Recife, e o tempo-comunidade, momento de educação e aplicação do que foi aprendido na própria comunidade.
Em resumo, a proposta pedagógica do curso da UFRPE tem como foco os desafios da agricultura familiar, ou campesinato, como explica sua coordenadora, Maria Virgínia de Almeida Aguiar. “Se a agroecologia é a ciência do lugar, é uma ciência que deve ser contextualizada, então nada melhor do que uma educação contextualizada também. A educação por alternância nos possibilita isso”, resume.
“Universidade aberta para o agronegócio e fechada para a diversidade”
Aguiar lembra que em seu primeiro ano como professora da UFRPE, em 2010, a universidade tinha acabado de receber um prêmio pelos serviços prestados ao agronegócio.
Agrônoma de formação, a hoje coordenadora do Bacharelado em Agroecologia começou na universidade como professora do curso de Agronomia, e destaca que a universidade é conhecida pela pesquisa em melhoramento de cana-de-açúcar.
“Nosso estado é enterrado na cana-de-açúcar e a nossa universidade, apesar de ter o nome ‘rural’, nega o rural, só traz a perspectiva da industrialização da agricultura. A universidade está muito aberta para o agronegócio e é muito fechada para a diversidade”, afirma.
Aguiar conta que, à princípio, foi contra a ideia da criação do superior em Agroecologia. Ela acreditava na importância de disputar a agronomia por dentro. “Nos anos 1980, a gente lutou muito para ter uma agronomia mais humana, mais ecológica. Mas acabei preferindo implantar o curso do que ficar brigando com os meus colegas e ficar isolada”, afirma.
Essa desqualificação também costuma ser acompanhada por hostilidade e perseguições.
O professor Álvaro Mafra, que leciona a disciplina de manejo do solo no curso de Agronomia da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), já foi atingido por essa perseguição. Ele respondeu a um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) na universidade após integrar a organização do 10º Seminário Catarinense de Agroecologia, em 2022.
“Em função do momento político na época e talvez da própria evolução da agroecologia, [o evento] foi visto como um movimento de resistência e isso sempre cria confrontos dentro dos setores mais tradicionais”, conta.
O PAD questionou principalmente o fato de uma das palestras do evento trazer, em uma apresentação, a expressão “Agro é fome”. Uma foto do slide da apresentação, divulgada nas redes sociais locais, foi amplamente criticada.
Os membros da organização do evento na Udesc tiveram que dar uma série de depoimentos, e buscar outras testemunhas para responder às acusações de “manifestação político-partidária” e constrangimento de estudantes, atribuídas ao evento. O PAD foi arquivado após alguns meses.
Relatos de violência são comuns também nos campi onde os cursos de Agronomia e de Agroecologia dividem espaço.
O agroecólogo Jardel Luiz Félix Pacheco, que estudou no curso de Tecnologia em Agroecologia da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), lembra que na época da sua graduação, entre 2009 e 2015, a gestão do Centro de Ciências Agrárias Ambientais e Biológicas, formada por agrônomos mais conservadores, incendiava ou colocava bois na estação experimental do curso de Agroecologia, com o objetivo de destruir os cultivos dos alunos.
“A agronomia se achava a dona da universidade toda”, afirma. O curso de Agronomia da UFRB, localizado no campus de Cruz das Almas, é herdeiro da Escola de Agricultura mais antiga da América Latina, o Imperial Instituto Bahiano de Agricultura.
Já a agroecóloga Natália Lobo, egressa da UFScar, lembra quando estudantes de agronomia do campus arrancaram uma série de cruzes em homenagem ao massacre de Eldorado dos Carajás, parte da Jornada Universitária pela Reforma Agrária (Jura), em 2015.
Segundo Lobo, para além de ações isoladas, há uma desqualificação generalizada do conhecimento agroecológico no campus. “Esse conhecimento é formado a partir do diálogo de saberes, a gente faz a produção científica mas tem como princípio colocar isso em diálogo com outros conhecimentos. Na universidade isso era colocado como uma aberração, como se a gente estivesse negando a ciência.”
Essa desqualificação ocorre também dentro dos próprios cursos de Agroecologia, principalmente por parte de professores agrônomos.
“Professor que entenda o que é a agroecologia são poucos”, conta Pacheco sobre a UFRB. “A maioria acha que é apenas um sistema de produção, então tivemos uma falha muito grande na formação, não estudamos manejo agroecológico como ciência e movimento.”
O Joio ouviu diversos relatos de casos de professores agrônomos de cursos de agroecologia que desdenham da agroecologia, tentam empurrar estudantes para cursos de Agronomia já existentes ou convencê-los a defender a substituição por novos cursos de Agronomia.
Em muitos casos, os professores de ambos os cursos são os mesmos, e dão o mesmo conteúdo em sala, como conta Natália Lobo.
“Eu tive aula de manejo de solo, que acho que é a disciplina técnica mais importante da agroecologia, com o mesmo professor do curso de Agronomia”, conta Natália Lobo. “Ele tinha uma visão super convencional, subestimava as principais teorias agroecológicas e dava a mesma aula para ambos os cursos, o que se repetia com vários professores na UFSCar”, revela.
Diferença “desleal” de orçamentos
Mais consolidados, os cursos de Agronomia também costumam ter um orçamento e infraestrutura bem mais robusto do que os de Agroecologia.
Lobo explica que o Bacharelado em Agronomia é o mais antigo da UFSCar, e também um importante polo de pesquisa sobre cana-de-açúcar. “Quem financia de fato a universidade e o campus é essa pesquisa, e isso se traduz em uma certa forma de poder, então, por mais que haja o curso de agroecologia, a hegemonia é da agronomia”, afirma.
Em paralelo, o curso de agroecologia tem bem menos orçamento na instituição, “o que se traduz em pouco espaço para campo experimental, aula prática”, completa a agroecóloga.
No Bacharelado em Agroecologia da UFRPE, a falta de orçamento traz impactos que dificultam o projeto pedagógico do curso. A coordenação consegue apoiar os estudantes agricultores com residência universitária e alimentação, mas não com transporte no modelo da pedagogia da alternância. “O que dificulta muito a vinda deles”, lamenta a coordenadora Aguiar.
A diferença orçamentária também é destacada pelo professor Álvaro Mafra, da Udesc. No caso, não há curso de agroecologia no campus da universidade, mas o professor revela uma grande desproporção de recursos para pesquisa na área da agroecologia. “O principal limitante que percebo é em relação ao financiamento de projetos”, afirma.
Para Mafra, essa diferença é “quase desleal”, uma vez que as corporações injetam recursos para o desenvolvimento da pesquisa na área convencional, e também na área de bioinsumos. “Que seria uma linha apropriada dentro da agroecologia, mas que as corporações estão se apoderando não para gerar uma tecnologia social, e sim para vender produtos”, denuncia.
Para Eduardo Guatimosim, essa disparidade de orçamento se relaciona a uma falta de vontade política refletida também nos orçamentos de políticas públicas para o agronegócio e para a agricultura familiar. “Os orçamentos do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) e do MDA têm magnitudes diferentes. O degrau é muito grande”, pondera.
Não é fácil identificar o financiamento privado nos cursos de Agronomia. Para entender os mecanismos de atuação de gigantes do agro na Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), uma investigação do Joio durou dois meses e entrevistou mais de 20 pessoas. Lá, as empresas patrocinam ou estão presentes em diferentes eventos anuais do campus, como a Feira de Carreiras e a Esalqshow, feira de inovação para o agronegócio.
Além disso, as empresas entram na escola por meio do financiamento de grupos de extensão, espécies de laboratórios de pesquisa nichados em diferentes temas. Parte dos grupos promove estágios remunerados por bolsas financiadas por empresas. Já a associação de ex-alunos da unidade tem entre seus patrocinadores a Bayer.
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Barreiras para atuação profissional de agroecólogos
Essa falta de vontade política não tem atrapalhado apenas a formação de agroecólogos, mas também sua atuação profissional.
Um levantamento realizado pela ABA em 2020 com egressos de cursos superiores em Agroecologia revelou que 57% nunca atuou profissionalmente na área da agroecologia. Desses, 86% apontaram a falta de emprego como motivo.
O levantamento aponta também que, entre os egressos que já haviam atuado na área, a maioria trabalhou na iniciativa privada (30%). A atuação na Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) pública, política de apoio à agricultura familiar, que é principal público-alvo da agroecologia, foi minoria entre as respostas (11%).
Eduardo Guatimosim avalia que à época os resultados refletiram também a conjuntura política do país. “Os cursos foram criados num contexto de políticas públicas de agroecologia em ascensão, e aí essas políticas foram desmontadas pelos governos seguintes e não tinha quem desse conta desse setor”.
Entretanto, mesmo com a retomada de políticas como o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) no atual governo, a dificuldade de inserção no setor público segue apontada como um dos principais entraves para a atuação profissional de agroecólogos.
A maior parte dos concursos públicos sequer abre vagas para bacharéis ou tecnólogos em Agroecologia.
O Comitê Nacional de Profissionais em Agroecologia (Copa), criado em 2020, tem encabeçado o enfrentamento à questão. A organização já pediu a impugnação de uma série de concursos públicos que poderiam enquadrar agroecólogos entre as formações autorizadas.
“A gente já tem até uma cartilha para pedir impugnação. Abrem editais para assistências técnicas, inclusive em Agroecologia, que não têm como requisito ser profissional em agroecologia”, explica Jardel Luiz Félix Pacheco, que já foi barrado em um concurso público na Agência Estadual de Defesa Agropecuária da Bahia por conta da sua formação pela UFRB.
Integrante do Copa, a egressa da UFSCar Fernanda Ticianelli de Castro revela que também não conseguiu concorrer a uma vaga de Ater no núcleo de agroecologia da própria universidade, uma vez que foi exigida inscrição ativa em conselho profissional.
A autorização da participação de agroecólogos em concursos públicos não favoreceria apenas a categoria.
É o que destaca Iolanda Rodrigues Cadete, assentada da reforma agrária e agroecóloga formada pelo Instituto Federal de Brasília (IFB), ao lembrar das reações de agricultores ao seu trabalho como Ater. “Eles falam que a nossa abordagem é mais lúdica, mais respeitosa. Já recebi diversos retornos positivos”, conta.
A luta pela regulamentação da profissão
Na pesquisa conduzida pela ABA com egressos de cursos de agroecologia, a falta de regulamentação da profissão também foi identificada como motivo para a dificuldade de atuação na área.
“Diziam que havia uma falta de reconhecimento profissional, que as pessoas não entendiam o que era a profissão e que preferiam contratar quem já era regulamentado, com registro profissional”, afirma Guatimosim, um dos responsáveis pelo estudo.
A falta de inscrição em conselho profissional tem sido uma barreira para agroecólogos que querem trabalhar na Ater. Isso porque, parte da atuação mais técnica em campo, como a indicação do uso de caldas (preparações naturais usadas para proteger plantas contra insetos e doenças) e outros insumos não químicos, envolve a elaboração de Anotação de Responsabilidade Técnica (ATRs), documento emitido a partir dos Conselhos Regionais de Engenharia e Agronomia (Creas).
O professor de agroecologia Eli Lino de Jesus, do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF Sudeste MG), tenta registrar o bacharelado em Agroecologia no Cres-MG desde 2012. Em 2018, o conselho chegou a registrar os egressos, mas o Confea logo cancelou esses registros. A questão chegou a ser judicializada, mas ainda não foi resolvida.
Segundo o professor, a falta de registro reduz muito a possibilidade de atuação dos egressos em Agroecologia. “Todos os concursos públicos que exigem diploma de Engenharia Agronômica ou Agronomia, o que representa a imensa maioria, são impossíveis para o profissional com diploma em bacharelado em Agroecologia. Isso praticamente inviabiliza a atuação na esfera pública”, avalia.
A retomada desse registro tem sido demandada por professores e egressos de Agroecologia em diferentes estados. Na maior parte dos casos, ainda não surtiu efeito. Hoje, apenas os Creas de alguns estados registram bacharéis em agroecologia. Já os tecnólogos em Agroecologia são, atualmente, registrados pelo Confea.
“Desde que a primeira turma se formou em nosso campus, o diálogo junto ao Crea-SP para obtenção de registro foi lento e injusto. Estávamos sempre bloqueados com as mesmas respostas de sempre, pouca abertura, análises pobres, duras e que eles mesmo se contradizem com os próprios instrumentos legais pertinentes”, afirma Marina di Pietratonio, egressa da UFSCar que entrou com uma manifestação inicial no Ministério Público Federal (MPF) para exigir o registro.
O processo de di Pietratonio no MPF incentivou a elaboração de uma minuta de decreto presidencial, por parte do MDA, para o reconhecimento da profissão de agroecólogo. O texto está sendo esboçado no ministério há alguns meses.
Projeto de lei
Em paralelo, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 3710/2019, de autoria da ex-deputada federal Margarida Salomão (PT-MG), que também pede o reconhecimento da profissão.
Iolanda Rodrigues Cadete, assentada da reforma agrária e agroecóloga que também é vice-presidente da Associação dos Agroecólogos do Distrito Federal, acompanhou o trâmite do projeto. Ele foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara em março de 2025 e atualmente aguarda votação no Senado.
Cadete relata a presença de lobistas do Crea durante a tramitação do projeto em comissões na Câmara. “Verbalizaram algumas palavras inadequadas, falaram que não iam deixar passar, com o argumento de que eles sabem fazer agroecologia e não precisavam de um curso que ninguém nem reconhecia, nem sabia o que era”.
Desde então, entretanto, ela afirma que estabeleceu contato com o Crea-DF, que passou a registrar agroecólogos no DF.
Em uma carta assinada em 2023 pelos integrantes do Copa, o comitê de profissionais em agroecologia defendeu que o Confea tem “obrigação em ser o conselho competente por regularizar os bacharéis em agroecologia” em todo o país.
A demanda da regulamentação via conselhos de engenharia não é unanimidade entre quem atua na agroecologia. Maria Virgínia de Almeida Aguiar, a coordenadora do Bacharelado da UFRPE, questiona a legitimidade do conselho para a área agroecológica, diante de seu caráter interdisciplinar.
A coordenadora destaca que os egressos da UFRPE têm conseguido atuar profissionalmente como agroecólogos, mas que isso parte de iniciativas do próprio curso. “A gente puxa esse debate com as organizações contratantes, com quem desenvolve a política de Ater, com os movimentos sociais. Estamos fazendo nossa tarefa de casa”, afirma.
Os egressos de outras universidades, entretanto, defendem em coro a dificuldade de atuar com as atividades mais técnicas da agroecologia sem a regulamentação da profissão.
Segundo Eduardo Guatimosim, do MDA, um decreto presidencial ou aprovação de um projeto de lei não vai resolver o problema, “mas pode ser mais uma ferramenta para quem disputa a política”. Ele destaca que a previsão da regulamentação da profissão de agroecólogo está inserida no próprio Planapo.
O Joio buscou o posicionamento da coordenação do Bacharelado em Agronomia com ênfase em agroecologia da UEPB em relação aos pontos trazidos pelos entrevistados, mas não obteve resposta. O coordenador do Bacharelado em Agroecologia da Furg preferiu não comentar sobre a extinção ou substituição do curso.
A reportagem procurou também o sistema Confea/Crea, que afirmou apenas que o título de Bacharel em Agroecologia não consta em sua resolução de títulos profissionais atualmente existentes nos conselhos.





