Para custear parte dos gastos de eventos como Carnaval e São João, capitais do Nordeste e cidades como Caruaru (PE) e Campina Grande (PB) recebem para veicular propaganda de bebidas alcoólicas, mas faltam registros dos contratos e sobram reclamações de ambulantes e consumidores

Todos os anos, meses antes de importantes festividades como o Carnaval, os festejos juninos e o Réveillon, as prefeituras das nove capitais do Nordeste se movimentam para montar a programação com artistas de peso e uma estrutura que dê conta do alto fluxo de turistas. Parte dos custos para a realização dos eventos — que, no caso do São João, podem durar mais de um mês — é coberta com a venda de cotas de patrocínio.
Na lista de patrocinadores, é frequente a presença de fabricantes de bebidas alcoólicas. No entanto, apesar de a negociação envolver o poder público, os valores e os termos dos acordos entre administrações municipais e empresas do setor não estão disponíveis para consulta e avaliação pública.
O Joio consultou diários oficiais (DOs) e comunicações oficiais nas redes sociais de todas as capitais nordestinas e dos dois principais centros juninos do país (Campina Grande, na Paraíba, e Caruaru, em Pernambuco), solicitou dados via Lei de Acesso à Informação (LAI) e contatou diretamente as prefeituras e as fabricantes de bebidas alcoólicas que patrocinaram de forma recorrente festas públicas nesses municípios nos últimos dez anos.
A conclusão foi de que a regra é a falta de transparência, seja ela ativa ou passiva — quando o ente público disponibiliza informações por conta própria ou quando o faz obrigado por algum órgão da Justiça, respectivamente.
Segundo Marina Atoji, diretora de Programas da ONG Transparência Brasil e especialista em LAI, ao não divulgarem informações sobre contratos de patrocínio para festas, “as prefeituras violam o princípio constitucional da publicidade na administração pública, além das seguintes leis: Lei de Licitações (tanto a antiga, a 8.666, quanto a nova, 14.133), a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei de Acesso à Informação”. O descumprimento dessas normas pode gerar desde advertências e multas aplicadas pelo Tribunal de Contas local a processos por improbidade administrativa.
Para além da falta de transparência sobre esses contratos, o forte vínculo entre marcas de bebidas alcoólicas e festas populares levanta questionamentos sobre o incentivo e a normalização do consumo de álcool em espaços públicos, com grande circulação de jovens. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 13,5% de todas as mortes no mundo na faixa etária de 20 a 39 anos são causadas por esse hábito.
No Brasil, a principal regulamentação da publicidade de bebidas alcoólicas é a Lei 9.294/1996. Contudo, ela se aplica apenas no caso de “bebidas potáveis com teor alcoólico superior a treze graus Gay Lussac”, deixando de fora, por exemplo, a cerveja, que responde por 90% das vendas desse tipo de produto no país.
A falta de transparência é regra até mesmo nos diários oficiais
Em relação às festas juninas, a reportagem não conseguiu obter qualquer informação sobre a venda de cotas de patrocínio para marcas de bebidas alcoólicas entre 2016 e 2025 em Teresina, Natal e São Luís. Essas três cidades e Fortaleza ignoraram as solicitações via LAI, descumprindo os prazos estipulados por lei para a apresentação de respostas em 20 dias corridos, prorrogáveis por mais 10, além de não responderam às reiteradas tentativas de contato via assessorias de comunicação de suas gestões municipais.
Já as respostas das outras cinco capitais foram incompletas, e nem mesmo nos diários oficiais municipais são divulgadas informações básicas, como a relação das empresas patrocinadoras. No caso de Maceió, por exemplo, pesquisas nas edições do Diário Oficial de 2023, 2024 e 2025 não encontraram referência aos contratos firmados nesses três anos entre prefeitura e Brahma, uma das marcas de cerveja da AmBev.
Já a Secretaria Municipal de Turismo (Saltur) de Salvador respondeu um pedido de LAI — feito originalmente à Secretaria Municipal de Cultura (Secult) — afirmando que “não recebe patrocínio de empresa de bebidas para Festejos Juninos”. Contudo, no começo de junho deste ano, o prefeito Bruno Reis (União Brasil) disse à imprensa baiana que o Arraiá da Prefs, como é chamado o São João soteropolitano, teria patrocínio da AmBev e da Coca-Cola. O evento é organizado pela Secult.
De milhões a “dinheiro de pinga”
A edição de 8 de novembro de 2016 do Diário Oficial de Recife registra um extrato de contrato da Secretaria Municipal de Turismo e Lazer com a AmBev para cota de patrocínio master por três anos (2017, 2018 e 2019). O valor total de R$ 28,5 milhões contemplou Carnaval, São João e Natal. Um termo aditivo de abril de 2019 reajustou o valor em 4,53%, aumentando a cifra destinada àquele ano de R$ 9,8 milhões para R$ 10,2 milhões. Desde então, os valores de patrocínio de fabricantes de bebidas alcoólicas aos festejos juninos da cidade foram reduzidos.
Em junho de 2021, o prefeito de Recife, João Campos (PSB), anunciou a criação do Auxílio Municipal Emergencial (AME), “destinado à concessão de benefício financeiro às quadrilhas juninas, atrações artísticas e técnicos que atuaram no Ciclo Junino do Recife, nos anos de 2018, 2019 ou 2020”. Um dos patrocinadores da iniciativa foi a Bohemia, outra marca de cerveja da AmBev, com um aporte de R$ 500 mil.
Sobre o período pós-pandemia de covid-19, a prefeitura da capital pernambucana informou, via LAI, que o São João de 2024 teve apenas um patrocinador fabricante de bebidas alcoólicas — a pernambucana Pitú — no valor de R$ 120 mil. Ainda que confirmado pela administração municipal, o extrato do acordo não consta no Diário Oficial nem na aba de contratos para o setor de cultura no site oficial da capital, que só lista a opção “Carnaval do Recife” entre o que chama de “Ciclos Festivos”. Ou seja, não se sabe quais os termos dessa negociação.
Sobre os anos anteriores, a Prefeitura de Recife disse não ter informações, uma vez que “a gerência de captação só foi implantada em 2023”.
Em 2022, o edital de processo simplificado lançado pela Secretaria de Cultura recifense para selecionar patrocinadores para o São João daquele ano excluiu textualmente “empresas do segmento de bebidas: cervejas, chopps, refrigerantes, suco de frutas, água mineral e seus respectivos derivados”.
Muito álcool nos dois maiores festejos juninos do mundo
Famosas por disputarem o título de sede do maior São João do mundo, Campina Grande, na Paraíba, e Caruaru, em Pernambuco, destacam-se também pela diversidade de patrocinadores do setor de bebidas alcoólicas. As duas metrópoles juninas não responderam aos questionamentos do Joio sobre valores e termos que regem os contratos firmados, mas, a partir de materiais de divulgação publicados online, a reportagem compilou os dados apresentados no quadro abaixo.
Segundo informações oficiais, quatro milhões de pessoas compareceram aos shows dos festejos juninos de 2025 em Caruaru, gerando uma receita de R$ 737,6 milhões. Entre seus patrocinadores estavam a cerveja Devassa, a cachaça Pitú e o espumante Chandon.
No entanto, esses aportes não constam no Diário Oficial do município pernambucano, ao contrário de sua edição de 30 de abril deste ano, que informa o termo de autorização para patrocínio de R$ 1,2 milhão do Banco Bradesco, que respondeu ao chamamento público específico para instituições financeiras.
Apesar do volume total de R$ 37,7 milhões arrecadados em patrocínios para a realização do São João de 2025, artistas locais de Caruaru relataram cachês desiguais, atrasos nos pagamentos e descaracterização da festa em favor de atrações com custos milionários.
Em Campina Grande, cuja tradição do São João como megaevento teve início na primeira metade dos anos 1980, cerca de 3,2 milhões de pessoas circularam durante os 38 dias de festa, gerando uma receita de R$ 742 milhões, um acréscimo superior a 10% em relação a 2024, segundo um comunicado da prefeitura.

Ambulantes relatam constrangimentos e prejuízos
“Foi péssimo, foi humilhante. Eu sofri lá em Itabaiana. No segundo dia, o fiscal da Brahma disse que eu não paguei. Falou: ‘Vou prender o seu carro’. Eles dizem que é para estar com o adesivo da marca da cerveja no isopor. Eles não me deram, acharam que eu estava como? Clandestina. Por isso, nunca mais eu vou para uma festa [com patrocínio] de cervejaria. É humilhante”, relata ao Joio a vendedora ambulante Neusa Batista dos Santos, 47. Há uma década ela trabalha com vendas de bebidas em festas populares da região metropolitana de Aracaju e em cidades do interior sergipano, como Itabaiana.

A trabalhadora explica que nos eventos com patrocínio da Brahma em que esteve, os fiscais da marca verificavam “de dez em dez minutos” se os ambulantes estavam vendendo apenas os produtos da patrocinadora, prática confirmada por outros vendedores ouvidos pela reportagem no centro da capital de Sergipe, um dos locais onde foi realizado o Forró Caju, que este ano não teve aporte de fabricantes de bebidas alcoólicas.
Também ao Joio, Maria Conceição, 42, que igualmente trabalhou no São João de Aracaju deste ano, queixa-se do patrocínio das marcas a festas. “É pior, porque obriga a gente a comprar só deles. São menos marcas e é mais caro”, afirma a comerciante. Segundo ela, isso faz aumentar o preço para os consumidores finais, que também reclamam da redução das opções de bebidas.
Esse cenário, no entanto, não é exclusividade de Aracaju. Desde a retomada das festividades após a pandemia de covid-19, a Prefeitura de Campina Grande manteve a decisão que obriga os ambulantes do Parque do Povo, espaço que concentra as atrações, a comprarem bebidas para revenda somente no depósito autorizado das patrocinadoras, localizado dentro da área da festa.
Uma das pessoas afetadas pela medida é Antônia Severina Ramos Luciano, que há 48 anos trabalha como ambulante em Campina Grande. “Eu vendia no isopor, mas, como não pode mais, parei de vender”, explica. Na festa deste ano, ela comercializou apenas churrasco. Além de bebidas e comida compradas fora do espaço oficial, a entrada de copos não oficiais também foi proibida.

Imagem “afetiva” das bebidas alcoólicas
Prática corriqueira em festividades populares no Brasil, a associação a um grande evento com o objetivo de impulsionar entre os consumidores a imagem “afetiva” de uma marca ou produto específico é uma ação de marketing conhecida como “ativação de marca” ou “ativação de patrocínio”.
Os exemplos são muitos. O Carnaval de Recife de 2024 teve patrocínios da Petra e da Ambev; a Virada Salvador do mesmo ano contou com patrocínio da Amstel; e o Festival de Parintins de 2025, no Amazonas, teve a Brahma na lista de patrocinadores. Desde o começo dos anos 2000, a Brahma também investe em publicidade veiculada em eventos de rodeio, como os realizados anualmente em Barretos e Americana, no estado de São Paulo.
A tática vai além de dar visibilidade à logomarca da empresa ou à imagem do produto em banners e outros materiais promocionais. A ativação de marca visa também “construir uma ação interativa”, explica o bacharel em Comunicação Social (UFPE) Felipe Barros da Silva Mendes.
Em sua monografia, ele analisou a estratégia da Pitú no São João de Caruaru em 2017. Por cinco dias, a marca disponibilizou aos que circulavam por um dos locais dos shows uma madeira retangular e longa, chamada de “pau de shot”, que poderia conter até 20 copos de dose de bebida alcóolica. A “interação” consistia em várias pessoas beberem doses de produtos Pitú de uma só vez, virando o “pau de shot” ao mesmo tempo. Segundo o site da fabricante, o teor alcoólico dos seus produtos varia de 5% (Pitú Cola) a 40% (Aguardente Pitú).

Mais recentemente, as casas de aposta, popularmente conhecidas como bets, têm adotado essa abordagem por meio de espaços físicos nas festas juninas do Nordeste. Em Alagoas, o São João de Massayó, como é conhecido o festejo organizado pela prefeitura da capital alagoana, teve patrocínio da VaideBet nos dois últimos anos. No São João de Campina Grande, segundo a Agência Pública, o patrocínio da Bet 7K envolveu o cadastro de participantes na plataforma da empresa e a experiência de aposta no local da festa.
Respostas das fabricantes de bebidas alcoólicas
O Joio contatou as fabricantes de bebidas alcoólicas mencionadas, com exceção daquelas que patrocinaram espaços de circulação paga em festejos juninos, como camarotes, pois sua administração e exploração comercial é de responsabilidade das empresas privadas ganhadoras de licitações específicas para tal.
As empresas foram questionadas sobre se possuem algum documento que oriente os acordos de patrocínio com entes públicos municipais, quais cidades tiveram festas patrocinadas por elas na última década, quais os valores negociados, se são destacados funcionários para fiscalizar as vendas de seus produtos nas festas patrocinadas e qual a avaliação que fazem da exposição da marca nesses espaços e contextos.
A AmBev, cujo lucro líquido no primeiro semestre de 2025 alcançou R$ 6,6 bilhões e que tem em sua lista de produtos a Brahma, Budweiser, Skol, Bohemia e Beats Senses, não respondeu até o fechamento da reportagem. A Pitú também não deu retorno.
Em nota, o Grupo Heineken, dono da marca de cerveja de mesmo nome, da Devassa e da Schin, limitou-se a ressaltar a importância do mercado nordestino e afirmar seu apoio a “iniciativas e eventos que atendam aos critérios, formatos, documentos e determinações estabelecidos pelo Poder Público local”, enfatizando que atua “sempre com respeito e integridade, em conformidade com nosso Código de Conduta”. A versão reduzida desse documento prevê o registro obrigatório de patrocínios com entes públicos em ferramenta própria chamada HeiDisclosure e proíbe a vinculação de produtos alcoólicos do grupo a eventos com mais de 30% do público formado por crianças e adolescentes.
O Grupo Petrópolis, fabricante da cerveja Itaipava, respondeu via assessoria que “todos os contratos são fechados diretamente com as empresas privadas promotoras dos eventos, e seguem as diretrizes de Compliance da companhia”.
Apesar de não haver exigência clara sobre a divulgação de informações por parte das fabricantes de bebidas, Marina Atoji, da Transparência Brasil, explica que “o art. 33 da LAI dá margem para interpretar que as empresas seriam obrigadas a divulgar ativamente” dados sobre seus contratos com o poder público.
Ela cita a transparência como uma das práticas ESG — sigla em inglês para governança ambiental, social e corporativa — “ultimamente tão valorizada (ao menos para fins de marketing), uma vez que é uma prática anticorrupção”.
AmBev, Grupo Heineken e Grupo Petrópolis afirmam adotar práticas ESG.
Laianna Janu e Bruno Costa colaboraram.





