Com equipe enxuta, gerência de tabaco da agência enfrenta sobrecarga de trabalho e precisa rastrear a venda online de cigarros eletrônicos nas redes sociais “na mão”
O mercado brasileiros de cigarros é fiscalizado por apenas três pessoas, sendo que só uma se dedica exclusivamente à função e duas dividem a atividade com outras tarefas, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a responsável por monitorar e regular produtos fumígenos no país. Os dados foram obtidos pelo Joio via Lei de Acesso à Informação (LAI).
O trio de fiscais é o responsável por acompanhar de perto o que fazem grandes multinacionais como British American Tobacco (BAT, ex-Souza Cruz), Japan Tobacco International (JTI) e Philip Morris, que fabricam, vendem e exportam bilhões de cigarros ao ano. Além disso, eles também fiscalizam 74 fabricantes e importadores de charutos, palheiros e narguilé, e ainda precisam vigiar redes sociais e plataformas digitais para impedir a venda online de vapes ilegais.
A equipe “acaba fazendo só o mínimo para manter o paciente vivo em aparelhos”, resumiu à reportagem uma pessoa ligada à agência, em referência à regulação de tabaco do país.
Na prática, a falta de pessoal limita a fiscalização e sobrecarrega poucos servidores. Já que a Anvisa é central para fazer valer várias das normas antifumo brasileiras, como proibições à publicidade online de cigarros e à venda de vapes, a precarização do órgão fragiliza políticas de saúde que combatem o uso do tabaco e ameaça torná-las letra morta. Nas redes sociais, por exemplo, marcas de narguilé já fazem publis livremente, enquanto celebridades promovem charutos na TV aberta, como já mostrou o Joio.
Só entre julho e setembro de 2024, servidores da agência usaram buscas manuais e palavras-chave no Facebook e Instagram para remover mais de 6 mil links ilegais que vendiam ou promoviam fumígenos nas redes – metade deles vapes. A agência pediu à Meta a derrubada das páginas.
“Eles têm funcionários que precisam catar isso na mão, monitorar na unha e a gente sabe que eles fazem parcerias, chamam a Meta e e-commerces para conversar, mas têm poucos recursos humanos e tecnológicos”, lamenta Mariana Pinho, coordenadora do projeto de tabaco da ONG ACT Promoção da Saúde.
Até o fim de 2024, a agência tinha o auxílio do Epinet, uma IA fornecida pela empresa de defesa cibernética Axur que ajudava a rastrear e derrubar conteúdos irregulares automaticamente, explicou a Anvisa via LAI. Só que o contrato acabou e não foi renovado neste ano.
Apesar das dificuldades, Anvisa é referência internacional
Até agosto deste ano, eram dez funcionários lotados na Gerência-Geral de Registro e Fiscalização de Produtos Fumígenos, derivados ou não do Tabaco (GGTAB), o nome oficial da equipe na agência, informou o órgão ao Joio. Fora o trio de fiscais, servidores também analisam registros de novos produtos, respondem a demandas judiciais ou policiais, planejam novas normas e elaboram relatórios a pedidos do governo e órgãos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Por isso, não é raro que a equipe enxuta trabalhe aos finais de semana ou tenha horas-extra durante dias úteis. Ao Joio, a agência disse que adota um “Programa de Gestão Orientada para Resultados” para ajudar servidores a “organizar demandas dentro de seus horários de trabalho, desde que as metas e prazos sejam atendidos”. “A área só consegue rodar porque tem gente de home office que se você mandar mensagem às 23h está trabalhando para cumprir algum prazo”, disse uma pessoa ligada à agência à reportagem.
Ainda assim, apesar da sobrecarga, o trabalho da área de tabaco da agência é bem reconhecido fora do Brasil. Em maio deste ano, por exemplo, a Anvisa foi premiada pela OMS por ter mantido a proibição aos cigarros eletrônicos no país, regulação tida como exemplar pelo organismo internacional. Isso porque, apesar das dificuldades de fiscalização, os brasileiros usam menos vapes em comparação a países que os liberaram. No exterior, a epidemia de uso entre os mais jovens foi bem mais intensa.
Só que, à revelia do reconhecimento internacional, a indústria do tabaco tem pressionado pela liberação dos cigarros eletrônicos no Brasil acusando a proibição da agência de ser “ineficaz”, ideia que segue ganhando tração dentro do governo federal, da imprensa e mesmo de institutos de apoio à ciência sem que reforços à equipe do GGTAB estejam em pauta.
“Se a gente olhar do ponto de vista da saúde pública e comparar a outros países, o Brasil tem uma efetividade [no controle dos vapes] que, certas horas, acredito que só pode ser por força divina porque não tem gente pra dar conta”, afirmou ao Joio a fonte ligada à Anvisa, que tem trânsito junto ao GGTAB. Liberar geral, contudo, iria piorar o problema. “A indústria do tabaco vende a ideia de que existe um descontrole, mas, se houver liberação, vai aumentar o consumo, o mercado ilícito vai crescer e veremos o mesmo descontrole que ocorreu nos países que liberaram esses produtos”, diz.
Nos Estados Unidos, por exemplo, onde cigarros eletrônicos são legais, a Food and Drug Administration (FDA) – a “Anvisa dos EUA” – dispõe de centenas de funcionários e, mesmo assim, sofre para controlar os dispositivos. Por lá, mais da metade do mercado de vaping é contrabando. “A equipe de tabaco do FDA é enorme e não faz nem metade do trabalho da Anvisa”, compara a médica psiquiatra Caroline Costa, vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead).
Sem garantia de novos servidores para o GGTAB
Entre 2017 e 2024, o GGTAB atuou com um grupo que variou entre três e cinco funcionários, se considerados os lotados no órgão em agosto de cada ano.
Só que uma estimativa feita pela própria agência sanitária um ano antes, em 2016, levando em conta “a realidade dos processos daquele período” indicou que o GGTAB deveria ter pelo menos 17 servidores, afirmou o órgão ao Joio via LAI. Ou seja, por volta daquela época, cada trabalhador do setor fazia o serviço que deveria ser tocado por até cinco pessoas.
No mesmo período, de 2017 a 2024, as apreensões de cigarros eletrônicos pela Receita Federal saltaram de 8,6 mil para mais de 2 milhões. Além disso, a equipe atualizou as advertências nos maços – as imagens que alertam o fumante dos danos do tabaco –, revisou regras para registro de fumígenos e reviu normas de exposição desses produtos nos pontos de venda. Por fim, também enfrentou um boom em registros de essências para narguilé e cigarros saborizados, a maioria com base em decisões judiciais.
No início de 2025, o GGTAB ganhou um reforço e chegou a dez servidores, que hoje são auxiliados por quatro estagiários. A expectativa agora é por mais pessoal para a gerência.
Ao Joio, a Anvisa disse que, no início deste mês de outubro, o governo federal autorizou a nomeação de 100 novos servidores para o órgão. “A distribuição ainda não está definida pela Diretoria Colegiada da Agência”, disse em nota.
Em entrevista ao site Jota, o recém-empossado presidente da Anvisa, Leandro Safatle, no entanto, disse que a prioridade nas nomeações será reduzir o tempo de espera nas filas de avaliações de produtos da agência e incentivar “inovações tecnológicas”, pleitos ligados à liberação de medicamentos.
Leia a íntegra das respostas da agência ao Joio:
1) Hoje, há dez servidores e quatro estagiários lotados na GGTAB, que são responsáveis por fiscalizar e regular o mercado brasileiro de tabaco. Sei que em outubro foi autorizada a nomeação de 100 novos servidores pra agência. Quantos destes serão destinados à GGTAB? Qual a previsão para os concursados assumirem seus cargos na agência?
Em relação à força de trabalho da Anvisa, no início deste mês de outubro, a Presidência da República autorizou a nomeação de 100 aprovados no concurso público para o cargo de especialista em regulação e vigilância sanitária do último concurso da Anvisa.
A medida se tornou possível a partir da transformação de 70 cargos vagos de técnicos administrativos e de outros cargos vagos de carreiras da Previdência, Saúde e Trabalho do Ministério da Saúde.
A distribuição dos 100 novos servidores ainda não está definida pela Diretoria Colegiada da Agência. Reiteramos que a Anvisa está dedicando todos os esforços necessários para a execução célere das etapas necessárias à posse desses servidores.
2) Devido à alta demanda e ao pouco pessoal, servidores da GGTAB trabalham para além do horário comercial e nos finais de semana para conseguir responder a prazos enxutos de demandas policiais/judiciais, de registro ou de análise regulatória, entre outras. O que a agência faz para preservar seus servidores e evitar danos laborais à saúde neste contexto? Além disso, em meio à pressão e à demanda exaustivas, como a GGTAB pode garantir a qualidade do trabalho regulatório?
A Anvisa e, consequentemente, a GGTAB adotaram o Programa de Gestão Orientada para Resultados (PGOR) ao qual o servidor pode aderir de forma voluntária. O PGOR é uma ferramenta de gestão na qual os servidores cumprem metas pré-estabelecidas que permitem alcançar os resultados definidos pela gestão da Agência. A adoção do PGOR permite mais qualidade de vida ao servidor uma vez que ele pode, de forma pactuada com a gestão, organizar suas tarefas dentro de seus horários de trabalho, desde que as metas e prazos sejam atendidos. Importante salientar que a carga horária semanal do servidor é respeitada nos termos dos normativos vigentes.
3) Em resposta via LAI, a agência indicou que testa soluções de automação para otimizar o trabalho em meio ao déficit de servidores. Que soluções são essas? Isso inclui o uso de IA generativa em alguma escala?
A Anvisa vem investindo na formação de servidores e desenvolvimento de projetos baseados em dados e inteligência artificial.
Um exemplo recente é o Curso de Especialização em Ciência de Dados e Inteligência Artificial – Lato sensu. Esta iniciativa já resultou em projetos de automatização para auxiliar o trabalho de servidores, por exemplo, na análise de processos sob competência da Anvisa. Nesse momento, se tratam de projetos em elaboração e que serão divulgados oportunamente.
4) Até o fim de 2024, a agência tinha o Epinet para o auxílio de remoção de conteúdo irregular das redes sociais. O contrato foi encerrado? Não foi renovado? Por quê? E agora? Os servidores precisam ficar caçando conteúdo irregular “na mão”, além de todo o trabalho que eles já têm?
O EPINET (Exclusão de Produtos Irregulares na Internet) foi um projeto piloto de fiscalização de produtos irregulares comercializados na internet (e-commerce), desenvolvido pela área de fiscalização, no qual foram incluídos os produtos fumígenos.
De forma paralela ao EPINET, foram realizadas outras ações que envolvem a propaganda e a comercialização pela internet de produtos fumígenos. Deve-se mencionar que o monitoramento da internet é um desafio mundial, pois a velocidade de criação e de adequação dos conteúdos conferem um grau de complexidade elevado à atividade.
5) Considerando que são poucos servidores, como a agência blinda o trabalho regulatório de tentativas de interferência da indústria do tabaco?
O trabalho regulatório segue um fluxo muito bem estabelecido, que deve estar de acordo com as Boas Práticas Regulatórias, com a devida transparência para a sociedade. É possível consultar a Agenda Regulatória e, consequentemente, o planejamento regulatório das diferentes áreas técnicas da agência. O processo regulatório segue um fluxo técnico, transparente e com a possibilidade de participação social em diversas etapas.
Assim, a previsibilidade e transparência conferidas pelo atendimento ao fluxo processual conferem a proteção contra interferências que podem prejudicar o trabalho da Agência.



