Crédito: Amarilis Marisa

Por trás dos discursos verdes

, de Belém (PA), especial para o Joio

Durante a COP30, agronegócio promoveu a agricultura regenerativa e o mercado de carbono como soluções para a crise climática “alimentada” pelo próprio setor

Grandes corporações do agronegócio, da mineração e do petróleo estiveram em peso na COP30, encerrada neste sábado (22). Essas empresas participaram tanto fazendo lobby para influenciar as negociações climáticas, quanto para convencer o público sobre a importância das suas ações de responsabilidade social e ambiental. Não faltaram patrocínios a eventos, brindes chamativos para públicos diversos, publicidade e indícios de prática de greenwashing, a lavagem verde praticada por governos e corporações que impactam populações e o meio ambiente com suas atividades.

Por essa razão, o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) lançou, durante a COP, a plataforma De Olho no Greenwashing, onde busca alertar a população brasileira sobre os danos provocados pela “maquiagem verde”. O material descreve pelo menos doze formas de greenwashing, entre elas estão o uso de imagens, sons ou vídeos da natureza sem relação real com a prática ou produto socioambiental e as promessas impossíveis, que consistem em sugerir que impactos ao meio ambiente e à saúde das pessoas provocados por empresas podem ser completamente neutralizados ou compensados.

Julia Catão Dias, coordenadora do programa de Consumo Responsável e Sustentável do Idec, explica que o instituto vê com muita preocupação a captura dos discursos sobre sustentabilidade e proteção ambiental por grandes corporações que, na verdade, estão “usando esses discursos para poderem continuar com a mesma lógica de produção, ou seja, seguindo com modelos produtivos que violam direitos socioambientais”. A advogada explicou que esse tipo de estratégia ficou muito visível durante a COP30. “A gente entende que é nosso papel denunciar essas práticas e tentar construir saídas para ela com participação da população. Por isso estamos lançando a plataforma, para conscientização”, acrescenta Julia. Em uma segunda etapa de implementação da iniciativa, haverá espaço para denúncias desse tipo de prática.

A AgriZone, promovida pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), foi o espaço mais criticado por quem acompanha de perto os impactos causados pelas grandes corporações do agronegócio nos territórios tradicionais. Com patrocínio master de empresas como Bayer e Nestlé, o espaço foi alvo de diversos protestos promovidos por ambientalistas, povos indígenas e movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Agro sustentável?

Apresentada no site oficial “como uma grande vitrine de tecnologias, ciência e cooperação internacional voltada à agricultura sustentável e ao combate à fome em um contexto de mudanças climáticas”, a AgriZone organizou uma programação diversificada de painéis e debates, incluindo temas como transição climática, inovação e tecnologia, agroecologia e segurança alimentar. No entanto, na exposição principal e mais visitada do evento, o que ganhou destaque foi a tentativa de convencer o público quanto à sustentabilidade do agronegócio, com base na Agenda Positiva do Agro 2025, que propõe reposicionar a imagem do setor como agente essencial para uma economia de baixo carbono.

Antes do início da Conferência das Partes, a Articulação Nacional da Agroecologia (ANA), que conecta centenas de grupos, associações e organizações de agroecologia em todo o país, já havia manifestado “profundo repúdio e preocupação com a forma como o espaço AgriZone, criado pela Embrapa para expor soluções da agropecuária empresarial na COP30, vem sendo construído, em um claro processo de captura corporativa da agenda climática, que ameaça transformar a COP em palco de greenwashing e privatização das políticas ambientais”, aponta.

Na mesma nota pública de repúdio, a ANA observa que apesar de promover sua imagem “por meio de ‘soluções sustentáveis’ e ‘tecnologias verdes’, o agronegócio continua, na prática, a desmatar, avançar sobre territórios camponeses, de povos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais e contaminar pessoas e ecossistemas com agrotóxicos e transgênicos, impactos que recaem desproporcionalmente sobre o Sul Global, revelando a verdadeira face de seu modelo produtivo”.

A organização também advertiu que o agronegócio não é vítima desse processo, como tenta se apresentar. Ao contrário, “tem sido um dos principais beneficiários da conivência entre o poder público e o capital corporativo, acumulando lucros e influência política às custas da devastação no campo e da expropriação de territórios. Sua narrativa de ‘sustentabilidade’ busca apenas manter privilégios e impedir transformações estruturais”, acrescenta a ANA.

Em visita à exposição, o Joio não encontrou menções ao fato de que o agronegócio é o maior responsável pelo desmatamento no Brasil, assim como pela emissão de gases do efeito estufa, muito menos às inúmeras denúncias dos povos tradicionais sobre o avanço de corporações do agronegócio sobre seus territórios. O público que visitou a exposição principal não teve acesso às informações mais relevantes que deveriam embasar o debate sobre as propostas do setor para combater as mudanças climáticas.

A pesquisadora Marcela Vecchione Gonçalves, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (Naea-UFPA), explica que práticas como greenwashing e  lobby das grandes corporações não são novidade em COPs. “Isso acontece, principalmente, depois da assinatura do Acordo de Paris, em 2015, durante a COP21, porque a partir daí passaram a ser implementados mecanismos para reduzir a emissão de gases do efeito estufa. Não tanto quanto a gente gostaria, mas há um processo de criação de regulações internacionais e internas dos países e as corporações querem interferir nisso”, explica.

Para a pesquisadora, que também coordena o grupo de pesquisa ReExisTerra, as novidades na COP30 estão ligadas ao fato de que o Brasil é um país produtor de commodities, tanto agrícolas quanto minerais e energéticas. “Então, até pelo volume de exportações, vai haver uma atuação maior dessas corporações no sentido de tentar influenciar decisões. Além disso, estamos na Amazônia e temos as florestas que são sumidouros de carbono, o que é colocado como possibilidade de compensação das emissões para todos esses setores”, observa. Isso explica a onipresença de iniciativas voltadas à agricultura regenerativa vinculadas ao mercado de carbono na exposição da AgriZone.

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Filas, café, chocolate e brindes

A Nestlé dedicou seu estande ao projeto Regenerar, voltado à agricultura regenerativa, que promete transformar áreas degradadas pela monocultura e pela pecuária em terras regeneradas e mais produtivas. Grandes filas se formaram em frente ao local, onde ocorria distribuição gratuita de café e bebidas quentes elaboradas com chocolate, além da oferta de brindes como leques promocionais. Para conquistar esses brindes, o público precisava cumprir tarefas interativas, por meio de jogos eletrônicos promocionais, permanecendo mais tempo no local.

O estande da Nestlé foi o mais movimentado da exposição. Foto: Tatiana Ferreira Reis

Por conta desses apelos, o estande da Nestlé foi o mais movimentado da exposição, com a presença de jovens e de famílias inteiras. Importante lembrar que, em 2024, o Joio publicou a reportagem Para a Nestlé, nem todos os bebês são iguais: relatório revela produtos piores nos países do Sul global. A reportagem divulgou pesquisa comprovando que produtos da marca destinados a crianças menores de dois anos continham teores de açúcar muito acima do recomendado para os bebês. Os produtos são vendidos em países da África, Ásia e América Latina – incluindo o Brasil. 

O estande da Bayer, em frente ao da Nestlé, foi dedicado ao Pro Carbono, descrito no site da empresa, como uma plataforma que desenvolve soluções para agricultores e empresas, “transformando práticas regenerativas, tecnologia e dados, promovendo eficiência no campo e ajudando corporações a alcançarem seus compromissos com a sustentabilidade”. Monitores que recebiam os visitantes explicavam sobre as vantagens da agricultura regenerativa, enfatizando aumento da produtividade, redução de custos para o produtor e diminuição da pegada de carbono, sem nenhuma menção à preocupação com a saúde do consumidor.

Estande da Bayer  foi dedicado ao Pro Carbono. Foto: Tatiana Ferreira Reis

A Bayer é uma das líderes mundiais na venda de agrotóxicos e sua fusão com a Monsanto, em 2018, aumentou o monopólio dos agrotóxicos e dos transgênicos no mundo, segundo informação da organização Terra de Direitos. Em 2024, o Joio denunciou que a divisão agrícola da gigante alemã no Brasil patrocinou uma série de publicações para convencer nutricionistas de que agrotóxicos e alimentos transgênicos são seguros e imprescindíveis para garantir a segurança alimentar e nutricional. Sua participação como patrocinadora da AgriZone, junto com a Nestlé, motivou um protesto em que manifestantes “pulverizavam” agrotóxicos nos visitantes, na entrada da exposição.

Condenados pelo Tribunal dos Povos

Na área da AgriTalks, onde foram apresentados cases e relatos de curta duração, o Joio acompanhou o case “Amaggi Regenera: solo, biodiversidade e pessoas no centro da estratégia climática para um sistema agrícola sustentável”, em que a gigante do agronegócio Amaggi promoveu seu programa da “agricultura de baixo carbono”, baseado na criação de fazendas regenerativas. De acordo com a apresentação, a de suas missões é “estabelecer conexão entre conhecimento, tecnologia e soluções baseadas na natureza”. O programa tem parceria com Embrapa, Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e Renature, consultoria global em agricultura regenerativa. 

Apresentação da Amaggi no espaço AgriTalks. Foto: Tatiana Ferreira Reis

A Amaggi e outras grandes corporações do agronegócio foram condenadas pelo Tribunal dos Povos contra o Ecogenocídio por sua participação e influência no projeto de construção da Ferrogrão. Em 2023, o Joio, em colaboração com InfoAmazonia, mostrou que o traçado da ferrovia, ligando o município de Sinop, no norte de Mato Grosso, ao porto de Miritituba, no Pará, foi elaborado pela empresa Estação da Luz Participações (EDLP), que se associou às maiores exportadoras de grãos – Bunge, Cargill, Amaggi e Dreyfus – para levar o projeto ao governo federal em 2014.

Realizado pela COP do Povo na sede do Ministério Público Federal (MPF), em Belém, o Tribunal contra o Ecogenocídio vai acompanhar os desdobramentos dos casos julgados e condenados e, se necessário, apresentá-los às cortes internacionais. A Ferrogrão  também foi alvo de protesto de povos indígenas que bloquearam a entrada da blue zone durante a COP 30. O objetivo do projeto é baratear o escoamento da produção agrícola da região e fortalecer o Corredor Logístico Norte, cujos portos, hidrovias e rodovias já acumulam graves violações de direitos a indígenas, quilombolas, agricultores e pescadores.

Marcela Vecchione Gonçalves observa que a criação de uma zona do agronegócio na Embrapa, “no maior campus de pesquisa da instituição na Amazônia, utilizando inclusive o termo ‘zona’, que é a denominação das áreas da própria COP,  é  bastante preocupante”. Para a pesquisadora, que acompanha de perto os problemas causados pelo setor em territórios tradicionais na Amazônia, “isso é uma forma de dizer que o agronegócio e suas monoculturas pode vencer mesmo naquele que é o bioma mais biodiverso do mundo, utilizando o discurso de que está conectado às pessoas por meio da lógica de recuperação de áreas degradadas, de agricultura regenerativa, que apareceu de maneira muito forte também como agenda de ação climática da COP 30”, acrescenta.

A pesquisadora Cristiana Losekann, coordenadora do Laboratório de Pesquisas em Política Ambiental e Justiça, da Universidade Federal do Espírito Santo (Lapaj – Ufes) e  da Rede Climatizando, alerta que as grandes corporações têm propagado seu investimento em ciência e tecnologia, “mas sabemos que, na verdade, elas também utilizam muito recurso público, porque grande parte da pesquisa científica no Brasil é feita pelas universidades e instituições de pesquisa públicas. Esse cenário é ainda pior porque alguns setores das engenharias, da geologia, da oceanografia, da agronomia, entre outras áreas, só fazem pesquisa contando com os recursos das grandes empresas”, observa.

As pesquisadoras concordam que as grandes corporações do agronegócio, assim como as mineradoras e petroleiras, têm conseguido influenciar as negociações ambientais, ao mesmo tempo que divulgam soluções para a crise climática provocada pelas atividades que desenvolvem. Atualmente é o caso da agricultura regenerativa, que possibilita a busca de mais lucros por meio do mercado de carbono. Marcela observa que, dessa forma, “justificam suas ações como se fossem climaticamente justas e garantem a continuidade das suas operações, bem como o acesso a créditos e subsídios ainda maiores”, avalia.

Esse tipo de solução tem sido fortemente fomentada pelos governos, ao passo que povos indígenas, quilombolas, agroextrativistas ribeirinhos e demais comunidades tradicionais, responsáveis pela preservação da florestas, precisam travar grandes batalhas para conseguirem financiamento para mitigação e adaptação aos efeitos das mudanças climáticas, assim como para minimizar impactos causados por grandes empreendimentos e infraestruturas que se somam e atingem em cheio seus territórios.

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Contradições evidentes

Para Cristiana Losekann, essas contradições estão cada vez mais evidentes. “Quando a agenda climática vai ganhando uma difusão maior na sociedade e conquistando setores diversos, os espaços começam a ser mais tensionados e disputados porque a gente também tem a crítica e a luta para a construção de experiências mais plurais e democráticas. Como exemplo disso, tivemos o sucesso da Cúpula do Povos aqui na COP de Belém”, exemplifica. “Isso mostra que toda a luta dos territórios e dos movimentos sociais tem sido fundamental. Se não fosse assim, a gente só teria os pontos de vista e os interesses do mundo corporativo dominando majoritariamente os espaços e as decisões”, observa Cristiana. 

Quanto às manifestações durante o evento, a Embrapa informou que o apoio financeiro de patrocinadores “segue critérios de transparência e conformidade com as normas públicas vigentes. Esses aportes possibilitam a estruturação do ambiente e a realização das atividades, sem qualquer interferência em conteúdos técnicos ou institucionais”. A AgriZone reafirmou também “seu caráter aberto, democrático e plural, acolhendo diferentes visões e manifestações como parte legítima do diálogo público”. Este diálogo se concretiza a partir dos 378 eventos técnicos que estão sendo realizados sobre temas propostos por diferentes instituições: públicas, privadas, organizações não governamentais e movimentos sociais, entre outras”. Uma nota de posicionamento atualizada no último dia do evento pode ser lida no site da instituição.

Antes e durante a COP30, a cobertura do Joio mostrou a força dos movimentos sociais e dos territórios tradicionais e seus preparativos para enfrentar falsas soluções e estratégias de greenwashing. Além de denunciarem grandes empreendimentos, corporações e infraestruturas que ameaçam seus territórios, eles também amplificaram suas propostas, reivindicações e despertaram atenção para o protagonismo que exercem no combate às mudanças climáticas, em meio a manifestações nas ruas e nos rios de Belém, banquetes agroecológicos e programações construídas com coragem e esperanças.

Banquetaço da Cúpula dos Povos ofereceu alimentação agroecológica. Foto: Tatiana Ferreira Reis

Os resultados dessas iniciativas começaram a despontar. Populações afrodescendentes foram reconhecidas em um texto aprovado pelas Conferências das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COPs), assim como o direito à consulta prévia, livre e informada a povos indígenas foi incluído no Programa de Transição Energética Justa, aprovado no último dia da COP30. 

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