Quase vinte anos atrás, Nelson Jobim liderou uma decisão judicial que garantiu à Coca créditos sobre impostos que não são pagos. Agora, o filho dele, Alexandre, busca manter a situação na associação que reúne as grandes fabricantes de refrigerantes
Ilmar Galvão estava plenamente convicto do que deveria fazer quando recebeu uma ação da Receita Federal contra uma engarrafadora da Coca-Cola no Rio Grande do Sul. “Não há por onde divergir. A Constituição é muito clara.” O órgão da União perguntava ao Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a legalidade de as fabricantes de refrigerantes cobrarem créditos por tributos que nunca haviam pago.
A operação era realizada sobre os concentrados (xaropes) comprados na Zona Franca de Manaus, que, embora isentos, resultavam num pedido de restituição sobre a alíquota cheia, à época em 40%. Ou seja, para cada R$ 100 de xarope, as empresas pediam R$ 40 de créditos sobre algo que jamais havia saído do bolso.
Passadas quase duas décadas daquela sessão do Supremo em 5 de março de 1998, o ex-ministro Galvão, de 84 anos, não digeriu, ou melhor, não bebeu essa derrota. “O tribunal se deixou levar pelo voto do ministro Nelson Jobim. Fiquei vencido. Sozinho. Mas vencido e não convencido. Porque o tribunal errou.”
Nelson Jobim chegara havia pouco do Ministério da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, numa contestada nomeação. Abrir divergência com um colega que estava na Corte desde 1991 não era fácil.
A Coca-Cola já tinha o domínio do mercado, mas havia assistido ao crescimento de pequenas e médias empresas ao longo da década de 1990.
Justamente nesse período, a multinacional iniciou operações na Zona Franca de Manaus, contando com uma série de incentivos tributários, entre eles a isenção total de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Até ali, a Zona Franca era uma espécie de Ciudad del Este amazônica: um oásis de produtos importados de todos os tipos. Mas a abertura de fronteiras promovida durante o governo Fernando Collor fez com que essa situação perdesse o sentido, e foi preciso reinventar a Zona Franca por meio de estímulos à presença de indústrias.
A Recofarma passou a ser responsável pela produção do concentrado que é vendido às engarrafadoras para que, diluído em água, transforme-se em refrigerante.
Essa empresa e em seguida a Arosuco, hoje da Ambev, passaram a fazer a compra do xarope isento de IPI, mas não se acanharam em cobrar o crédito previsto pelo artigo 153 da Constituição, que diz que o tributo é “não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores”. Ou seja, se você compra um insumo industrial a R$ 1.000 com alíquota de 20%, ganha direito a um crédito de R$ 200.
“A Constituição é de uma clareza primária”, protesta Ilmar Galvão. “O Jobim, quando foi ministro da Justiça, houve uma confusão entre Coca e Guaraná. A Coca botou o xarope para ser feito na Zona Franca. O guaraná é do Amazonas. Deu-se uma polêmica entre eles e o Jobim ficou com aquilo na cabeça. E veio com aquele voto. Convenceu os outros. De maneira errada.”
Jobim lançou mão de uma leitura própria do caso, passando à margem da interpretação da Constituição. “Sei da existência de virtual conflito entre a Fazenda e os produtores de Coca-Cola quanto às margens. Segundo informações, os produtores de xarope teriam aumentado o seu valor para o [fim] de obter maior resultado de isenção.” O ministro proferiu no plenário da Corte a suspeita de que houvesse superfaturamento: quanto maior o valor da nota, maior o valor do crédito.
Passadas duas décadas, obtivemos algumas notas fiscais que mostram que a situação se mantém: há concentrados vendidos por até sete vezes mais que o produto enviado ao mercado externo, operação na qual não há esse crédito tributário.
O STF poderia ter colocado um freio. Jobim contou aos colegas de toga que a transferência da produção de Coca para a Zona Franca havia criado uma distorção. De uma hora para a outra, a alíquota sobre o produto, à época em 40%, desapareceu. Não satisfeita, a empresa cobrava os créditos sobre o imposto não pago.
Para tentar equilibrar a situação, segundo Jobim, deu-se desconto de 50% no IPI do refrigerante que leva suco de guaraná. Ou seja, a Antarctica passaria a um imposto de 20%. Para evitar novo desequilíbrio, rebaixou-se a alíquota do concentrado a 27%.
Como Jobim bem notou, seguir o voto de Galvão deixaria a Coca em desvantagem. Então, em vez de olhar a Constituição, era importante avaliar o mercado. Dois de seus colegas, Sidney Sanches e Néri da Silveira, admitiram ser difícil conceber que alguém ganhasse crédito por um tributo jamais pago, mas aderiram ao voto divergente. “É uma decisão empresarial. Não tem nada de jurídico ali”, lamenta Galvão.
Dali por diante, o faturamento dos fabricantes de concentrados da Zona Franca de Manaus só fez crescer, ancorado em uma série de outras decisões políticas. A Coca-Cola, que tinha cerca de metade do mercado, avançou até atingir 60%, e os fabricantes regionais perderam a força que haviam conquistado durante os anos 1990. Em 1999, o Guaraná e a Brahma se juntaram na Ambev, que se consolidou na liderança do mercado de cervejas e aceitou papel minoritário nos refrigerantes.
No mesmo ano, foi sancionada a Lei 9.779, criada para esclarecer sobre o direito aos créditos de IPI, inclusive sobre “produto isento ou tributado à alíquota zero”. Em março de 2003, a Procuradoria da Fazenda Nacional emitiu parecer no qual afirmava que a legislação era interpretada de maneira errônea para favorecer as empresas. Havia crédito de IPI até mesmo sobre produtos não industrializados. Foi uma tentativa do governo de tentar conter as perdas provocadas por decisões judiciais.
O advogado Vittorio Cassone, que foi procurador da Fazenda Nacional e redigiu o parecer, mantém a interpretação da época: se a Constituição fala no crédito sobre o imposto que foi cobrado, não há como cobrar em cima de um imposto que não foi cobrado. Para que a Zona Franca tivesse direito a um regime especial, isso precisaria ser detalhado em uma lei específica.
Galvão tentou mudar o entendimento da Corte sobre o tema, sempre sem sucesso.
Em 2004, quando ele já estava aposentado, o ministro Marco Aurélio Mello resolveu levar ao plenário do Supremo uma reinterpretação de sua visão a respeito dos créditos de IPI cobrados sobre produtos não tributados. Se seis anos antes havia seguido a ideia de Jobim, agora estava disposto a divergir. Ele afirmou que a Lei 9.779 era clara quanto à impossibilidade de restituir o imposto que não havia sido pago.
E lançou mão de uma operação matemática básica: qualquer número multiplicado por zero dá resultado zero. O magistrado admitiu que o entendimento então vigente resultava em créditos maiores justamente para os produtos mais supérfluos, que pagam os tributos mais altos. “Sob qualquer ângulo que se examine o pleito dos contribuintes, surgem complexidades que jamais poderão ser tidas como simples decorrência do sistema constitucional.”
Marco Aurélio e o então presidente da Corte, Nelson Jobim, passaram a interromper a fala um do outro a todo instante. Marco Aurélio acusou o colega de tentar isolar um problema que precisava ser visto no todo da cadeia produtiva.
Nelson Jobim provocou irritação em vários dos colegas ao questioná-los quando se encaminhavam para votar pelo fim dos créditos de IPI sobre produtos da Zona Franca. Joaquim Barbosa deu um voto curto: é intuitivo saber que quem não pagou imposto não tem direito a crédito. Carlos Britto foi interrompido por Jobim numa discussão sobre o significado matemático e filosófico do zero à esquerda.
Jobim passou a defender o entendimento de que o produto final é o que importa: se ele será tributado em IPI, então as etapas anteriores precisam dar direito ao crédito porque o preço dos insumos faz parte da composição do preço final. É a mesma posição que foi externada bem depois pelo ex-auditor-fiscal da Receita José Antônio Schontag, em parecer redigido para a Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoólicas (Abir), presidida por Alexandre Kruel Jobim, filho de Nelson Jobim.
“O produto isento da Zona Franca é empregado na elaboração de produtos finais sujeitos ao IPI: nesta hipótese, portanto, o produto final é onerado pelo IPI. Ora, o preço de um produto intermediário, isento ou não, sempre será uma das parcelas componentes do preço do produto final. Não pode haver dúvida quanto a isso nem quanto ao fato de, se essa parcela for tributada pelo IPI, a isenção correspondente terá sido anulada.”
Após vários pedidos de vista, o caso no Supremo se arrastou por mais três anos e só teve desfecho favorável à reinterpretação da regra em 2007, quando Jobim já havia se aposentado.
Depois de polêmicas como ministro da Defesa nos governos Lula e Dilma, Jobim ingressou no Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO). O think tank da indústria, que reúne nomes de peso da política e da tributação, é mantido por Coca e Ambev, somadas à Souza Cruz e a um sindicato da área de combustíveis.
A decisão de 2007 do Supremo, por margem apertada, abriu espaço a uma nova linha de pensamento, que, no entanto, não foi capaz de criar uma jurisprudência definitiva. Existe uma divergência técnica: alíquota zero e isenção são situações distintas. Para a primeira, não caberia restituição de créditos. Para a segunda, talvez.
Sempre que a Receita encontra algum erro formal, entra com ação para garantir o pagamento dos impostos creditados. Em 2015, por exemplo, a Vonpar Refrescos S.A, engarrafadora da Coca, que saiu vitoriosa no caso-chave de Jobim, teve decisão contrária do ministro Edson Fachin, baseando-se nas decisões anteriores dos colegas.
Quem agora luta para manter tudo como antes é Alexandre Kruel Jobim, advogado e filho de Nelson Jobim. Ele integra o Conselho de Administração do ETCO. É casado com Candice Lavocat Galvão Jobim, filha de Ilmar Galvão e presidente da Associação dos Juízes Federais da 1ª Região. Alexandre foi sócio de Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, nomeado este ano por Michel Temer para o Tribunal Superior Eleitoral e autor do voto decisivo para salvar o presidente da cassação.
Mais importante: Alexandre é, desde 2015, o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoólicas (Abir), que reúne Coca, Ambev e boa parte das empresas do setor. Ele afirma ser um “mito” a ideia de que os créditos de IPI criam desequilíbrio entre grandes e pequenos produtores e alega que a Zona Franca está aberta a todos que queiram investir.
Em um artigo recente, Kruel Jobim acusa a Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil (Afrebras), que reúne produtores regionais, de praticar uma “guerrilha legislativa” na tentativa de mudar as regras. “Como se vê, há uma fixação por bombardear a segurança jurídica de quem investe e produz na Zona Franca de Manaus. A indústria brasileira de refrigerantes e bebidas não alcoólicas não se furtará, jamais, a debater o tema e defender o modelo equânime por meio do qual se assegura o desenvolvimento da região Norte e se ajuda a preservar a floresta amazônica.”
A expectativa sobre o futuro dos créditos pelos concentrados amazônicos se deposita agora no Recurso Extraordinário 592.891. É o caso que definirá se há ou não possibilidade de cobrar compensação sobre insumos isentos de tributação. A ação diz respeito a um pedido da Nokia, que perdeu em segunda instância, mas tem repercussão geral aceita, ou seja, definirá uma regra a ser aplicada a todas as situações similares em todas as instâncias. O Supremo foi acionado em 2008 e a decisão ficou com Ellen Gracie, aposentada, até 2011.
A ministra Rosa Weber, que o herdou, levou o voto a plenário em maio de 2016, colocando-se a favor das empresas. Ela foi seguida por Luís Roberto Barroso e Edson Fachin, mas o julgamento foi interrompido e jamais retomado.
* Colaborou Rafa Barbosa.