Presidente do PSDB usou o cargo para tratar de atividade como investidor da Coca

Tasso Jereissati, segundo maior engarrafador dos produtos da multinacional no Brasil, intermediou reunião entre presidente da empresa e Guido Mantega para evitar aumento de impostos

O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) usou o cargo público para obter benefícios como empresário. Segundo maior engarrafador de produtos da Coca-Cola no Brasil e dono de um patrimônio declarado de R$ 389 milhões, o presidente interino do PSDB intermediou uma reunião entre o presidente da multinacional na América Latina, Brian Smith, e o então ministro da Fazenda, Guido Mantega.

Documento que obtivemos pela Lei de Acesso à Informação mostra que o parlamentar negociou o encontro diretamente com o ministro, que só depois soube qual seria o tema. “O Ministro falou c/ o Sen. Tasso Jereissati e acertaram. A Marilú do gab. do Senador que avisará os interessados e ficou de depois passar a pauta – Marilú informou que o assunto será s/ impostos sobre bebidas e os participantes apenas os 2 já informados.”

A reunião ocorreu às 15 horas de 26 de agosto de 2008, no momento em que tramitava uma medida provisória a respeito dos impostos sobre bebidas não alcoólicas. E contou com a participação do então secretário da Receita Federal, Carlos Alberto de Freitas Barreto.

A MP 436 foi apresentada três dias depois da sanção da Lei 11.727. Foi uma de muitas decisões repentinas tomadas pela equipe de Mantega quando se trata de tributação de refrigerantes. A lei originou-se de uma MP que, inicialmente, não abordava o tema. A inclusão do assunto foi feita pelo relator, deputado Odair Cunha (PT-MG), e representou a primeira vitória da Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil (Afrebras), criada três anos antes por pequenas e médias empresas.

Desde 1989, vigia a tributação ad rem, ou seja, com um valor fixo. Assim, o imposto incidia do mesmo modo em produtos de preços diferentes, o que fazia com que a margem de lucro fosse menor para o mais barato. A Afrebras alegava que os fabricantes de menor porte pagavam 41,73% de imposto, contra 22,53% de Coca e Ambev.

A associação advogava pelo imposto ad valorem, que estabelece um percentual proporcional ao preço. A fórmula apresentada por Odair Cunha previa um cálculo que agregava o produto, o tipo de embalagem e a marca. A rival Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoólicas (Abir), que hoje representa a quase totalidade do faturamento, acusou que a mudança objetivava driblar os sistemas medidores de produção que a Receita planejava instalar em todas as fábricas. A entidade alega que a tributação fixa é mais justa e que o Imposto de Renda se encarrega de diferenciar grandes e pequenas.

A Afrebras saiu vitoriosa do primeiro embate, mas logo em seguida tomou o contra-ataque. A MP 436 previa postergar o início do novo regime de tributação e dava ao governo a possibilidade de manter o modelo ad rem. A incidência de imposto se daria sobre o valor-base calculado para um determinado grupo de produto, marca e tipo de embalagem. A instalação dos equipamentos medidores de produção, vetada dias antes por Lula, foi restituída.

A MP recebeu 53 emendas, numa disputa que até hoje está em curso. De um lado, alguns parlamentares, no geral do Sul e do Sudeste, apresentam as sugestões da Afrebras. De outro, colegas do Amazonas protocolam os pedidos da Abir. Nesse caso, a associação dos fabricantes menores queria garantir o maior número possível de faixas de tributação. E a dos grandes queria limitar esse número a três. Foi nesse ínterim que se deu o encontro entre Mantega e o presidente da Coca a pedido de Tasso.

O senador consolidou ao longo das últimas décadas o império erguido a partir do Grupo Jereissati. Ele comprou da própria Coca a Nordeste Refrigerantes (Norsa). E foi incorporando várias engarrafadoras, até realizar uma fusão com a Renosa e a Guararapes, o que o consolidou como segundo maior do Brasil, atrás apenas da Coca-Cola, e um dos vinte maiores do mundo. Em 2014, só a Recofarma, produtora dos concentrados da multinacional em Manaus, deu R$ 999 mil para a campanha eleitoral do tucano.

Em 1997, o jornal Folha de S. Paulo informou que a Coca deixava de pagar R$ 300 milhões ao ano em impostos com os créditos da Zona Franca. Como vimos, hoje o valor somado dos créditos a todas as empresas de concentrados passa de R$ 3 bilhões.

O repórter Luís Costa Pinto informava que o Ministério da Fazenda chegara a zerar a alíquota de IPI sobre o produto. “Não faria diferença para a Recofarma, isenta, mas deixaria de gerar créditos para as engarrafadoras – obrigando-as a pagar mais impostos. Uma semana depois dessa redução, o ministro Pedro Malan (Fazenda) fez a alíquota do IPI sobre o xarope de cola subir para 27%, atendendo aos protestos da diretoria da Coca-Cola brasileira e de seus engarrafadores (os governadores Tasso Jereissati, do Ceará, e Albano Franco, de Sergipe, possuem engarrafadoras de Coca-Cola).”

Quase lá

Na antevéspera do Natal de 2008, Lula assinou um decreto que parecia atender ao pleito da Afrebras, com a criação de 43 classes de tributação que levavam em conta tipo de produto, embalagem e marca. Tudo isso resultava em um fator multiplicador. Bastava cruzar o multiplicador com o número de litros produzidos para chegar ao valor total da tributação.

Mas o diabo morava nos detalhes. As embalagens de lata e de vidro ficaram com uma alíquota até vinte pontos inferior à da garrafa PET. Segundo a Afrebras, isso criava um desequilíbrio concorrencial porque a lata era o território cativo das grandes empresas. A quantidade de embalagens utilizadas também passou a ter um peso grande. Se uma empresa fabricava apenas um tamanho de vasilhame plástico, pagava mais imposto que a concorrente com capacidade para fazer quatro tipos. E, de novo, as maiores eram as que tinham condições tecnológicas para promover essa diversificação.

“E quando nós vamos ao Ministério da Fazenda explicar que nós estamos sendo fechados, que nós estamos sofrendo com essa legislação absurda, simplesmente nos viram as costas. Não nos atendem”, disse Fernando Bairros, presidente da associação, durante uma audiência pública realizada em dezembro de 2013, na Câmara. Ele exibiu slides que mostravam que a diferença podia chegar a 60% de acordo com o número de embalagens diferentes.

O representante da Receita, Pablo Graziano Alvim Moreira, admitiu a distorção. “Só as embalagens de refrigerante em vidro e em lata terão seus redutores reajustados paulatinamente, conforme está publicado na tabela. O PET se manteve e vai se manter constante pelo menos até 2018, de modo a reduzir essas diferenças.”

O novo modelo entrou em vigor em 2009. No ano seguinte, deveria ter ocorrido o primeiro reajuste, mas a crise mundial foi o motivo para adiar o início da correção de rota. A Receita esperava chegar a um fator multiplicador de 64%, o que resultaria em uma PIS-Cofins de 9,25%, que é a média nacional. Porém, naquele momento, a grande maioria dos produtos estava abaixo de 40%. O multiplicador de uma lata de Coca ficava em 30%, o que significava um IPI de R$ 0,04 e uma PIS-Cofins de R$ 0,06.

Um dos slides revelava, com a discrição inerente à Receita, a frustração relativa à demora da equipe política em corrigir o problema. E enfatizava que os fabricantes de refrigerantes criavam poucos empregos em comparação aos revendedores, com um faturamento proporcionalmente enorme. Um gráfico mostrava ainda a expectativa de que em 2018 a situação estivesse menos desigual. Não foi o que ocorreu.

Em 30 de maio de 2012, foi publicado no Diário Oficial da União um decreto de Mantega que sinalizava a redução da brecha entre PET e lata. O Ministério da Fazenda divulgou em seguida uma nota informando que o preço ao consumidor poderia subir em média 2,85% e que a partir dali haveria reajustes anuais porque a carga tributária do setor era baixa. A expectativa era aumentar a arrecadação em R$ 2,44 bilhões ao ano.

Mas, em 4 de junho, cinco dias depois do texto inicial, o governo republicou o decreto sob a alegação de que havia um erro. Na verdade, o que se fez foi alterar completamente o Anexo IV, exatamente a tabela de tributação por embalagem. Mantega jogou para 2015 a correção que deveria ocorrer em 2013.

A Afrebras entrou de imediato com mandado de segurança no Supremo. O então ministro Joaquim Barbosa admitiu se tratar de “inovação” o uso da alegação de erro para revogar uma mudança na tributação, mas não viu motivo para conceder liminar que suspendesse a decisão.

Em 25 de setembro do mesmo ano, Mantega se reuniu com empresários do setor de bebidas a pedido do então presidente da Ambev, João Castro Neves. O encontro foi solicitado na véspera e não constou da agenda oficial.

Em 13 de junho de 2013, Castro Neves de novo obteve uma audiência que não figurou na agenda. A lista inicial de convidados previa a presença do presidente da Afrebras, mas alguma coisa mudou no meio do caminho. “Retirei o nome do Pres. da Afrebras conforme email anexado”, anotou a secretária de Mantega. Não conseguimos obter o anexo.

Em 18 de setembro, o ministro reuniu-se novamente com os empresários do setor, dessa vez com participação da Afrebras e inclusão na agenda oficial. Doze dias depois, veio novo decreto, mais uma vez favorável às grandes empresas. Ele rebaixou as alíquotas para lata e vidro, fazendo os impostos chegarem a 2015 em patamar inferior ao que se esperava para 2014. O sonho da Receita de atingir um multiplicador de 64% foi deixado para as calendas.

Houve mais um episódio. Em 30 de abril de 2014, Mantega promoveu um ligeiro reajuste, revogado exatamente um mês depois sob o argumento de que o aumento pressionaria os preços em meio à Copa do Mundo no Brasil.

A situação só teve fim com a aprovação de uma medida provisória ao final do primeiro mandato de Dilma Rousseff, quando estava claro que a equipe de Joaquim Levy buscaria caminhos para aumentar a arrecadação. A Lei 13.097, de 2015, lançou a expectativa de aumentar em 10% o recolhimento no setor e alterou o modelo de cálculo.

Mas a guerra entre Afrebras e Abir não chegou ao fim. No Congresso, parlamentares de um lado e de outro buscam apresentar emendas que podem complicar a vida alheia.

A Abir se diz vítima de uma “guerrilha legislativa”. Durante audiência pública realizada na Câmara no final de agosto, o presidente da entidade, Alexandre Kruel Jobim, apresentou slide que celebrava a quantidade de derrotas que havia imposto à Afrebras.  A associação dos fabricantes menores fez tentativas mais numerosas que a rival. Todas fracassadas. O deputado Alfredo Kaefer (PSL-PR) foi o principal articulador de emendas que tentam encerrar a história dos créditos da Zona Franca de Manaus.

Porém, a Abir também teve representantes nessa guerrilha. Logo após a sanção da Lei 13.097, os deputados Bruno Araújo (PSDB-PE) e Junior Marreca (PEN-MA) apresentaram emendas idênticas (aqui e aqui) para tentar derrubar o texto. Os dois têm em comum doações da Brasil Kirin, embora Bruno tenha tido uma campanha mais generosa, com R$ 100 mil da empresa, contra R$ 50 mil do colega, e doações também do McDonalds (R$ 150 mil) e da Cervejaria Petrópolis (R$ 100 mil).

Enquanto a briga come, Tasso aumenta ainda mais o império. Além do Nordeste, a Solar agora abarca o Mato Grosso e parte de Goiás, o que representa “uma área territorial de 2,8 milhões de quilômetros quadrados, maior que a área total dos países Portugal, Espanha, Itália, Grécia, França, Alemanha e Reino Unido somados”.

Um slide apresentado este ano a investidores falava em uma receita bruta de R$ 5,5 bilhões. A participação de mercado em bebidas não alcoólicas em 2016 foi de 56,6% nos 12 estados em que está presente. A reestruturação feita durante o processo de fusão, entre 2013 e 2015, levou a um corte de quatro mil empregos, o que preparou a empresa para “A tempestade perfeita”, nome que se deu à crise que levou a 13,5 milhões de desempregados. A empresa do senador celebra o fato de ter aumentado a produtividade para estar preparada para o crescimento econômico projetado a partir de 2018. A ótima notícia (para ele) é que na área de atuação da Solar ainda há espaço para aumentar o consumo per capita de refrigerantes.

Em 5 de outubro, o presidente da Comissão de Assuntos Econômicos, que por acaso é Tasso Jereissati, nomeou o colega Armando Monteiro (PTB-PE) como relator do Projeto de Lei 489, de 2008. Monteiro, ex-presidente da Confederação Nacional da Indústria, tem nas mãos o texto que a Abir gostaria de ver aprovado antes que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tome uma decisão sobre a rotulagem frontal de bebidas e ultraprocessados com altos teores de sal, gordura, açúcar e calorias. Quando a tempestade perfeita cai, azar de quem está sem teto.

Mantega e Jereissati optaram por não falar.

* Colaborou Rafa Barbosa.

Por João Peres

Matérias relacionadas