Procuradoria da Fazenda Nacional acusou a multinacional de argumentação ‘infantil e simplista’ para evitar pagamento de impostos e garantir crédito sobre IPI que nunca foi recolhido
A Procuradoria da Fazenda Nacional alertou, ainda em 1994, que o esquema de créditos tributários para as engarrafadoras de refrigerantes resultaria em “enriquecimento ilícito” e “evasão fiscal”. Em resposta a uma ação movida pela Coca-Cola, o órgão que representa a União em causas judiciais relativas a temas orçamentários afirma não haver lógica em receber compensações por um imposto que nunca foi pago.
O documento está anexado ao recurso movido no Supremo Tribunal Federal (STF) por uma das engarrafadoras de produtos da Coca. Reportagem de O joio e o trigo mostrou que, hoje, o esquema representa ao menos R$ 7 bilhões ao ano, entre o que deixa de entrar nos cofres públicos e o que sai em forma de créditos.
Não existe um cálculo público sobre a perda total desde que a operação teve início, na década de 1990. A Coca foi a primeira a fixar na Zona Franca de Manaus uma unidade de produção de concentrados, o xarope que, diluído em água e acrescido de gás, transforma-se no refrigerante. Em seguida, veio a Antárctica e, no final da década, a Pepsi.
Tudo gira em torno do Artigo 153 da Constituição, que fala que o imposto “será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores”. Para que não ocorra um efeito em cascata na tributação, que prejudicaria o consumidor, a União dá direito a um crédito tributário cobrado sobre o imposto pago na etapa anterior da industrialização.
Na Zona Franca, as empresas estão isentas de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e PIS-Cofins, e têm abatimentos no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e no Imposto de Renda de Pessoa Jurídica. Mesmo não recolhendo esses tributos, ou recolhendo apenas parte, as corporações cobram o crédito em cima da alíquota cheia.
Atualmente, a alíquota do concentrado está em 20%, ou seja, para um xarope comprado a R$ 100, a engarrafadora ganha um crédito de R$ 20.
Ao questionar o esquema, o procurador Glênio Sabbad Guedes afirmou que havia um risco de “grave lesão” ao patrimônio público. Para ele, a argumentação da Coca estava repleta de um “nítido caráter sofismático”, ou seja, de usar uma falsa lógica para produzir uma ilusão da verdade.
Um argumento central da empresa reside na interpretação da Constituição. A leitura é de que, ao só falar sobre a impossibilidade de cobrar créditos sobre o ICMS isento, deixou-se claro que havia possibilidade de receber créditos em cima dos tributos federais isentos ou zerados.
Para a Procuradoria da Fazenda, trata-se de um argumento “altamente infantil e simplista e, ipso facto, totalmente desprovido de racionalidade jurídica, em face de todos os argumentos reproduzidos”. O documento acusa a empresa de propositalmente “deslembrar” de interpretar a finalidade de o ICMS estar especificamente explicado pelo texto constitucional: trata-se de um tributo que compõe o preço final, à diferença do IPI.
A interpretação do órgão público é de que se trata de uma questão lógica: se não se pagou imposto, não há crédito a cobrar. “A prevalecer o entendimento absurdo da impetrante, estar-se-ia legitimando uma inaceitável EVASÃO FISCAL e um teratológico ENRIQUECIMENTO ILÍCITO.”
Porém, quatro anos mais tarde o Supremo Tribunal Federal decidiu dar razão à multinacional. Como mostramos, o voto vencedor foi guiado por Nelson Jobim, que havia deixado, pouco antes, o Ministério da Justiça de Fernando Henrique Cardoso. Ele divergiu do relator, Ilmar Galvão, e afirmou que impor uma derrota à Coca deixaria a concorrente Antárctica em situação de vantagem.
“Não há por onde divergir. A Constituição é muito clara”, protestou Ilmar Galvão, quase vinte anos mais tarde, ao nos conceder entrevista. “O Jobim, quando foi ministro da Justiça, houve uma confusão entre Coca e Guaraná. A Coca botou o xarope para ser feito na Zona Franca. O guaraná é do Amazonas. Deu-se uma polêmica entre eles e o Jobim ficou com aquilo na cabeça. E veio com aquele voto. Convenceu os outros. De maneira errada.”
A questão dos créditos sobre o concentrado de refrigerantes leva a uma antiga disputa entre as áreas técnica e política do Poder Executivo. Desde a década de 1990, a Receita Federal tenta barrar a operação. Um parecer emitido pela superintendência do órgão no Rio de Janeiro ainda em 1990 argumentava ser muito claro que, para ter direito ao crédito, era preciso pagar impostos.
“Na hipótese de os produtos adquiridos serem de alíquota zero ou isentos, a regra geral é que não possa o adquirente dos mesmos creditar-se de qualquer valor a esse respeito, por ocasião da entrada no seu estabelecimento.”
Houve uma série de decisões judiciais e políticas que favoreceram as grandes empresas de refrigerantes. Hoje, o produto final tem uma alíquota de IPI reconhecidamente baixa, de 4%. O coordenador-geral de Tributação da Receita Federal, Fernando Mombelli, afirmou durante audiência pública realizada no final de outubro, na Câmara dos Deputados, haver espaço para uma elevação de impostos.
Porém, isso seria inócuo se as empresas pudessem continuar a compensar um aumento tributário com os créditos cobrados. “Temos uma distorção que, mantida, você pode aumentar muito IPI que vai ser absorvido pelo crédito que estamos ressarcindo no sentido da tributação do setor.”
Desde 2009, a Receita intensificou as ações judiciais para glosar o crédito, ou seja, fazer com que as empresas tenham de pagar os impostos não recolhidos. No final do último mês de outubro, o órgão emitiu uma orientação a respeito dos concentrados. O documento baseia-se na interpretação de que algumas empresas do Polo Industrial de Manaus estão simplesmente vendendo um kit de concentrado, ou seja, ingredientes separados que são agregados apenas na fábrica de destino e não na Zona Franca.
A partir de agora, a orientação do órgão federal é para que se faça a cobrança de cada ingrediente em separado e não sobre o concentrado. Se não há industrialização no local, perde-se o direito aos créditos tributários. É mais um passo na tentativa de reverter as perdas anuais sofridas pela arrecadação pública. “Não foi uma medida da Receita Federal em relação à possibilidade ou não de vedação dos créditos. Houve uma orientação técnica sobre o tipo de extrato”, esclareceu Fernando Mombelli.