Com ou sem caminhões bloqueando estradas, mais veneno pode chegar na sua mesa logo menos
Do que trata este texto? “É sobre a paralisação dos caminhoneiros”, poderia ser a resposta para trazer quantidade de cliques. Mas, sejamos honestos. Ao menos diretamente, não é sobre os bloqueios nas estradas o que abordamos aqui. Enquanto as rodovias ficam no trava/destrava, outras questões, fora de foco, seguem. Para quem enxerga drama na falta de itens que atinge postos de combustíveis e supermercados, outros problemas mostram as camadas de tensão e perigo que se espalham pelo Brasil.
Usemos o gancho da semana: caminhões. E, agora, somemos ao nosso gancho por aqui: alimentos. Os primeiros carregam cotidianamente a produção agropecuária nacional, setor que é o maior responsável por manter o arcaico transporte rodoviário de carga no país, com 40% de ocupação dos veículos.
Feita a relação inicial, a gente dá um passinho à frente e pensa na semana que vem, terça-feira, 29 de maio, dia em que outro problemaço nacional pode crescer. Pelas cargas transportadas em baús e carretas, há quem pretenda fazer chegar mais munição a um revólver que talvez você já aponte para a própria cabeça: o veneno no seu prato.
Agrotóxicos, principalmente sobre rodas, chegam ao hiper-super-mega-mercado que oferece aquela infinidade de produtos, cores e tabelas nutricionais que a gente mal consegue xeretar. Tabelas que não mostram os pesticidas aplicados nos alimentos que estão nas gôndolas. Assim, você é privado de saber se e quanto existe de agrotóxico no molho de tomate, no molho para salada ou mesmo no vegetal vendido naquela embalagem a vácuo bonitinha. Sem falar nos alimentos que levam a onipresente soja, o milho ou outro grãozinho da moda. Duro dizer, até na adorada dupla campeã nacional: arroz e feijão.
Aqui vai um susto, só para deixar esperto. Relembremos um estudo realizado no final do ano passado pelo Laboratório de Resíduos de Pesticidas do Instituto Biológico de São Paulo. Pedido do Greenpeace, o trabalho mostrou que mais de 50% de bananas, mamões, laranjas, tomates, pimentões, couves, arroz, feijão e café que cruzam as rodovias do País dentro dos caminhões é contaminada por agrotóxicos proibidos no Brasil ou, ainda, contêm essas substâncias em quantidade superior ao que a lei permite.
A pesquisa, apresentada em novembro passado, analisou 113 quilos de alimentos saídos de centrais de abastecimento. O resultado foi bem ruim: 60% das amostras continham vestígios de uso ilegal de agrotóxicos. Marque bem: ilegal. O estudo tratou somente de venenos proibidos por aqui, num país que, não custa refrescar a memória, é campeão na utilização de agrotóxicos mundão afora.
Com substâncias tóxicas ilegais, vinte amostras de cada alimento pesquisado possuíam mais de um tipo de agrotóxico, o que cria o “efeito coquetel”, ou seja, uma “mistura-bomba” de venenos que é absorvida pela comida e, depois, pelo organismo humano que a consome. O pimentão, tadinho, apresentou sete tipos de agrotóxicos diferentes, sendo três deles proibidos nestas terras.
Algumas variedades de mamão foram estudadas. E nem adianta colocar melzinho na tentativa de que a fruta sofrida fique mais saudável: apenas uma não tinha rastros de pesticidas. Duas continham procloraz, um pesticida banido no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para qualquer tipo de alimento. A substância pode causar câncer de mama, testículo e próstata, além de provocar danos ao meio ambiente.
Vestígios de inseticidas do grupo químico dos organofosforados, reconhecidos causadores de graves problemas neurológicos e psiquiátricos, incluindo depressão e suicídio, gritaram “presente” na couve e no tomate.
E isso pode piorar, se depender da bizarra maioria do Congresso Nacional que elegemos em 2014 e que termina a legislatura neste ano querendo vorazmente aprovar o “Pacote do Veneno” na Comissão Especial da Câmara (lá, é bom que se diga, tem muita gente que concorrerá na eleição de outubro próximo).
Da turma, é a bancada de deputados ruralistas a que monta vigia nas porteiras dos donos de grandes extensões de terra monocultoras (aquelas, onde se planta só um tipo de cultura, matando tudo em volta com banhos de agrotóxicos), incluído nessa conta o ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Blairo Maggi, proprietário de gigantescas plantações de soja, milho e algodão no estado de Mato Grosso.
Um dos maiores desmatadores do Brasil, Maggi já recebeu o troféu “Motosserra de Ouro”, do Greenpeace, e é investigado pelo Ministério Público Federal no Pará pela participação da empresa Amaggi Exportação e Importação, da qual é dono, em um esquema-monstro de desmatamento descoberto na Amazônia em 2017.
O “Rei da Soja” não esconde, faz tempo, o desapreço pelo meio ambiente. Em 2003, deixou isso evidente ao jornal The New York Times, dos Estados Unidos. Senador à época, após ser questionado sobre um aumento de 40% no desmatamento da Amazônia, ele disse que “não significava muito e não o fazia se sentir culpado”. Um ano antes, em 2002, foi o mesmo Blairo Maggi quem apresentou, no Senado, o projeto hoje batizado de “Pacote do Veneno”, que pode ser votado na terça.
O ministro-latifundiário e os deputados cães de guarda são os políticos de carreira defensores incondicionais dos bilionários conglomerados de empresas de agrotóxicos. Eles chamam, na cara larga, o venenoso Projeto de Lei 6.299/2002 de “Lei do Alimento Mais Seguro”.
O argumento raso para tentar que o bicho fique menos feio do que é, vem assim, repetido à exaustão, passado de boca em boca pelos ruralistas: “Queremos aprovar o projeto para trazer de fora novas tecnologias ao Brasil (novos agrotóxicos) e liberá-las mais rapidamente.”
A previsão de trocar produtos mais tóxicos por outros menos venenosos parece boa (ou menos ruim, sejamos sinceros)? Bem, em teoria, o projeto diz que produtos cancerígenos devem ser proibidos e que os já registrados serão reavaliados, o que poderia fazer com que saíssem do mercado.
Bonito, né? Até seria, se o mesmo projeto não pretendesse garantir que, após aceito pelos órgãos regulatórios, um pesticida mantenha o registro por período indeterminado. Fora isso, o tempo para a viabilização desse registro diminuiria, reduzindo o potencial de análise do poder público. O nome das substâncias, hoje oficializado como agrotóxico, seria rebatizado com o apelido carinhoso de “defensivo fitossanitário ou de controle ambiental”.
Outra brecha do texto possibilita a validação do uso de compostos químicos banidos internacionalmente após pesquisas comprovarem o surgimento de cânceres ou má-formação de fetos em nações estrangeiras (ué, mas o texto não prevê que novas tecnologias não cancerígenas, essencialmente as estrangeiras, seriam a salvação da lavoura?).
Porém, ativistas pela alimentação saudável, movimentos sociais e parlamentares com algum bom senso revelam que a proposta parte de entidades de grandes produtores rurais apoiados pelas indústrias química e de alimentos ultraprocessados. Uma reportagem de O Joio e o Trigo detalhou os financiamentos recebidos por deputados que são peças-chave na discussão do projeto, indicando que parte significativa da grana saiu dos cofres de empresas ligadas à produção de agrotóxicos, além de financiadores envolvidos com trabalho escravo (isso, você não leu errado, é mesmo trabalho es-cra-vo) e crimes ambientais.
Mais de 250 mil pessoas já se manifestaram contrárias ao “Pacote do Veneno”
Diversas instituições, a exemplo do Instituto Nacional de Câncer (Inca), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) e Ministério Público Federal (MPF) e do Trabalho (MPT) têm pressionado os parlamentares, mencionando os problemas causados pelos agrotóxicos e o agravamento potencial da proposta.
Entre as mobilizações da sociedade, mais de 250 mil pessoas já se manifestaram contrárias ao “Pacote do Veneno”, assinando uma petição na plataforma criada por um conjunto de entidades que defendem bandeiras variadas.
Do ponto de vista internacional, a Organização das Nações Unidas (ONU) afirmou que os agrotóxicos são responsáveis por 200 mil mortes por intoxicação anualmente no planeta e aponta que mais de 90% dessas mortes ocorrem em países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, onde mais de quatro mil pessoas são intoxicadas a cada ano, de acordo com a Abrasco. A ONU também desclassifica a ideia de que pesticidas são fundamentais para a segurança alimentar.
O problema é que, entre os 513 deputados federais, 228, ou 44%, se dizem membros da bancada ruralista. E, certamente, isso é péssimo para o seu prato. E para o meu, que não está livre de envenenamento.
Caso o “Pacote do Veneno” seja aprovado, os caminhões, quando as rodovias do País estiverem desbloqueadas, vão entregar toneladas de alimentos com mais veneno que chegarão nas casas ou na comida de rua da maior parte da população. Se não quiser mais agrotóxicos na sua quebrada, terça-feira está aí para fazer movimento.
Foto destacada: Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida
Foto 1: Greenpeace
Anvisa quer coibir informação enganosa em rótulo de alimento