Criadora do NutriScore diz que definição do melhor sistema depende do objetivo que se quer alcançar: identificar alimentos não saudáveis ou comparar produtos ultraprocessados
Quando a Anvisa anunciou que avalia o NutriScore como modelo de rotulagem frontal de alimentos, provocou surpresa. Esse sistema foi adotado pela França em outubro do ano passado de forma voluntária. A ideia é cruzar as informações nutricionais de um alimento e classificá-lo de A a E. Além dos pontos negativos, como excesso de calorias, açúcares, gorduras e sal, o algoritmo leva em conta pontos positivos, como a presença de vegetais e certas oleaginosas, fibras e proteínas.
A Anvisa ainda não deixou claro qual seu objetivo na definição de um modelo de rotulagem frontal. Espera-se para breve a apresentação da posição da agência. Um dos sistemas em debate é defendido pela Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável. Trata-se de uma adaptação do modelo criado pelo Chile, com alertas para o excesso de sal, açúcar, gorduras e gorduras saturadas.
Outra possibilidade, defendida pela Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia), é um semáforo que apresenta as cores verde, amarelo e vermelho para os nutrientes-chave.
Para entender melhor a situação, entrevistamos Chantal Julia, da Equipe de Pesquisa em Epidemiologia Nutricional da Universidade Paris 13, uma das responsáveis pela criação do NutriScore ao lado do colega Serge Hercberg.
Qual dos sistemas funciona melhor? “O NutriScore e o sistema de advertências não respondem ao mesmo objetivo. Enquanto o NutriScore visa a oferecer uma base para comparar produtos, entre categorias e dentro dessas categorias (para ajudar em substituições), o sistema de alertas objetiva identificar os alimentos não saudáveis”, ela responde.
Apoiadores das advertências defendem que o sistema criado pelo Chile funciona melhor para a realidade latino-americana: à diferença da Europa e dos Estados Unidos, seguimos a consumir muitos alimentos in natura e os produtos ultraprocessados são apenas uma parte (crescente) de nossa dieta. De modo que um modelo que desencoraje o consumo de ultraprocessados seria melhor do que um sistema que indique qual desses produtos é menos pior.
Além disso, o foco nos nutrientes em excesso estimula a indústria a promover reformulações que reduzam esses nutrientes, ao passo que o NutriScore poderia incentivar a que se tente acrescentar algum item positivo sem reduzir o índice de ingredientes negativos. Ou seja, um iogurte cheio de açúcar poderia subir de nota simplesmente com a adição de fibras.
Nos testes feitos na Europa, o NutriScore se saiu melhor que os demais modelos existentes, a maioria criados pela própria indústria. O sistema francês provocou insatisfações entre os fabricantes, que conseguiram empurrar a definição por alguns anos. Mas, agora, alguns deles aprenderam a gostar desse modelo, caso da francesa Danone, que tem um portfólio fácil de encaixar nas notas A e B.
Em tempo: o modelo que a Associação Brasileira de Nutrologia (Abran) apresentou à Anvisa tem alterações em relação ao NutriScore original, o que invalida as evidências científicas colhidas na França.
Na entrevista a seguir, Julia enfatiza a necessidade de ter claro qual o objetivo da rotulagem e avalia que não se pode simplesmente transpor um mesmo modelo para realidades diferentes.
Em termos de design, como o NutriScore foi desenvolvido? As letras se mostraram mais eficientes que números ou estrelas?
O NutriScore foi desenvolvido com base na literatura científica sobre rotulagem frontal, e particularmente de acordo com os seguintes critérios.
- Rótulos afixados em todos os alimentos são mais eficientes que os afixados em apenas uma parte dos alimentos (os mais saudáveis, por exemplo). De fato, se um sistema será colocado em todos os alimentos, a projeção geral que tem é muito mais importante, e os consumidores têm menor tendência de olhar a informação no momento da compra.
- Rótulos que sintetizam informações são mais eficientes que os baseados em nutrientes. De fato, fornecer informação sobre a qualidade nutricional geral de um alimento tem maior chance de ser facilmente entendido pelos consumidores, particularmente naqueles com baixo nível educacional, que podem não estar bem informados sobre noções de gorduras saturadas ou açúcar e suas implicações para a saúde.
- Rótulos baseados em cores são mais efetivos que os monocromáticos. Realmente, rótulos com cores que sejam entendidas de pronto são muito mais fáceis de ser interpretados pelos consumidores, o que é importante em se tratando em situações de compra, que são feitas em pouquíssimo tempo.
Usando esses critérios, o NutriScore foi desenvolvido como uma síntese de gradações de cores. As letras foram adicionadas às cores de maneira a melhorar a leitura da informação e permitir que as pessoas cegas também o utilizem. Finalmente, permite que alguns fabricantes que só usam embalagens monocromáticas o apliquem sem custo adicional.
Quando vocês levaram a proposta pela primeira vez ao governo, esperavam lidar com um lobby tão pesado?
A proposta do NutriScore figurou primeiro num relatório definindo 15 medidas na nutrição em saúde pública, incluindo também regulação do marketing e taxação de produtos não saudáveis. Entre todas essas medidas, apenas algumas foram aproveitadas pelo governo.
Estávamos preparados para lidar com algum lobby, mas ficamos muito surpresos com a extensão e um certo criticismo brutal que enfrentamos durante os dois anos de seleção. Essa é a razão pela qual documentamos esse processo, de maneira que os colegas possam ver as dificuldades que encontramos e se preparar caso queiram trabalhar com isso.
É sabido que o lobby conseguiu atrasar a decisão sobre o NutriScore. Mas vocês conseguem enxergar algum efeito positivo dessa demora?
O único efeito positivo é ter permitido desenvolver mais informações científicas para validar o NutriScore, em todas suas dimensões (perfil nutricional, design gráfico). Desde 2014, publicamos mais de 15 artigos de validação, fornecendo evidência científica também de sua eficiência potencial quando implementado. A evidência científica foi um fator muito importante na seleção do NutriScore.
Por outro lado, houve alguma corporação ou segmento econômico que apoiou o NutriScore desde o começo?
Pelo que sabemos, todos os agentes econômicos se opuseram ao NutriScore no começo, através de entidades empresariais dos fabricantes e dos varejistas. As corporações falaram apenas por meio dessas entidades, e firmemente se opuseram ao modelo. As duas entidades propuseram alternativas, tanto para atrasar o processo de decisão como para tentar um modelo mais amigável aos interesses da indústria.
E o discurso da indústria mudou?
Nem toda a indústria. Alguns atores ainda desafiam o NutriScore, tanto na França como na União Europeia. Como o NutriScore só pode ser voluntário, de acordo com a lei europeia, algumas corporações estão usando os próprios sistemas de rotulagem frontal, o que pode confundir o consumidor.
No entanto, muitos atores mudaram de posição desde a decisão e agora estão apoiando a implementação. Eu acredito que isso se relacione a dois fatores:
- Os estudos científicos, alguns dos quais conduzidos sob o guarda-chuva do Ministério da Saúde, compararam vários formatos, e todos apontaram o NutriScore como o mais efetivo. Dado o acúmulo de dados, e a seleção do NutriScore baseada nesses dados, aceitaram os resultados dos estudos e agora estão convencidos de que o NutriScore é o mais efetivo.
- Associações de consumidores deram um apoio firme ao NutriScore desse o começo, e há um amplo apoio social. Uma petição em 2015 defendendo a implementação recebeu mais de 250 mil assinaturas, simbolizando esse apoio.
Dada essa situação e a evidência científica, agora 33 empresas se comprometeram com o NutriScore, representando em média 15% do mercado. Esperamos que isso leve mais empresas a subir a bordo.
Como tem sido a implementação? Foi possível notar mudanças no comportamento do consumidor e na reformulação de produtos?
O NutriScore entrou em vigor em outubro. Ainda que alguns alimentos já tenham a rotulagem, ainda é muito cedo para ver qualquer mudança no comportamento do consumidor. No entanto, sabemos que a indústria está reformulando de modo a melhorar o ranqueamento de seus produtos no NutriScore. Mesmo que o efeito nos consumidores seja baixo, esse efeito de reformulação pode ser um aspecto muito importante.
A expectativa é de que mais rótulos apresentem o esquema ao longo do ano, e então poderemos monitorar o impacto no consumidor em múltiplos estudos. Para acompanhar a implementação e melhorar o uso pelos consumidores, campanhas de comunicação estão previstas para o próximo ano.
O NutriScore não foi comparado na Europa com os sistemas de advertência. Vocês fizeram algum estudo nesse sentido? Farão?
Quando o NutriScore foi discutido, os sistemas de alerta ainda não tinham sido implementados, e portanto não foram levados em consideração nos estudos que fizemos. Porém, agora pretendemos incluí-lo nos próximos estudos. Na França, pode ser complicado, já que o NutriScore já foi selecionado e implementado, o que pode influenciar a percepção da população sobre outros esquemas. Dado isso, talvez não possamos replicar nossos estudos usando a mesma metodologia, mas podemos pensar em novas formas de investigação.
Eu li um artigo recente do Uruguai que compara o NutriScore ao sistema de alertas, e indica que em alguns aspectos os alertas são mais efetivos. Ainda é cedo para qualquer conclusão, mas o modelo francês pode ser revisto se as evidências mostrarem que o sistema chileno é mais efetivo?
Lemos com muito interesse os trabalhos de nossos colegas uruguaios. Esse estudo sugere que o NutriScore pode ser mais efetivo que as advertências para identificar alimentos saudáveis, e menos eficiente para identificar alimentos menos saudáveis. Então, de fato, ainda é cedo para tirar uma conclusão.
Mais do que isso, o NutriScore e o sistema de advertências não respondem ao mesmo objetivo. Enquanto o NutriScore visa a oferecer uma base para comparar produtos, entre categorias e dentro dessas categorias (para ajudar em substituições), o sistema de alertas objetiva identificar os alimentos não saudáveis.
Além disso, os esquemas foram desenvolvidos considerando a oferta geral de alimentos, e portanto podem não ser transponíveis de uma cultura para outra. O NutriScore foi desenvolvido para ser revisado regularmente, seguindo os dados científicos e com atualização do comportamento do consumidor. Então, esses novos estudos deverão ser levados em conta durante o processo de revisão.