CCJ deve votar nessa quarta projetos que restabelecem incentivos para Coca e Ambev. Números do órgão federal confirmam reportagem publicada no ano passado pelo Joio
A Receita Federal desmentiu dados apresentados pela indústria de refrigerantes em audiência pública no Senado. O subsecretário de Fiscalização, Iágaro Jung Martins, contrapôs as informações sobre empregos criados, concentração de mercado e insegurança jurídica em meio ao debate sobre incentivos a esse setor.
A Comissão de Constituição e Justiça realizou nessa terça-feira (19) audiência pública sobre dois projetos que tentam sustar o Decreto nº 9.394, de 30 de maio de 2018. A medida retira parte dos incentivos dados às empresas que compram concentrados de refrigerantes produzidos na Zona Franca de Manaus.
Na prática, a medida do governo Michel Temer zera a cobrança de créditos em cima de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) ao igualar as alíquotas do concentrado e do refrigerante. O decreto integra o pacote formulado pela equipe econômica para atender às reivindicações da greve dos caminhoneiros.
A Constituição prevê que se possa cobrar créditos em cima de impostos pagos na etapa anterior da industrialização. É uma maneira de evitar que os tributos se acumulem todos sobre o produto final. No caso da Zona Franca, não há cobrança de impostos, mas as empresas de refrigerantes não se intimidam em cobrar os créditos, numa operação há longa data contestada pela Receita. Há ainda suspeitas de superfaturamento.
Os projetos de derrubada do decreto, apresentados por parlamentares com financiamento pelas fabricantes de refrigerantes, serão votados já nessa quarta-feira.
O debate seguiu rumo previsível. Toda a bancada do Amazonas se posicionou contra o decreto, evocando argumentos sobre a importância da Zona Franca para a criação de empregos e a preservação da floresta.
A única convidada a debater o tema do ponto de vista da saúde foi Ana Paula Bortoletto, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável.
Ela recordou a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) de elevar o preço de bebidas adoçadas como uma das medidas para conter a epidemia de obesidade e doenças crônicas. “Apenas informação não garante que as pessoas consigam fazer escolhas alimentares mais saudáveis. É preciso implementar políticas públicas que favoreçam essas escolhas.”
A Receita reforçou argumentos que já haviam sido apresentados em audiência pública em novembro do ano passado na Câmara. Dessa vez, porém, o órgão aduaneiro foi além ao levantar contradições da indústria de refrigerantes.
O subsecretário recordou que o setor chega a dar prejuízo de arrecadação para o governo – em 2016, R$ 767 milhões negativos no IPI. A carga tributária total de uma empresa de refrigerantes que compra concentrados da Zona Franca fica em 4,77%.
No total, o setor tem incentivos de R$ 3,8 bilhões anuais. O valor é praticamente igual ao cálculo apresentado aqui no Joio em reportagem publicada em outubro.
O representante da Receita foi interpelado de maneira exaltada e interrompido algumas vezes pelos senadores do Amazonas, que bateram boca também com colegas de outros estados.
“Eu não aceito essa posição da Receita Federal porque ela não fala em nome dela. Fala em nome do povo brasileiro. E o povo brasileiro não mudou a Constituição”, disse Eduardo Braga (MDB-AM), autor de um dos projetos. Para se eleger, Braga recebeu R$ 140 mil da Arosuco, fabricante de concentrados da Pepsi, e R$ 75 mil da antiga Schincariol, enquanto o diretório estadual angariou outros R$ 50 mil da Recofarma, que fabrica os xaropes da Coca-Cola.
“Não vamos contar uma mentira para o povo brasileiro. Vamos contar uma verdade. Porque a Amazônia merece respeito. O Amazonas merece respeito. E os brasileiros que lá vivem não podem ser tratados como cidadãos de segunda classe.”
A senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) se elegeu em 2010 com R$ 70 mil da Arosuco e o comitê financeiro do partido recebeu outros R$ 150 mil da Recofarma. Ela é autora de outro dos projetos que tentam sustar o decreto presidencial. Durante a audiência, a parlamentar evocou o desenvolvimento da Zona Franca. “Ajuda a resolver o problema tributário do Brasil? Não. Porque é um dinheiro que será retirado da Zona Franca de Manaus para ser repassado às importadoras de diesel.”
O senador Omar Aziz (PSD-AM), com R$ 300 mil da Recofarma na campanha de 2014, afirmou que o governo retirou os incentivos da Zona Franca para resolver uma “crisezinha” e acusou a colega Ana Amélia (PP-RS), responsável pela convocação da audiência pública, de se valer de mentiras. “Agora, o discurso simples, apequenado, de que a saúde vai perder dinheiro, de que a segurança vai perder dinheiro, isso é discurso pequeno”, afirmou.
“Essa discussão aqui não vai mudar a cabeça de senador nenhum. Eu fico preocupado porque se abriu um precedente muito grande. O governo federal não teve uma conduta correta com o povo amazonense. E quando uma pessoa não tem uma conduta correta não pode ter o nosso respeito.”
Alexandre Kruel Jobim, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoólicas, afirmou que os incentivos à Zona Franca são uma política de Estado, e não de governo. E buscou mostrar o decreto do Executivo como uma afronta ao Legislativo.
A exibição dele repetiu a que havia sido feita no ano passado, na linha de dizer que se trata de uma política de desenvolvimento regional, com a criação de empregos locais, e de que são muitas as fabricantes de refrigerantes beneficiadas. A Abir menciona 14 mil postos de trabalho, entre agricultores e funcionários no polo industrial de Manaus.
A Receita fala em 798 empregos diretos, frente a um faturamento de R$ 8,7 bilhões. E contesta os dados sobre a grande quantidade de insumos, como açúcar e guaraná, comprados na região: R$ 215 milhões foram gastos no ano passado. Dividindo pelo número de produtores envolvidos, chega-se a R$ 1.300 por mês, caso se considere que todos os recursos são igualmente distribuídos.
O órgão federal também adotou tom inédito quanto ao número de empresas beneficiadas. A Abir se vale da informação de que são 31 fabricantes instaladas na Zona Franca e que 144 empresas compram o concentrado na região. A Receita informou que 21 estão operando e que, dessas, apenas três concentram 83% das vendas – Recofarma, Arosuco e Brasil Kirin (ex-Schincariol).
“É o primeiro passo para acabar com o pacto que o Estado fez em defender a Amazônia Ocidental”, disse Alexandre Jobim.
Para Iágaro Martins, não faz sentido falar que a mudança promovida pelo decreto coloca em risco todo o modelo da Zona Franca. Ele recordou que apenas a indústria de refrigerantes consegue cobrar créditos em cima de impostos que nunca foram pagos, numa operação contestada pelo órgão desde a década de 1990, como mostramos. “A preocupação com o precedente para os demais setores não tem como ocorrer. É logicamente impossível.”