Deputados, senadores e governador se mobilizam para derrubar decreto de Temer que dá fim a créditos sobre impostos que nunca foram pagos
A decisão do governo federal de retirar parte dos subsídios à indústria de refrigerantes provocou reações previsíveis em Brasília. Parlamentares do Amazonas unem forças para tentar derrubar o decreto de Michel Temer que reduz de 20% para 4% o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) cobrado sobre o concentrado de bebidas adoçadas comprado na Zona Franca de Manaus.
A medida atinge especialmente Coca-Coca e Ambev, cujas engarrafadoras obtinham um crédito ao adquirir esse xarope fabricado na área de livre comércio. As empresas que fabricam na região são suspeitas de superfaturamento de notas fiscais e, como mostramos aqui no Joio, recebem incentivos anuais de ao menos R$ 7 bilhões, entre tributos estaduais e federais. Em outras ocasiões o governo federal também tentou mudar o quadro, mas voltou atrás por pressão das empresas de refrigerantes e por parlamentares ligados a elas.
No caso do IPI, a Constituição prevê que se possa cobrar um ressarcimento entre uma etapa e outra de industrialização de forma que o tributo não se acumule sobre o preço final. No caso da Zona Franca, mesmo sem pagar impostos, as empresas cobravam os créditos, numa operação há anos contestada pela Receita Federal. Na década de 1990 a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional afirmou que o esquema configurava enriquecimento ilícito da Coca.
A decisão do governo foi parte das medidas adotadas para compensar as perdas de arrecadação provocadas pela greve dos caminhoneiros. E suscitou a mesma reação que se deu em outras vezes em que a equipe econômica tentou mexer nos privilégios da indústria de refrigerantes.
Ontem, parlamentares do Amazonas e o governador Amazonino Mendes se reuniram na residência oficial do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), para discutir uma alternativa. O ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, e o secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, participaram do encontro.
“Não é só uma questão pontual em relação a um segmento, porque isso abre um precedente perigoso para outros setores e é inconstitucional, afinal de contas, a Zona Franca é um modelo baseado na Constituição e, ao mexer nos incentivos, você mexe indiretamente com a Constituição Federal”, afirmou a senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB).
A parlamentar apresentou um projeto de decreto legislativo para sustar a decisão do Planalto. Na campanha eleitoral de 2010, ela recebeu R$ 70 mil da Arosuco, fabricante dos concentrados da Pepsi, e o comitê financeiro do PCdoB ganhou outros R$ 150 mil da Recofarma, que faz os concentrados da Coca.
O também senador Eduardo Braga (MDB) falou em “intocabilidade” dos benefícios da Zona Franca e disse que o ministro da Fazenda vai consultar a Procuradoria da Fazenda Nacional sobre a constitucionalidade do decreto. “Caso seja positiva, avançamos. Caso negativo, vamos tentar via Supremo Tribunal Federal ou por meio de decreto legislativo para resgatar o direito da ZFM e a segurança jurídica dos investimentos do setor.” Em 2010, ele recebeu R$ 140 mil da Arosuco e R$ 75 mil da Schincariol, enquanto o diretório estadual angariou outros R$ 50 mil da Recofarma.
Deputados e senadores do Amazonas costumam defender a importância da indústria de refrigerantes para a criação de empregos na Zona Franca. Mostramos aqui no Joio que, apesar de ter um dos maiores faturamentos da área de livre comércio, o setor emprega poucas pessoas.
Levantamento da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) registrava 2.660 funcionários nesse segmento em 2016, contra 29 mil de eletroeletrônicos, 13 mil de duas rodas e 6.700 de termoplástico. A Recofarma tem 175 funcionários, segundo o levantamento mais recente oferecido pela Suframa. A Arosuco, 142.
A Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoólicas (Abir) se defende dizendo que é o único segmento que cria postos de trabalho na área rural. Seriam 14 mil empregos no total. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) feito a pedido da Abir fala em oito mil famílias só na produção de guaraná. Cruzando com os dados do IBGE sobre produção agrícola na região, temos uma média de R$ 2.000 ao ano por família, ou seja, menos de um quarto de salário mínimo por mês.
O deputado Pauderney Avelino (DEM-AM), que já havia se mobilizado outras vezes em defesa da indústria de refrigerantes, afirma que a expectativa é de que medidas alternativas sejam tomadas sem a necessidade de edição de um decreto legislativo. “Antes disso, vamos encontrar uma solução. É isso que vai ser feito, alguma medida compensatória”, garantiu. Em 2014 ele recebeu R$ 340 mil da Companhia Paraense de Refrigerantes, integrante do Grupo Simões, da Coca, e R$ 60 mil da Recofarma. “Nós não podemos ser pegos de surpresa com imprevisibilidade. A empresa está lá, de repente o governo edita um decreto, na calada da noite, e no dia seguinte está no Diário Oficial elevando os custos dessa empresa.”
Também o governador Amazonino Mendes se saiu com a leitura de que o decreto é inconstitucional. “Não se pode tentar resolver um problema nacional [subsídio do óleo diesel] colocando em xeque uma instituição tão importante para o desenvolvimento do país”.
Já a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, que reúne ONGs e pesquisadores, foi no sentido contrário. Em carta endereçada ao Planalto, a organização recordou a necessidade de desincentivar o consumo de refrigerantes, associado a obesidade, diabetes e câncer. “Há diversos incentivos tributários federais para produtos não saudáveis que o governo poderia reexaminar com mais atenção, antes de praticar cortes que atingem setores mais vulneráveis da população. Contudo, esperamos que a experiência do setor de bebidas ultraprocessadas encoraje um aprofundamento estratégico de novas medidas reguladoras para setores relacionados.”