Uma pesquisa sobre os ‘motéis do capital’ que driblam impostos

Coordenador de núcleo de pesquisas da Unicamp explica como funcionam os paraísos fiscais contemporâneos, cada vez mais complexos e inalcançáveis

Nos últimos anos, o cientista político e filósofo Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes se dedicou ao estudo da educação superior dos Estados Unidos. Como consequência, voltou a atenção aos desafios da formação de força de trabalho diante de mudanças aceleradas nos processos produtivos e na organização das empresas. Disso, surgiram o que ele chama de “temas colaterais”. Um deles foi o crescimento dos paraísos fiscais, cada vez mais utilizados pelas megacorporações e, também, por grandes fortunas pessoais, para burlar a cobrança de impostos, e mesmo o crime organizado, com o objetivo de lavar dinheiro.    

Hoje aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele segue na ativa como colaborador na pós-graduação em ciência política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da universidade. É também coordenador de difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Entre diversas publicações, os livros mais recentes do pesquisador são O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento e Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura,  ambos publicados pela Editora Unesp.

Em relação aos paraísos fiscais, o professor mostra como a estrutura é complexa e “a coisa vai mais longe”. Ele explica o crescimento do que chama de “motéis do capital”: a maior parte do dinheiro que circula nos mercados de capitais não financia nada concreto. É mera especulação.

Corrêa afirma, ainda, que os paraísos fiscais são  “o sistema”, o modo como o capitalismo garante a reprodução em escala ampliada. Dentro desse sistema, corporações de tipos diversos têm participação, inclusive as megaempresas que fabricam ou comercializam comida ultraprocessada, como a Coca-Cola, o McDonald’s e o Walmart.

A seguir, confira a entrevista do professor ao Joio.      

O Joio e o Trigo – O senhor pode resumir por que e como começaram suas pesquisas sobre paraísos fiscais?

De fato, é a síntese de um conjunto de leituras – livros, relatórios, reportagens – que mostram como essa rede cresceu, qual o papel dela no capitalismo contemporâneo, quem dela se beneficia, quem é prejudicado. O objetivo era esse: produzir uma série de artigos de difusão, para um público mais amplo do que aquele atingido por estudos acadêmicos.

Como o senhor conceitua os paraísos fiscais modernos?

Pense na ilha do tesouro, das lendas sobre piratas dos séculos 16 e 17. Em algum lugar precisavam esconder suas riquezas, para que ficassem longe das autoridades dos países em que estacionavam navios. Os paraísos fiscais são, em certo sentido, ilhas assim, países inventados para esse fim.

Alguns os chamam de “soberanias de conveniência”. Países soberanos desenhados para ocultar riquezas obtidas de modo pouco defensável. Talvez alguém ache exagerada a idéia de “países inventados”? A Suíça? A City londrina? O estado americano do Delaware? Esses territórios são um pouco diferentes, mas nem tanto, nesse aspecto: o que ali se inventou foi um novo espaço regulatório, um novo quadro legal que praticamente mudou sua cara.

Os outros, a rigor, são mesmo invenções. Ilhas, antigas colônias que viraram espaço conveniente para esconder dinheiro escuso e fugir do pagamento de tributos. Os paraísos fiscais são esconderijos que tentam desterritorializar a riqueza, porque nos territórios, os estados nacionais, uma agenda regulatória e fiscal havia estabelecido limites à sede de lucros dos grandes capitais.

O primeiro paraíso fiscal conhecido é mesmo a Suíça, que teria começado as atividades de dificultar o acesso aos dados de clientes por questões humanitárias? Ou isso foi só uma desculpa?

A Suíça é o mais antigo, talvez ainda o maior, já que várias dessas “ilhas” circulam em torno da Suíça e de Londres, centros de comando do capital financeiro. Creio que hoje bem poucos acreditam nessa estória das “questões humanitárias”.  Aliás, o “humanitarismo” da Suíça neutra, no caso do nazismo, já foi seguidamente contestado. As iniciativas que criaram o paraíso fiscal na Suíça surgiram bem antes e independentemente da perseguição a judeus na Alemanha.

Dos paraísos fiscais, o senhor pesquisou algum mais a fundo?

Não pesquisei nenhum deles a fundo e em especial. Minha intenção era ver o sentido geral de propagação e o que eles significavam, como uma tentativa do grande capital e das grandes fortunas do mundo: a tentativa de fugir às regulações e às políticas nacionais erguidas, sobretudo, depois da Segunda Guerra, aquelas políticas que utilizavam o imposto progressivo para realizar politicas de desenvolvimento nacional e políticas de reforma social. Para isso, os países precisavam impor certos controles ao movimento da riqueza móvel, líquida. Os paraísos são uma revanche do capital às conquistas reformistas produzidas ao longo do século 20, principalmente no pós-guerra.

Os EUA, publicamente, fazem críticas aos paraísos fiscais, mas permitem a existência de regras obscuras internamente, como no estado de Delaware. O senhor pode explicar como funciona esse estado no atendimento aos interesses do capital financeiro?

Não é só o Delaware. Vários estados americanos adotaram legislação permissiva, aquela que viabiliza o esconde-esconde das fortunas e dos lucros empresariais mas, também, o esconde-esconde do dinheiro obtido por meio do crime em sentido estrito. Legislação desse tipo avançou na Flórida e em Nevada, por exemplo. O Delaware ficou famoso por um bate-boca entre Obama e um representante de Cayman, em um evento internacional.

O presidente americano atacou as ilhas dizendo que o “maior dos prédios da ilha era também o maior dos trambiques”, uma vez que abrigava 12 mil corporações. O chefe da Autoridade Financeira das ilhas Cayman, Antony Travers, disse a ele que seria mais prudente que Obama desse uma olhada no edifício da rua North Orange, número 1209, em Wilmington, Delaware – ali estavam sediadas nada menos do que 217 mil companhias…

Delaware, a uns 30 minutos da residência do Obama. Um dos quatro ou cinco paraísos “ilhados” no território norte-americano.  O estado de Delaware tem 900 mil habitantes e quase igual número de corporações em atividade. Por alguma razão. tais coisas milagrosas ocorrem.

Quando uma representante de uma marca estadunidense, no caso, a Coca-Cola, ganha isenção fiscal na Zona Franca de Manaus, no Brasil, e também recebe lucros remetidos aos EUA, tendo a matriz em Delaware, a transnacional se beneficia duas vezes de manobras tributárias?

Há um sem-número de caminhos pelos quais grandes empresas e grandes fortunas fazem tais movimentos. Explico um deles em um dos artigos que publiquei no jornal da Unicamp. Pego um exemplo descrito por Nicolas Saxon, que reproduzo no meu artigo: “A subsidiária financeira da empresa Big Banana, em Luxemburgo, pode emprestar dinheiro para a Big Banana Honduras. Daí, ela cobra da subsidiária latino-americana uns US$ 10 milhões por ano de juros pelo empréstimo. A subsidiária hondurenha deduz esses milhões de lucros locais, alterando as taxas que paga ali. A subsidiária financeira de Luxemburgo, contudo, registra esses 10 milhões como renda faturada – mas como Luxemburgo é um paraíso fiscal, não paga taxa sobre isso.”

Como tantas megacorporações transnacionais conseguem justificar o registro central de empresas e marcas em um microestado, como Delaware? Ao poder público estadunidense é interessante essa situação? Internacionalmente, há regras que se ponham contra isso?

O que é bom para essas corporações é bom para os Estados Unidos? Depende de quem fala em nome dos Estados Unidos, de quem define o “bom para os Estados Unidos”. Se o país se tornou o consórcio dessas corporações financeirizadas, essa pergunta corre o risco de ficar sem sentido. As falas sobre a criação de regras nesse campo são muitas, antigas, repetitivas. Já os fatos…

Um país como o Brasil, que suporta várias empresas transnacionais com as matrizes registradas em Delaware, sai prejudicado nesse tipo de relação? 

Os países periféricos são, evidentemente, os mais prejudicados. Sempre. Mas isso já ocorria há muito tempo, quando os paraísos ainda eram embrionários, poucos. As transnacionais sempre operaram com esquemas de subfaturamento e superfaturamento para contornar leis nacionais que restringiam remessa de lucros, por exemplo. Hoje, mais ainda. Nos anos 1970, por exemplo, havia uma montadora de tratores, no Brasil, que “importava” o motor e a caixa de transmissão de empresas do mesmo grupo, comércio intra-firma. Fazia diferença atribuir um valor alto ao item importado – se você quer fazer remessa de lucros disfarçada de custo. O como faturar, onde, a que preço administrado…

Para o pesquisador Reginaldo Corrêa, grandes empresas de fast-food usam manobras tributárias para destruir o comércio varejista de alimentos tradicionais em vários países

E sobre as redes de fast-food ou de hipermercados que comercializam alimentos ultraprocessados em grandes quantidades, o que temos de informação sobre manobras tributárias?

Quanto aos McDonalds e similares, há muitas pesquisas nos Estados Unidos mostrando como essas empresas mamam nos subsídios do governo. Inclusive, nos programas de socorro aos pobres. Trabalhadores do McDonald’s e do Walmart, por exemplo, custam fortunas aos cofres federais.

As empresas recomendam e orientam aos trabalhadores o uso dessa estratégia de sobrevivência (acessar a programas federais de renda complementar para somar aos baixos salários que ganham), já que eles ganham uma miséria. Outro dado: há grandes empresas de fast-food artificialmente “sediadas” na Suíça, o que explica por que estão destruindo o comércio varejista de alimentos tradicionais em vários países da Europa – os bares de Madri, as tascas de Lisboa, os cafés de Paris – simplesmente não pagando impostos e vendendo lixo em forma de pizza e sanduíche de isopor.

Foto em destaque: Vladislav Reshetnyak, no Pexels

Foto 1: IEA-USP 

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