Ministra de Bolsonaro quer gado de ‘brigada de incêndio’ em reservas ambientais

Projeto de Tereza Cristina, que ocupará a Agricultura, busca autorizar rebanhos para coibir queimadas naturais; argumento é contestado por evidências científicas

Tereza Cristina (DEM-MS), indicada para assumir o Ministério da Agricultura no governo do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), apresentou no mandato como deputada federal um projeto de lei que quer liberar reservas ambientais para o pastoreio de animais. A parlamentar justifica a proposta dizendo que rebanhos podem ser utilizados para protegê-las. Segundo ela, a presença de gado nessas áreas serviria para coibir a ação de raios que provocam queimadas a partir da combustão de galhos e folhas secas.

Os animais funcionariam como uma espécie de brigada de incêndio nos locais, ajudando a prevenir o surgimento de pontos de fogo espontâneo.

A proposta é do PL 4508/2016, que aguarda o parecer do relator na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, da Câmara dos Deputados. No texto, a deputada afirma que as árvores e arbustos das reservas envelhecem e “por ação de raios, caem, tornando-se peças de fácil combustão”. “Daí”, ela explica, “ocorre a expansão de queimadas”. Para evitar isso, a proposição busca, então, “autorizar o apascentamento de animais em área de Reserva Legal”.

A deputada, entretanto, não oferece mais detalhes sobre como utilizar os animais para tal finalidade. Por exemplo, se neles seriam equipados algum tipo de para-raio ou se os bichos se tornariam eles próprios alvos das intempéries ou se teriam extintores ou mangueiras acoplados.

Além disso, Tereza Cristina admite que o terreno das reservas não serve para alimentar os rebanhos. “Nesse contexto (…) crescem as pastagens, que se tornam macegosas e imprópria (sic) para qualquer utilidade”, discorre a proposta de lei. O projeto reforça, ainda, que o fenômeno “está ocorrendo não pela ação do homem, mas da própria natureza”.

O pulo do gato é que incêndios decorrentes da ação de raios ou outros elementos naturais são comuns e necessários para a preservação de alguns biomas brasileiros, como o cerrado, que ocupa boa parte de Mato Grosso do Sul, estado pelo qual a deputada foi eleita.

Há diversos estudos que constatam que essa ação pouco intuitiva da natureza é essencial para a preservação de fauna e flora —e não há menção ao uso de rebanhos de animais para tal. Esta evidência é sustentada, entre outras pesquisas, por artigo publicado recentemente, “The need for a consistent fire policy for Cerrado conservation” (“A necessidade de uma política consistente de incêndios para a conservação do cerrado”), pelos cientistas Giselda Durigan, do Instituto Florestal do Estado de São Paulo, e James Ratter, do Botanic Garden Edinburgh, da Escócia.

“O ecossistema do cerrado depende do regime histórico de incêndios para manter sua estrutura, biodiversidade e funcionamento”, afirmam os pesquisadores, em tradução livre por esta reportagem. “A supressão do fogo transformou a vegetação em florestas, causando perdas na biodiversidade e mudanças drásticas nos processos ecológicos”, acrescentam os dois no artigo, que também motivou uma matéria da Agência FAPESP.

A futura ministra da Agricultura diz, contudo, que um dos objetivos da proposta é eliminar as ocorrências na natureza. “Esses lamentáveis fenômenos têm acontecido com frequência por todo território nacional”, afirma. “Para  reduzir suas consequências, senão eliminá-las, a presente proposta legislativa objetiva autorizar o apascentamento de animais em área de Reserva Legal, o que pode, por um lado, produzir sensível preservação ambiental e, por outro, representar possibilidade de ampliação de renda para o produtor rural”, completa.

O governo federal, para o qual se encaminha a deputada, afirma que são as ações humanas —e não os raios— os principais desencadeadores de incêndios no Brasil. São as queimadas decorrentes das mãos de homens e mulheres que provocam prejuízos ao meio ambiente. Veja no vídeo abaixo.

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), sob coordenação do pesquisador Alberto Setzer, diz, sem meias-palavras: mais de 99% dos incêndios florestais em território nacional são deflagrados por ação humana. “Alguns são propositais, outros, por descuido, mas sempre com ação humana”, explica o cientista, em entrevista ao Portal Brasil. As queimadas provocadas naturalmente, como os raios, que correspondem à maioria destes casos, são responsáveis por menos de 1% do total.

Procurada por meio de sua assessoria de imprensa, a parlamentar não se manifestou até a publicação desta reportagem.

“Musa do Veneno”

A deputada federal Tereza Cristina, 64, se destacou no Congresso Nacional em 2018, quando presidiu a comissão especial da Câmara que aprovou projeto de lei que facilita a liberação de agrotóxicos. A atuação dela foi fundamental para o avanço do Projeto de Lei 6299/2002, conhecido como “Pacote do Veneno”, que estava há quase 16 anos parado, sofrendo resistência de ambientalistas e especialistas em saúde.

A deputada federal Tereza Cristina, em sessão no Congresso Nacional (Foto: Divulgação)

A articulação para encaminhar a proposta lhe rendeu o apelido de “Musa do Veneno”, denominação dada durante um jantar de comemoração do avanço PL realizado em um restaurante em Brasília.

Além disso, Tereza comanda a Frente Parlamentar da Agropecuária, também conhecida como bancada ruralista, que reúne integrantes do legislativo federal defensores dos interesses de produtores agropecuários. O grupo é um dos maiores e mais coesos da Casa, coadunando 44% dos deputados e 33% dos senadores.

De acordo com levantamento da ONG Repórter Brasil, o patrimônio da deputada cresceu quase 500 vezes durante seu primeiro mandato: de R$ 10,3 mil em 2014 para R$ 5,1 milhões neste ano, segundo autodeclaração patrimonial feita ao TSE. O enriquecimento exponencial deve-se ao recebimento de propriedades como herança, segundo informações da deputada.

Cristina é engenheira agrônoma de formação, graduada pela Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais. Antes de ser eleita para o cargo e indicada para o Ministério da Agricultura, ela trabalhou administrando negócios da família, de criação de gado, e em uma empresa do setor privado em São Paulo.

Em Mato Grosso do Sul, participou da direção de federações e associações representativas do setor agropecuário. Entre 2007 e 2014, foi secretária de estado das pastas de Desenvolvimento Agrário, Produção, Indústria, Comércio e Turismo. Neta e bisneta de dois ex-governadores de Mato Grosso (quando o Estado ainda era um só, até 1977), Tereza disputou a eleição para a Câmara dos Deputados em 2014, recebendo apoio de produtores e empresários do agronegócio.

Os interesses pelo agronegócio têm duas razões, de acordo com reportagem do site De Olho nos Ruralistas. A primeira seria pessoal, já que ela é proprietária de 5.600 hectares de terras nos municípios de Terenos e Corumbá, em Mato Grosso do Sul. A outra, eleitoral: em 2014, entre grandes empresas e pessoas físicas ligadas ao agronegócio, a deputada recebeu R$ 2,9 milhões dos R$ 4,3 milhões usados em sua campanha, que foi a mais cara entre os deputados federais sul-mato-grossenses eleitos naquele ano.

Em 2014, a grande doadora foi a Iaco Agrícola, com R$ 1 milhão. Uma gigante do setor que produz cana, tem gado e eucalipto. As atividades da empresa se concentram em Chapadão do Sul, no norte do Estado.

Negócios com a JBS

Ainda segundo a ONG Repórter Brasil, a parlamentar manteve negócios com o grupo JBS, dos irmãos Joesley e Wesley Batista. A dupla de empresários ganhou notoriedade após divulgar uma gravação em que Michel Temer (MDB) estaria pedindo para Joesley o pagamento de propinas para o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, aliado do presidente da República.

Em 2010, Cristina arrendou para a JBS uma fazenda da sua família para criação de gado. A empresa pagava R$ 918 mil anualmente, mas desistiu da parceria e acionou a deputada na Justiça para reaver supostas dívidas.

Cristina negou conflito de interesses no caso e disse à Repórter Brasil que sua vida pública “sempre foi pautada por transparência”. O contrato da JBS deve-se, segundo a deputada, à tradição da família na pecuária e à localização da fazenda, próxima a uma das unidades de abate da empresa. “A JBS busca menos custo e mais eficiência para resultar em maiores lucros. Por isso utiliza dessa logística empresarial”, afirmou.

(Foto do destaque: Adriana Cezar/Wikimedia. Descrição: “Gado no pasto em área em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro”)

Por Guilherme Zocchio

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